Lídia Jorge, o ano de todos os prémios

Em Portugal, o ano literário foi marcado pelos vários prémios nacionais e estrangeiros ganhos pelo romance de Lídia Jorge, <em>Misericórdia</em>. Uma história de envelhecimento e morte, em que convivem drama e comédia. Como na vida.
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Maria Alberta, a quem também chamam Dona Alberti, é uma das residentes do lar para idosos Hotel Paraíso, mas se a noite a assusta e o corpo lhe fraqueja, nem por isso a abandonam o prazer, o sonho, a curiosidade e até um certo tom despótico que usa na relação com a filha. Sobre si mesma, ela dirá: "Mas eu tenho este feitio, quero demais, mando demais, amo demais alguma coisa que não alcanço, e quando não a atinjo, procuro desesperadamente transformar o que existe (...)." Tudo isto acontece no último romance de Lídia Jorge, Misericórdia, em que esta protagonista, ainda consciente de si mesma, é acompanhada por um leque de personagens, entre pessoas cuidadas e seus cuidadores, que desfazem qualquer ideia maniqueísta que se possa ter sobre estes espaços e sobre esta faixa etária, pouco tratada pela Literatura. São pessoas reais, contraditórias nas suas pulsões, vivências, medos e anseios.

Como Lídia Jorge há muito nos habituou nos seus livros, também Misericórdia suscita a reflexão sobre as dificuldades do momento histórico que nos foi dado viver e o modo como a ele reagimos. Essa capacidade de partir de uma história particular, no caso inspirada pela própria mãe da escritora, para o geral da condição humana face a situações inevitáveis como o envelhecimento, a decadência física e mental e, finalmente, a morte, tocou especialmente júris de vários prémios nacionais e estrangeiros, tornando 2023, nesse particular, um ano de muito sucesso para a escritora. Com efeito, o romance Misericórdia, publicado em 2022, venceu, em França, o Prémio Médicis Étranger, ex aequo com o romance Impossibles Adieux,da sul-coreana Han Kang. Anteriormente, já fora distinguido com o Prémio Fernando Namora, por unanimidade, o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, os prémios Urbano Tavares Rodrigues, o romance do PEN. Clube Português e ainda o de Melhor Livro Lusófono publicado em França. Antes disso, em Abril deste ano, já Lídia recebera o Prémio Vida Literária Vítor Aguiar e Silva, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores e pela Câmara Municipal de Braga. Para além destes prémios, nos últimos meses, a autora multiplicou-se em presenças em eventos internacionais como a Feira do Livro de Guadalajara (México), um dos certames mais importantes do mundo no seu género.

Embora o sucesso de público e crítica de Misericórdia o torne um caso particular na bibliografia ativa da escritora, há uma coerência formal entre este livro e os que o precederam. Em entrevista ao DN (20/11/2022) a propósito da publicação deste romance, Lídia Jorge falava-me da contaminação da narrativa pela realidade vivida, um processo narrativo que lhe é caro: "Claro que esta é uma outra realidade, como acontece na construção de qualquer obra de ficção. É-me muito difícil deslindar a realidade que a minha mãe viveu do mundo ficcional que criei. Há uma zona de transfusão entre a experiência vivida e a experiência sonhada que é difícil de dissociar."

E tal como sempre acontece nas suas obras (como nas intervenções públicas, incluindo entrevistas) Lídia Jorge faz da vida literária um posto de observação sobre o mundo. Como, aliás, nos dizia na mesma entrevista, concedida há pouco mais de um ano: "Neste momento, o meu maior receio é que os governos não tenham atenção às pessoas mais frágeis e que estas sejam manipuladas pelos extremistas dum lado e de outro, sobretudo os de extrema-direita, que, em meu entender, têm menos baias morais porque defendem a divisão dos seres humanos entre os que prestam e os que não prestam, os que fazem fortuna e os que não conseguem e que cada um fique onde está. Vimos isso muito bem na cartilha do Trump, que chegou a troçar publicamente das pessoas com deficiência. Disse coisas abomináveis sobre as mulheres e os pobres. A extrema-direita defende o darwinismo social. É, por isso, que a confusão entre extrema-direita e extrema-esquerda é perniciosa no sentido em que não é esclarecedora." Por causa desta atitude reflexiva, constante ao longo da sua carreira, a escritora sucedeu a Eduardo Lourenço, falecido em dezembro de 2020, como conselheira de Estado.

