A ideia de que Lisboa pertence aos lisboetas, como todas as ideias absurdas, parte de uma falácia, que é a de achar que há lisboetas e que, se houvesse, mereceriam mais Lisboa do que os outros, os ditos não lisboetas. Deve ser assim em todas as autárquicas, mas nestas os candidatos parecem especialmente acometidos de várias formas de lisbonismo. Acredito que acreditem no que dizem, mas também suspeito que deve ter dado isso nos focus groups, que em Lisboa a maior preocupação é o turismo, o preço das casas no Chiado, e a falta de autenticidade da loja Fantástico Mundo da Sardinha no Rossio. First world problems, portanto, numa agenda transversal que une o arco da sofisticação ao arquinho e balão..Quem são os lisboetas? Quando falamos de uma Lisboa para os lisboetas estamos a falar de quê? De uma Lisboa para mim, que aqui nasci e vivo? Mesmo com um pai açoriano e uma mãe transmontana, e tendo vivido dois anos nos Estados Unidos? E a minha mulher, que nasceu em Viseu e veio para cá estudar? Ou é preciso ser dos quatro costados? É que isso quase ninguém é, nem os meus filhos. Fernando Medina nasceu no Porto, Teresa Leal Coelho em Moçambique, Assunção Cristas em Angola, Ricardo Robles em Almada. João Ferreira, o único que nasceu em Lisboa, vive em Bruxelas há oito anos. São lisboetas? E a investigadora americana da Fundação Champalimaud que está cá há quatro anos a cuidar dos cancros das nossas tias? E a brasileira ilegal da Rua de Arroios é lisboeta? É preciso ter papéis? Que papéis? Conta o chão onde se nasce, o sangue que corre, a cama onde se dorme? Ou é por número de anos que cá se mora, corvo de prata mais de 25 anos de residente, corvo de ouro 50, 75 de platina, com cerimónia nos Paços do Concelho, e direito a estacionamento preferencial, entrada nos museus sem fila, e direito de veto a franceses no prédio (corvo de ouro dá três votos na assembleia de condóminos). E o miúdo que vem de Leiria para o Técnico daqui a três anos se continuar a ter boas notas? Um artista português que vem do Funchal para cá viver há dois anos é lisboeta? E se for um catalão de Barcelona já não conta? Os que estão cá hoje têm o direito de impedir os de amanhã?.O problema é com os estrangeiros? É que às vezes parece que é. Ou é com os ricos? Ou é com os pobres? Quando se diz que se quer permitir aos lisboetas viverem em Lisboa, é um raciocínio que para ter a mínima lógica - formal, claro - tem de implicar excluir alguém, e alguém que já cá viva, ou que provavelmente venha para cá, porque com certeza que não estamos a defender uma Lisboa em que as casas têm de ser para nós por oposição a serem para os novaplimucianos, habitantes de New Plymouth, na Nova Zelândia mesmo nos nossos antípodas. Então quem são estes não lisboetas que temos de regrar, regular, restringir? Está-se a querer excluir quem? Os portuenses remediados? Os paquistaneses pobres? Ou queremos apenas tirar os franceses ricos das casas que eles remodelaram em Alfama, e meter lá aquele que deles se queixa? E como é que vamos fazer? Por despejo municipal? Vamos voltar a controlar as rendas? É que convém lembrar que acabou muito bem décadas e décadas de congelamento de rendas. Nada como tentar resolver um problema aplicando a sua principal causa. Fazemos concursos públicos em que os concorrentes ficam graduados por lisboetismo? Um ponto por cada avô, zero cinco por cada ano de residência completa no concelho, zero três por cada ano completo de frequência de ensino, zero oito por ser sócio do Benfica, Belenenses, Oriental ou do Sporting..Não existem lisboetas com cartão de sócio ou sangue corvino. Lisboetas são os que forem, são os que cá estão, que cá estiveram, que cá passam e os que cá estarão. E a única coisa que temos de nos preocupar em dar-lhes é uma cidade que seja plural, pujante, criativa, digital, caótica, grande, poderosa, com oportunidades infinitas de realização - sejam eles quem forem. Que será tanto melhor quanto mais haja razões para este tipo de queixas..Recentemente no Público, num artigo de opinião, António Sérgio Rosa de Carvalho ("O mistério das lojas asiáticas") cola um conjunto de citações que lançam a suspeita sobre o negócio das lojas asiáticas. Começa fazendo "um convite aos ilustres jornalistas para traduzirem estas perguntas e questões em investigações, que possam contribuir para o desvendar deste mistério", e termina com um venturismo "o perigo de generalizações grosseiras e de estigmatizações ou mesmo de inaceitáveis discriminações de grupos étnicos exige-nos prudência e cautela, mas também não nos pode conduzir a uma paralisação e apatia impedidora, inibidora e neutralizadora dos mais básicos princípios de análise, dedução e discernimento daquilo que é evidente. Trata-se do equilíbrio e futuro de Lisboa!" Avancemos então, desinibidos e desneutralizados, sem apatia, nem paralisia, deduzentes e discerentes, analíticos até - porque suspeita do autor é fundada. É que como qualquer taxista de Lisboa lhe podia ter explicado há muitas lojas dos chineses em Portugal porque há um acordo comercial entre a República Portuguesa e a República Popular da China que confere benefícios fiscais às lojas dos chineses, que portanto não pagam impostos, e recebem o IVA todo de volta. A isto acresce que nunca morreu nenhum chinês em Portugal, e sempre que morre um eles mandam vir outro, porque são todos iguais e têm todos o mesmo nome, e mesmo que não tenham ninguém sabe. E têm crematórios privados e até quem diga que a carne vai para os restaurantes chineses (e o mistério dos restaurantes chineses?). Por isso é que há lojas dos chineses, nos sótãos das quais dormem aos vinte e trinta de noite, como se fossem pensões. Eu nunca vi, mas uma prima minha que trabalha na Baixa vê-os a entrar ali pelas nove, nove e meia. E é assim com os asiáticos em geral, sem generalizar, muito menos grosseiramente. Lisboa aos lisboetas, lojas asiáticas aos lisboetas, já. Nem que seja preciso erguer uma muralha, ou partir umas montras.