Lições do Afeganistão

São comandos e fuzileiros portugueses e foram para o outro lado do mundo com uma dupla missão: manter a paz e ajudar a reconstruir um país devastado. Mas manter a paz significa muitas vezes fazer a guerra. No momento em que os olhos do mundo estão novamente apontados para aquele país e para a presença de militares estrangeiros, eis as histórias, na primeira pessoa, das tropas portuguesas no Afeganistão. E o que aprenderam. Do medo à felicidade, passando pela perda e pela incerteza.
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Os afegãos conhecem bem a ameaça, o medo e a insegurança. Até já se tornou invisível e indolor. Vivem os dias com normalidade e não se surpreendem quando há notícia de atentados suicidas. Habituaram-se. A localização do país é uma faca de dois gumes. Estratégica, recheou a história do Afeganistão com invasões e rapidamente se tornou um alvo da guerra pelo fundamentalismo islâmico. A guerra civil contínua obrigou à intervenção norte-americana para derrubar os talibãs, os fundamentalistas que tentaram tomar o poder desde 1994.

No final de 2001, e depois da guerra propriamente dita, a NATO teve por missão tripla apoiar o novo governo afegão a estabelecer a lei, manter os talibãs na ordem e ajudar a reconstruir o país. Portugal fez naturalmente parte da Força Internacional de Assistência e Segurança (ISAF), composta por militares da NATO de todo o mundo. Logo nesse ano, vários portugueses foram recrutados para um país de terra batida, pé-descalço, sem acesso aos mais básicos confortos e com muito medo. Os relatos que ouvimos comprovam-no.

Contentar-se com o que há

O comandante Mariano Alves tem 26 anos de estórias na Marinha. Alto e entroncado, braços capazes de erguer um navio. Tem no olhar, no discurso, na atitude e perfil, a marca de homem experiente. Contudo, não fala das missões em que esteve presente. «Não interessa», remata.

Estava no quartel-general regional da NATO, em Itália, quando partiu em missão para o Afeganistão em 2002. O que mais o impressionou foi a quantidade de doenças que havia e como o acesso à saúde era vedado à população. «Antes da intervenção militar, uma em cada quatro mulheres morria ao dar à luz. Agora, os hospitais assistem centenas de pessoas por dia.» Pé ante pé, a mentalidade começa a mudar - e ele sente que fez parte dessa mudança.

O capitão-de-fragata Mariano Alves diz que o peso da responsabilidade de comandar é forte. É nessa altura que se sente o medo, o que «apoquenta mais quando não é connosco, mas com aqueles que dependem de nós». No dia a dia do Afeganistão, é a ansiedade que reina. «No teatro de operações sentia-se o peso da responsabilidade e a ansiedade do oficial general, quando todos os dias se despedia de cinco ou seis pessoas.» Despedir, na linguagem militar que usa Mariano, não é dizer «adeus, até logo». É preparar uma cerimónia fúnebre e dizer adeus para sempre.

Todos se sentem responsáveis, no teatro de guerra. Se forem dez ou vinte mil homens, a responsabilidade aumenta. «Havia um escritor que dizia que a única morte verdadeira que se sente na vida é a ansiedade daquilo que não fazemos. Cada pessoa desenvolve os seus próprios mecanismos de defesa deste "stress de guerra".» De volta a Portugal, o comandante tem-no combatido com treino, conhecimento e consciência da responsabilidade. «Todos cometemos erros, mas num teatro de operações, os erros pagam-se caro. Sentir que estamos a dar tudo o que temos no mais simples que fazemos é a melhor forma de sabermos que estamos a cumprir o nosso dever.» E continua a recusar-se a falar das missões em que participou, nem sequer do tempo que lá esteve.

Restou-lhe o que trouxe na bagagem: «Eles também têm muita coisa para nos ensinar», diz. Foi no Afeganistão que percebeu que mais importante do que procurarmos o nosso espaço é encontrá-lo na vida. As pessoas só são felizes quando se sentem bem onde estão e não quando procuram algo que não existe.»

Erguer o queixo depois da tragédia

Depois de ter comandado um grupo de trinta homens na segunda companhia operacional dos comandos, o capitão Camilo fez as malas e rumou aos EUA, em 2004. Um ano depois, seguia para o Afeganistão. Nos Estados Unidos fez um curso nos rangers durante cinco meses, unidade de elite de exército norte-americano, onde «bebeu da fonte», como gosta de especificar. «Eles têm a doutrina sempre atualizada», explica. Foi lá que ouviu falar pela primeira vez da técnica de combate usada no Afeganistão. Tudo o que conseguiu trazer de know-how tentou implementar em Portugal, com os seus homens.