Lídia Jorge, nascida em Boliqueime (Algarve) em 1946, estreou-se na Literatura em 1980, com a publicação do romance O Dia dos Prodígios. Seguiram-se O Cais das Merendas (1982) e Notícia da Cidade Silvestre (1984), ambos distinguidos com o Prémio Literário Município de Lisboa, o primeiro dos quais em 1983, ex aqueo com Memorial do Convento, de José Saramago. Mas seria com A Costa dos Murmúrios (1988), livro que reflete a sua própria vivência em Moçambique nos últimos anos da Guerra colonial, que a autora confirmaria o seu destacado lugar no panorama da ficção nacional. Depois dos romances A Última Dona (1992) e O Jardim sem Limites (1995), viriam O Vale da Paixão (1998) O Vento Assobiando nas Gruas (2002), Combateremos a Sombra (2007, recebeu em França o Prémio Michel Brisset ,atribuído pela Associação dos Psiquiatras Franceses). Com chancela da Editora Sextante, publicou, em 2009, o livro de ensaios Contrato Sentimental, reflexão crítica sobre o futuro de Portugal. Seguiram-se o romance A Noite das Mulheres Cantoras (2011) e Os Memoráveis (2014). Em 2018 publicou Estuário,[sobre a vulnerabilidade do tempo atual.

Para teatro, Lídia Jorge escreveu textos como A Maçon (levada ao palco do Teatro Nacional Dona Maria II pelo recentemente falecido Carlos Avillez, com Eunice Muñoz no principal papel) e Instruções para Voar.

Ao longo da sua carreira, Lídia Jorge recebeu numerosos prémios (para além dos deste ano), entre os quais o Correntes d"Escritas, em 2004, Prémio Albatros, da Fundação Günter Grass, em 2006, e o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas, das Feira do Livro de Guadalajara, no México, em 2020.

Segundo a editora portuguesa da escritora, Misericórdia tem "já os direitos de publicação vendidos para Espanha (La Umbria y La Solana, editora que tem uma coleção de livros portugueses e já publicou vários títulos de Lídia Jorge), Alemanha (Secession), Colômbia (Tragaluz). A edição mexicana foi lançada na Feira Internacional do Livro de Guadalajara, que se realizou entre 25 de novembro e 3 de dezembro.

No princípio do ano, Portugal verá ainda a adaptação ao cinema do romance O Vento Assobiando nas Gruas, realizado pela suíça (há muito radicada em Portugal) Jeanne Waltz, que teve estreia mundial em Nova Iorque, em outubro passado. As filmagens foram feitas no Algarve, com equipas técnicas e artísticas portuguesas e cabo-verdianas, sendo o elenco composto por Rita Cabaço, Milton Lopes, Beatriz Batarda, O filme conta ainda com Maria Fortes, Beatriz Batarda, Isabel Muñoz Cardoso, Clara Maciel, Rúben Garcia, João Lagarto, Romeu Runa, Ana Zanatti e Dino d"Santiago.

Este é o segundo romance de Lídia Jorge adaptado ao Cinema. Em 2004, estreou A Costa dos Murmúrios, realizado por Margarida Cardoso, com interpretações de Beatriz Batarda, Mónica Calle, Filipe Duarte e Adriano Luz, entre outros.

Sempre combativa, ainda que no seu modo suave, Lídia Jorge causou grande impacto no verão passado, quando na Universidade Menendez Pelayo, em Santander, afirmou que a literatura é "a arte mais formativa de todas" já que alimenta a invenção e a ajuda a distinguir o fictício do real, dizendo mesmo que "há muitas fake news porque as pessoas deixaram de ler Literatura".

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