Existe uma Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dá conteúdo ao objetivo, declarado no texto da Carta das Nações Unidas, de "reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e mulheres e das nações grandes e pequenas". Estes textos foram escritos exclusivamente por ocidentais, e tinham a ambição, não considerada utópica, de acabar com as discriminações, quer internas quer entre países ou áreas culturais, religiosas ou étnicas. Os EUA podem orgulhar-se de alguns textos que ficaram inscritos na história do progressivo respeito pela igual dignidade dos seres humanos e dos países em que se encontrassem divididos. Os países ocidentais que aderiram, infelizmente sem evitar que o processo fosse viciado por violências militares, inscreveram nas suas Constituições o respeito ativo por tais declarações. Portugal não foi uma exceção, e fixou logo em 1976 que a orientação dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais seria a de respeitarem a harmonia com a Declaração Universal de Direitos do Homem, como que a assegurar também a coerência das interpretações judiciais da legislação que viesse a ser promulgada nesse domínio. Embora seja certo que a igualdade dos Estados, na Carta da ONU, só ficou realmente consignada quanto à igual dignidade de todos, porque quanto à hierarquia do poder o Conselho de Segurança não evitou o direito de veto. Isto não permite a qualquer dos que, ainda que apenas formalmente sejam considerados grandes potências, mantenham tal privilégio, porque os factos vão alterando essa inicial realidade, se considere legitimado para ignorar a obrigação de respeitar a igual dignidade de todos os outros. É absolutamente necessário, com larga experiência histórica, que a legalidade tenha um poder judicial independente ao serviço da autenticidade que os princípios exigem. Acontece que, neste domínio, os EUA, que na data da assinatura da Carta da ONU eram considerados a mais poderosa potência militar, não ignoravam que uma ordem jurídica, com vocação global e mundial, implica uma jurisdição, de tal modo que não hesitaram em introduzir a retroatividade das leis penais para julgarem e condenarem à morte os responsáveis pelas brutalidades da Guerra Mundial de 1939-1945. Todavia não ratificaram o estatuto do Tribunal Penal Internacional, com hesitações partilhadas por presidentes sucessivos, incluindo Clinton que assinou mas não enviou ao Senado, opresidente Bush que se declarou perentoriamente contra, e o próprio Obama, que tantas frustradas esperanças deixou pelo caminho da sua brilhante doutrinação, não foi capaz de alterar a situação. Acontece agora que a intervenção do tribunal foi pedida, a respeito, como largamente os meios de comunicação anunciaram, de crimes eventualmente cometidos pelas forças norte-americanas, pelos talibãs e pelo exército afegão, ao que os EUA responderam de facto ameaçando com sanções que atingiriam os juízes do Tribunal Penal Internacional, a que não pertencem, mas pertence por exemplo o Afeganistão, facto a que, com a esperada dignidade e independência, o tribunal entendeu responder que vai continuar com o cumprimento do seu dever, que é verificar e decidir sobre o fundamento da petição. O erro inadmissível pela comunidade internacional, a começar pela Assembleia Geral da ONU, é que os EUA se considerem, pela atual presidência, legitimados para assumir o privilégio de "libertar por todos os meios necessários" qualquer cidadão americano detido por ordem do tribunal. Já foi um abuso, ainda não completamente extinto, o direito com que, no passado próximo na história, longo para as vítimas, se permitiu espalhar pelo estrangeiro, com expressão especial em Cuba, prisioneiros seus, alguns sabidamente inocentes. Portugal foi também incomodado seriamente com a suspeita, nunca comprovada, de ter consentido. Mas a Assembleia Geral da ONU, por sua vez, é que não pode ficar omissa. Não se trata da hierarquia de poderes estaduais desiguais, e por isso a exibirem uma liberdade arbitrária, trata-se do corolário da igual dignidade das nações que implica, a favor da paz, a jurisdição independente e respeitada dos tribunais de competência supraestadual, a qual inclui a de se declararem competentes ou não para julgar. Na desordem em que se encontra a governança do globalismo, tem de reconhecer-se que os tribunais internacionais são das instituições criadas as que têm demonstrado mais respeito pela integridade dos valores que inspiraram os fundadores da ONU. O esquecimento disso tem limites.