Orientaram o treino para a missão Força de Reação Rápida (QRF) e, em agosto de 2005 foram projetados para o terreno. Durante seis meses desempenhou funções de adjunto do chefe do Centro de Operações Táticas (COT), onde planeavam as operações que recebiam da ISAF. Também trabalhavam com a Kabul Multinational Brigade, responsável por todas as operações na área da capital afegã. «Era o elo de ligação com esta brigada: ia às reuniões, nas quais recebia ordens, a informação era tratada e levava-a ao comandante da QRF», conta. Tinham sempre indicação de todos os avisos de ameaça para cada zona.

Chegou o dia em que o aviso não foi suficiente. «Sofremos um ataque a uma coluna que estava a patrulhar a área que nos tinha sido designada.» A primeira viatura que pisou o engenho explosivo improvisado (IED) fê-lo rebentar. O primeiro-sargento Roma Pereira morreu, houve um ferido grave e dois ligeiros. «Eu estava no COT e soube logo quando aquilo aconteceu. Tivemos de acionar todos os meios para conseguir prestar socorro imediato. E foi isso que aconteceu.»

A voz de Ricardo Camilo quebra pela primeira vez. Os olhos castanhos olham para a chávena de café já bebido. «O alerta para iniciar o movimento era de 15 minutos, mas saímos em cinco: um grupo de trinta homens, com ambulâncias e um meio aéreo italiano para retirar os feridos.» O mais grave foi socorrido no local e transportado para um hospital dentro do campo. Só quando estabilizou é que saiu do teatro de operações. Aos 35 anos, reconta o episódio pormenorizadamente, como se tivesse acontecido horas antes.

Injeção de adrenalina: é o que se sente num momento destes. Não há tempo para mais nada. «Para facilitar a coordenação, o meu comandante nomeou-me como oficial de ligação e enviou-me para a sala de operações da brigada. Fiquei junto de quem toma as decisões e fiz a ponte entre o nosso COT e o posto de comando da brigada. Tudo para garantir que toda a gente percebia exatamente o que estava a acontecer.»

Terminadas as tarefas, a adrenalina cedeu lugar à emoção. O primeiro-sargento Romão Pereira tinha muitos amigos na companhia. Esteve envolvido na reativação da especialidade de Comandos e tinha sido instrutor de vários oficiais e sargentos. «Conhecíamo-lo bem. As forças regressaram ao quartel e houve maior consciência do que aconteceu. Pensámos no apoio que era preciso dar à família, mesmo a sete mil quilómetros de distância.»

No dia seguinte, Ricardo Camilo veio cá fora ver o pessoal preparar as viaturas. Não houve risos, nesse dia, nem conversas de circunstância. Mas quando saíram, iam de queixo levantado. «Nenhum soldado bloqueou, nenhum sargento bloqueou, nenhum oficial bloqueou. Não houve nenhum militar que tivesse sido retirado por problemas psíquicos, por não aguentar a pressão do combate.»

Camilo voltou ao Afeganistão no ano passado, já como comandante de companhia. Comandou noventa homens numa missão diferente, a Force Protection. Objetivo: proteger os militares que estão a assessorar o exército afegão em várias áreas: operacional, formação, instrução básica aos soldados, logística, etc. Este grupo incluía trinta fuzileiros da Marinha Portuguesa e sessenta comandos do Exército. «A nossa missão era diferente, mas a ameaça continuava presente.»

Planear para tomar melhores decisões

O comandante Fernandes Gil, fuzileiro há 21 anos, pertencia a um dos grupos de mentores do exército afegão. Regressou em abril deste ano. «A natureza do conflito no Afeganistão é de tal forma complexa que o processo é contínuo, mas penso que estamos no bom caminho», diz. Sereno e rigoroso nas palavras, o capitão-de-fragata Fernandes Gil fala mais com o olhar do que com a boca. É quase preciso puxar as histórias com uma corda. «O trabalho feito pelos grupos que nos antecederam permitiram criar laços de confiança que facilitaram a nossa integração.» Até a barreira da língua foi mais fácil de ultrapassar. A meio da comissão, deu por si a tomar chá com oficiais afegãos e a falar de coisas banais, «com uma naturalidade tal que parecia que dominávamos a língua uns dos outros».

