Lisboa. A cidade vista por quem a escreveu

Tradutor para neerlandês de autores como Fernando Pessoa, José Saramago, Clarice Lispector ou José Eduardo Agualusa, Harrie Lemmens tem uma paixão assumida pela capital portuguesa. Dedicou-lhe agora o livro <em>Luz de Lisboa</em>, que será apresentado esta quarta-feira, na Biblioteca das Galveias.
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Pode amar-se uma cidade como se fosse de carne? Quem ler Luz de Lisboa - A Cidade aos olhos de um holandês, que a Contraponto acaba de publicar, tenderá a acreditar que sim. Escrito pelo tradutor Harrie Lemmens (com fotografias da sua mulher, Ana Carvalho), este livro, se precisarmos mesmo de o definir, parece-se, antes de mais, com uma longa carta de amor à capital portuguesa, enviada por quem nela viveu nos anos de 1980 e se tomou de amores pela sua claridade. Um pouco como aconteceu à poetisa brasileira Cecília Meireles (1901-1964) que escreveu em "Evocação lírica de Lisboa": "Entras numa torre que está mergulhada na água. E pensas em condenados que se puderam desfazer em limo, em alga, cujo suspiros devem andar incorporados ao lamento das ondas, cujas lágrimas se foram como ribeiros ao rio, e do rio a todos os oceanos onde estarão até quando nunca mais se chorar."

Cecília Meireles não entra no elenco de Lemmens mas estão lá muitos outros autores (a maioria por si traduzidos para neerlandês) como António Lobo Antunes, José Saramago, Fernando Pessoa, Almeida Faria, Bruno Vieira Amaral, Dulce Maria Cardoso, Gonçalo M. Tavares, José Eduardo Agualusa (que também prefacia a obra), Rui Cóias, Yvette K. Centeno, José Luiz Tavares, entre outros. Assim cumpre o autor a sua missão de mensageiro da língua portuguesa, como escreve Agualusa: "Língua era o nome que os viajantes portugueses davam aos seus tradutores, em épocas passadas, nos sertões de África e das Américas. Harrie Lemmens é o nosso língua na Holanda. Ao longo de décadas tem-se esforçado, com poucos ou nenhuns apoios, para apresentar-se aos leitores de língua neerlandesa, na Holanda e na Bélgica, o vastíssimo mundo onde se fala português."

E assim avança o livro, entre as palavras dos escritores e as memórias pessoais do holandês: do Campo das Cebolas, onde ele se apeou de um autocarro arcaico em 1985, à Ponte Vasco da Gama ou a bairros afastados dos roteiros turísticos como Benfica. No Campo dos Mártires da Pátria, onde em jovem frequentava a biblioteca do Göethe Institut, Hemmens reencontra as ruas que António Lobo Antunes conheceu enquanto psiquiatra do Hospital Miguel Bombarda, como deixou eco em Memória de Elefante ou Conhecimento do Inferno: "Nunca saí do hospital, pensou ele: os sócios a quem dava alta desciam a alameda a caminho do Campo de Santana, olhavam as casas, as rolas, as pessoas, os automóveis e regressaram à pressa apavorados por uma cidade a que se desabituaram, pela complicação do trânsito, pela atrapalhação sem possível saída das ruas (...)"

Mas também há o registo das visitas do autor a casa de António Lobo Antunes, na altura situada nas imediações do hospital, toda ela forrada a livros e a citações literárias, que o próprio escritor semeava a lápis nas paredes brancas. As impressões pessoais que Lemmens vai deixando sobre a cidade são, aliás, deliciosos testemunhos de um mundo que se vai desvanecendo, em melancólico fade out, como este: "Os três irmãos da Pastelaria Deguimbra fazem-me sempre lembrar as três irmãs de Tchekhov, embora eles, ao contrário dessas gralhas sonhadoras, cortem fiambre em fatias e tirem bicas da máquina sem trocar quase uma palavra. Também fechados num mundo onde estão condenados a ficar para toda a eternidade." Ou o encontro de Lemmens com o ator e encenador José Peixoto na extinta Cervejaria Solmar. "com uma decoração que parece retirada do filme de Fellini, La Dolce Vita (...)."

Neste amor pela cidade que considera sua há também exasperação e desgosto (como tantas vezes acontece nos grandes amores): "(...) Lisboa também tem os seus descartáveis, os que desistiram ou os que foram postos de parte pela sociedade", escreve a propósito do Martim Moniz, cuja desordem urbanística, eternizada durante décadas, reflecte o caos das vidas que vai acolhendo: "como se a própria praça não soubesse o que fazia ali e como se Lisboa não soubesse o que fazer com ela (...). E, deste modo, a praça permanece o patinho feio de Lisboa." Ou ainda a memória do malfadado dia de Abril de 1506 em que, a partir da Igreja de São Domingos, ao Rossio, os "pacatos" alfacinhas, aterrorizados por novo surto de peste, desencadearam a caça a judeus e cristãos-novos, com os corpos a serem amontoados numa enorme pira que causou horror aos estrangeiros que então estavam na cidade.

Depois, Lemmens segue os vivos e mortos a quem já serviu de "língua". Fernando Pessoa, antes de mais, de quem cita sobretudo O Livro do Desassossego, assinado pelo heterónimo Bernardo Soares: "Se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a vida, porém num lugar diferente (...). Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas (...)".

Mas também lá estão Eça de Queiroz e Cesário Verde, homens que dedicaram a Lisboa algumas das suas palavras mais inspiradas. Como este excerto de A Capital, em que Eça não esconde a emoção estética que lhe desperta a cidade ao sol: "No largo, a manhã resplandecia. Depois dos dias de chuva, aquele sol delicioso dava à cidade a alegria de um renascimento: até dois moços que num pátio lavavam uma carruagem a baldes de água e os galegos que palravam à beira do chafariz pareciam tão satisfeitos como os canários que gorjeavam nas janelas."

Sobre este belo livro de Harrie Lemmens, que dá a ver Lisboa pelos olhos de quem ao longo dos séculos a foi escrevendo, apenas dois reparos. Que não se refira José Rodrigues Miguéis, autor de alguns dos mais belos livros alguma vez escritos sobre a cidade (como Escola do Paraíso ou Saudades para Dona Genciana) e ainda o facto de Lemmens falar da desaparecida Feira Popular como se esta tivesse funcionado sempre em Entrecampos. Não foi assim: na sua primeira versão, o parque de diversões mais famoso da cidade inaugurou a 10 de Junho de 1943, mas na Palhavã. Só em 1961 s e mudaria para Entrecampos, onde muitos de nós ainda o conhecemos. Fechou portas, para não mais voltar, em 2003.

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