Os turistas nem levantam os olhos do prato quando se aproxima o indiano com os ramos estendidos. "Quer uma flor? Uma flor?" No Serviço de Estrangeiros e Fronteiras um homem que mal sabe falar português lança um olhar aflito à funcionária que lhe pede três fotocópias de um papel e mais outra cópia de outro e uma declaração de residência do patrão, "percebeu?, volte à tarde ou amanhã, percebeu?". Deveria talvez frequentar as aulas de português onde um grupo de imigrantes de Leste aprende a conjugar os verbos mais úteis para o dia-a-dia, comer, comprar, ser aldrabado. "Eu ontem fui aldrabado. Tu hoje és aldrabado. Nós amanhã seremos aldrabados." .São retratos de imigrantes pintados por Sérgio Tréfaut no documentário Lisboetas. O autor explica que o interesse por este tema lhe surgiu nas suas caminhadas de casa para o escritório, do Castelo para a Baixa, com passagem pelo Martim Moniz. "Reparei como todas as outras pessoas repararam. A cidade mudou." Perto do final dos anos 90, a solarenga capital portuguesa tornou-se, com as "obras oficiais" do final do milénio, lugar de emprego e porta de entrada para a Europa. "De repente, no mundo em que vivemos encontramos umas portas secretas que conduzem a mundos totalmente diferentes mas que estão aqui. Portanto, dá vontade de ir ver o que há para lá dessas portas. Queria perceber quem eram estas pessoas, porque é que vinham, o que era a vida delas. É um pouco uma curiosidade de antropólogo.".Foi à descoberta. E na sua viagem descobriu uma igreja nigeriana onde Father Frank exalta os fiéis em inglês e lhes conta a história de Jacob, que sete anos serviu Labão, pai de Raquel, serrana bela, mas que acabou enganado. "Este é o destino dos imigrantes. Trabalham muito e são enganados", conclui o sacerdote. Na esguia sala de orações do Martim Moniz, os sapatos espalham-se pela escada e os fiéis ajoelham-se para rezar a Alá Todo Poderoso. À porta da igreja romena a parede está repleta de pequenos papéis presos com fita--cola, são anúncios de emprego, quartos para alugar, alguém que se oferece para fazer limpezas..As várias fés que coabitam em Lisboa foram a porta de entrada de Sérgio Tréfaut para este mundo onde se cruzam línguas, vestidos e hábitos muito diferentes. "A sensação que se tem quando se entra na mesquita, num templo sikh ou numa qualquer igreja é de que já não se está em Lisboa, está-se noutro país. É aí que os imigrantes se sentem em casa", resume Sérgio Tréfaut.."O filme tem um equilíbrio, tem as várias formas de sofrimento que fazem parte da imigração e tem o lado do sonho, de querer mudar a vida", garante o autor. Meia volta, alguém liga para casa. A câmara fica ao longe mas ainda assim capta a saudade daquelas palavras, "te amo, meu bem", "Daqui a pouco estou aí, fica bem". Da mesma forma que, mesmo oculta, do outro lado da rua, a câmara se intromete nas negociações no informal mercado de trabalho em pleno Campo Grande. "Quanto paga? Faz contrato?" "Não sei, primeiro ver, depois pagar. Quer, quer... Não quer..." Na carrinha dos médicos do mundo, quase não há espaço para movimentar a câmara enquanto filma um sem-abrigo que faz um curativo no pé. Não toma banho há dias. Profissão? "Piloto de aviões."."A proposta era fazer uma espécie de quadro inspirado nos espectáculos de Pina Bausch", explica o realizador. "Não queria contar a história de uma pessoa, de uma família ou sequer de uma comunidade. O projecto era fazer um fresco e tinha que ter um equilíbrio não só informativo mas também afectivo e emocional. Fiz uma lista de quadros que queria abordar. Alguns deles estão lá, como o parto, outros acabaram por não ter a importância esperada. Pensava passar nem que fosse vagamente pela questão das mafias e da prostituição mas não consegui.".Com quase 70 horas de filmagens, Sérgio Tréfaut "poderia muito facilmente ter feito um manifesto". Mas não quis. Ainda assim este é um filme assumidamente político. Chamar-lhe Lisboetas, reconhece Tréfaut, é já "um acto político de dizer, meus caros amigos, lisboetas são pretos, têm olhos rasgados, falam russo com sotaque brasileiro. É assim. Não são só os que comem sardinhas em Alfama. A cidade é outra".