A paz não reinou sempre. Todos os dias saíam do local onde estavam instalados para trabalhar na base afegã, a uma distância que podia variar entre os sete e os 15 quilómetros. «O percurso variava, para quebrarmos rotinas.». Por isso eram rigorosos no planeamento. Defendiam-se com a consciência de que faziam tudo o que era possível para tomar a melhor decisão. Foi assim que reagiu quando sentiu a sua vida ameaçada através de telefonemas e mensagens anónimas, escritas em inglês. «É uma sensação estranha. Primeiro, não adianta dar importância, segundo, eu tinha funções de liderança. Não podia nem devia mudar o meu padrão de comportamento. Por isso, agi com normalidade.»

Sangue-frio em coração quente. Informou o superior do que estava a acontecer, tentou saber mais sobre a origem das ameaças, mas não havia muito a fazer. Pelo conteúdo, percebia que quem as enviava sabia exatamente onde trabalhavam e o que faziam. «O meu comportamento não devia ser alterado, porque poderia ser entendido como sinal de fraqueza. Não podia transmitir fragilidade», conta, sereno, como permaneceu ao longo da conversa.

Lidou com esta ameaça com disciplina e sentido de responsabilidade. Até que se foi habituando à sensação. «Há um processo de absorção do choque, uma racionalização do fenómeno e depois há uma resposta que julgamos ser adequada face às circunstâncias. As ameaças duraram um mês. A certa altura, respondi de forma mais agressiva. A partir daí acabou.»

Cuidar de todos os pormenores

António Castro já esteve quatro vezes no Afeganistão. Acabado de chegar da quarta missão, confessa que a pior sensação é estar longe da família. «Isso é o que custa mais. De resto, tudo se faz.» Foi em 2005 que sentiu o grande choque cultural: o Ramadão, a burka, o clima.

Dois anos depois, foi para Kandahar, onde teve algumas ações de combate. Uma das missões era revistar casas à procura de rebeldes. Foi num desses varrimentos de área que teve de utilizar a força. «Eles dispararam e tivemos de responder com fogo.» Em Kandahar, a ração era a de combate e a adrenalina ajudava a aquecer o corpo. Em oito meses, apanharam verão e inverno, com diferenças de temperaturas altíssimas. Com o seu corpo alto e esguio, o primeiro sargento comando António Castro confessa que o que custa mais é o frio.

«A ameaça residual chega para aquecer o corpo. Uma pessoa sabe que para sobreviver tem de estar atento, estejam as condições que estiverem», acrescenta o capitão Augusto também acabado de regressar do Afeganistão. O objetivo desta companhia era garantir a segurança dos mentores. Nunca sofreram um ataque, mas a ameaça era constante.

Agora, o que mais preocupa os militares são os carros-bomba, viaturas que vêm contra as colunas e as fazem explodir. «Durante o percurso a responsabilidade é nossa. Cada elemento vai numa viatura e tem um setor de tiro atribuído para verificar que não há nenhuma anomalia. Dentro dos locais de mentoria, éramos distribuídos de modo que, se houvesse algum incidente, pudéssemos reagir rapidamente», explica. Para o capitão Michael Augusto o segredo está em manter a operacionalidade grande, ou seja, treinando o tiro, as técnicas e as táticas de procedimento, porque é isso que lhes transmite confiança.

Fundamental é cultivar o pormenor, ser minucioso em todos os aspetos. «Os movimentos têm de ser devidamente planeados e executados. Esse nível de execução só pode ser atingido se houver um treino elevado. O Cristiano Ronaldo pode ser o melhor do mundo, mas ele também treina todos os dias», comenta. Em seis meses, a companhia executou 1580 missões e fez 78 mil quilómetros. «Fizemos quatro operações humanitárias com o exército afegão.» Na primeira, ofereceram livros e canetas às crianças de uma escola. Voltaram para dar computadores, colocar um portão e construir um campo de futebol. A outra operação ocorreu num campo de refugiados, onde ofereceram roupas e brinquedos.

Quando foi revelada a morte de Bin Laden, Michael Augusto e António Castro estavam no Afeganistão. O grau de ameaça aumentou nesse dia, mas não houve qualquer manifestação. O capitão Augusto é o mais novo dos militares entrevistados, mas fala com a convicção que todos partilham. Acha que, agora as forças da NATO vão sair do Afeganistão, a ameaça vai aumentar. «Quer queiramos quer não, a força no terreno é sempre dissuasora. Se desaparecer, penso que a situação se torna mais crítica. Acho que o exército afegão está mais bem preparado, mas não sei se está à altura desse tipo de ameaça. Esperemos que sim.»

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