Lisboa e o Vasquinho, mas que ricas prendas
Aqui entre nós, que ninguém nos ouve, os pobres dos livros, muito em especial no Natal, são aquela prenda que se dá quando ou não se tem imaginação, ou quando não há vagar. Quantas vezes não ouvi já numa livraria, e não só na época natalícia, este diálogo: "Olha lá, e o que é que vamos dar ao tio/ao Zé/à cunhada da Irene/ao vizinho do 3.º?" "Compramos-lhe um livro, escolhe aí qualquer coisa/do Saramago/com uma capa bonita/que pareça bem/assim com muitas páginas." E desta forma são os livros reduzidos à condição dos sabonetes, da caixinha de chocolates, da embalagem de incenso, da vela de cheiro, em suma, da prendinha que desenrasca. (E o mais certo é o livro acabar órfão de leitura, a coleccionar pó num canto do móvel da casa de jantar).
Quem me está a ler e costuma assim servir-se dos livros no Natal, pode parar e passar à página seguinte, porque vou aqui recomendar dois livros para oferecer com o coração inteiro e antecipando o prazer e a satisfação que o presenteado sentirá ao folheá--los. São livros de grande formato e um nadinha mais caros do que a média, mas aquilo que dão ao leitor ultrapassa qualquer quantificação rasamente material.
O primeiro é As Melhores Fotografias da Lisboa Desaparecida, de Marina Tavares Dias, que como o título indica é uma selecção de fotos da série homónima de livros da autora, e que este lisboeta de casca e gema estima tanto como a cidade que todos os dias vai desaparecendo um bocadinho. Sem que a cidade que surge em seu lugar raramente tenha o mesmo encanto e a mesma personalidade daquela a que sucedeu (não é nostalgia tacanha, é mesmo verdade).
O amor que Marina Tavares Dias tem a Lisboa só é igualado pelo seu arquivo fotográfico sem fundo. Este novo livro assinala também os 25 anos da publicação na imprensa dos primeiro textos da autora, e tem na capa um Saldanha de que hoje só se recordam os mais velhos do que eu, quase sem trânsito, com a rotunda central ainda arrelvada, o célebre "prédio do anjo" à esquerda (onde terá ido parar a estátua?) e um recém-inaugurado e imponente Monumental, que parecia ir durar para sempre (mal sabíamos nós a tristeza em que acabaria). Não fosse Marina Tavares Dias e, alfacinhas ou não, seríamos uns desmemoriados de Lisboa.
O outro livro é também uma preciosíssima memória fotográfica, agora de um homem de quem todos os portugueses gostavam e que viam como um próximo, quase como família. A Fotobiografia de Vasco Santana, de Luís Trindade, pertencente à colecção Fotobiografias do Século XX, é um tesouro jubilatório de imagens da vida e da actividade profissional de um dos actores mais geniais e bem-amados dos portugueses. E além das fotografias, ficamos a saber coisas como esta: certa vez, nos anos 40, Salazar, ao ver Vasco Santana passar na rua, mandou o motorista abrandar e saudou--o pelo nome da personagem de um dos seus filmes.
História real, passada numa Lisboa desaparecida, mas que continua de pé nos livros de Marina Tavares Dias.