Linguagem, política e democracia

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1- Nesta campanha eleitoral para as autárquicas fomos surpreendidos por um candidato de um partido parlamentar, o PSD, que usa de uma linguagem, escolhe temas de debate político e exprime-se à maneira de Trump. Nas suas intervenções públicas fica claro que o debate político é entendido como um campo de batalha e que a linguagem é uma arma que serve em primeiro lugar para aniquilar o adversário, tratado como inimigo. O objetivo do seu discurso não é esclarecer, debater ou argumentar, mas apenas destruir o outro, para isso valendo tudo. Desde não ouvir, nem deixar falar, até insultar e fazer eco de todo o tipo de preconceitos básicos.

2- Sossegados no nosso canto do mundo, pensávamos estar protegidos dos temas mais populistas bem como dos modos e da linguagem grosseira de políticos como Donald Trump, Beppe Grillo, Marine Le Pen ou Geert Wilders. Que isso era uma coisa externa. De facto, os desmandos de linguagem, que no passado marcaram declarações públicas de Alberto João Jardim ou de Carlos Candal, para dar apenas dois exemplos conhecidos, nunca foram sistemáticos mas pontuais, nunca ultrapassaram certos limites, como os do racismo e da xenofobia, nem tiveram seguidores.

3- Choveram críticas e manifestações de indignação ao Beppe Grillo português, mas houve também tentativas de justificação. Novos arautos do populisticamente incorreto vieram a público explicar que se trata de um discurso autêntico, verdadeiro e expressivo, de alguém que fala com o coração, com emoção, dando voz aos sentimentos das pessoas comuns, sem amarras e enfrentando todos os tabus. Argumentam ainda que, em nome da defesa e proteção do valor da liberdade de expressão, não se devem criticar e condenar os desbragamentos de linguagem nos discursos políticos, nem a grosseria ou a má educação. As críticas e as manifestações de indignação são entendidas como tentativas de policiamento, de controlo moral e de censura. É como se a liberdade de expressão não incluísse a crítica da incorreção política que é defendida em nome dessa mesma liberdade.

4- O uso de uma linguagem agressiva, grosseira e ofensiva não é um exclusivo dos tempos modernos. O abastardamento da linguagem política foi no passado um produto da emergência de ditaduras militares ou civis, servindo para ditadores populistas marcarem a distância em relação às elites e simularem a identificação com o povo. A relação entre a linguagem ordinária e o populismo resulta da redução do espaço da racionalidade na política, do apelo às emoções e do derrube dos mecanismos de controlo emotivo. A ausência de racionalidade e a quebra dos limites morais à expressão das emoções mais intolerantes através de uma linguagem agressiva tornam mais fácil o preconceito e a criação de bodes expiatórios que são afinal essenciais para a afirmação das lideranças populistas.

5- Porém, como bem explicou Norbert Elias, o controlo das emoções, que inclui o controlo da linguagem, foi e continua a ser essencial para a pacificação do mundo, uma das bases do processo civilizacional. A racionalidade, o conhecimento, o controlo das emoções e da linguagem criam barreiras à expressão dos preconceitos que alimentam todo o tipo de discriminação, seja ela racista, xenófoba, homofóbica ou sexista. Pelo contrário, a linguagem política sem baias, grosseira e agressiva é, na realidade, profundamente iliberal e imoral. A expressão de preconceitos abjetos, mesmo que correspondam a sentimentos populares, representa a barbárie e a rejeição dos valores da liberdade individual, da individualização e da igualdade entre todos os cidadãos. Tolerar tal linguagem significa aceitar uma profunda regressão civilizacional.

6- Conhecendo-se as consequências desastrosas do abastardamento da linguagem política, não se compreendem as reações dos partidos políticos parlamentares às declarações e propostas do candidato do PSD em Loures. Até agora, apenas o CDS teve uma posição clara de rejeição daquelas declarações e propostas, em contraste com a falta de clareza e acutilância de PS e PCP e com a confusão feita pelo BE entre política e justiça. O PSD, esse, é cúmplice ou mandante, tendo em conta que mantém no palco o candidato que decidiu importar de vez para Portugal o estilo dos populistas autoritários, talvez em fase de teste tendo em vista outras campanhas.

Adenda. O problema da linguagem na política será o tema de uma conferência na London School of Economics (LSE), no dia 17 de setembro, com o título Politics and Language in the Age of Trump. O conferencista Mark Thompson, ex-diretor-geral da BBC e atual CEO da New York Times Company, publicou, em 2016, o livro Enough Said: What's Gone Wrong with the Language of Politics?, que suscitou inúmeras recensões e entrevistas. Basicamente, desenvolve o argumento de que o uso de uma linguagem política em que se consideram legítimas todas as armas linguísticas, visando apenas matar politicamente o outro, tem consequências desastrosas para a liberdade e a democracia. Vale a pena acompanhar uma conversa com o autor promovida pelo The Economist (http://www.economist.com/topics/mark-thompson).

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