Lições de Química: a cozinha como laboratório feminista 

Brie Larson é o rosto de uma série que mistura ciência, culinária, relações humanas, feminismo e patriarcado na Los Angeles dos anos 1950-60. Adaptação do<em> best-seller</em> de Bonnie Garmus, <em>Lições de Química</em> conforta e emociona com precisão microscópica. Em estreia na Apple TV+.
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Foi no século XIX que o laboratório químico se tornou "o modelo de cozinha", escreve o professor João Paulo André no livro Irmãs de Prometeu - A Química no Feminino (edição Gradiva), notando que essa divisão doméstica "passou a estar apetrechada de sacarímetros, panelas de pressão e material de vidro calibrado". Uma ideia interessante, até porque pouco explorada na sua literalidade: não é todos os dias que se perceciona a cozinha como espaço científico por excelência. Esse crédito pode agora ser dado à série Lições de Química, produção da Apple TV+, que apresenta a sua protagonista, Elizabeth Zott, entre tachos e travessas num estúdio de televisão, a transmitir ao público feminino americano as noções básicas da culinária - especificamente enquanto ato que desencadeia processos químicos nos alimentos.

Tal como a interpreta Brie Larson, Zott começa por ser o contrário de uma personalidade televisiva (na mesma medida em que Julia Child, pela sua aparência, não era para ter sido a estrela da culinária que se tornou). Vamos descobri-la como técnica de laboratório num instituto de investigação em plena década de 1950, a limpar recipientes e a servir cafés, apesar de ser formada em Química. Alguém que todos os dias vem munida com a sua marmita para o refeitório e que já fez lasanha 78 vezes... sempre com pequenos ajustes rigorosamente anotados, numa espécie de missão autoimposta para atingir o ponto em que a receita não carece de mais aperfeiçoamentos. E quem é que ouve esta inconfidência sem a achar esquisita? Um jovem químico do laboratório, Calvin (Lewis Pullman), também considerado pelos seus pares um pouco excêntrico nos hábitos, que acabará por se render ao charme discreto desta mulher parca em sorrisos, mas com uma mente encantadora e fervilhante. Entre os dois, o idioma amoroso é o vernáculo da química.

A série, criada por Lee Eisenberg a partir do best-seller homónimo de Bonnie Garmus (editado em Portugal pela Asa), concentra os seus dois primeiros episódios no romance destas almas gémeas da Ciência, a dada altura entusiasmadas com uma investigação conjunta e a partilha do lar. Sendo que a vida doméstica, para Elizabeth, não deve passar pelo casamento e constituição de família - ela deixa bem claro o seu desejo de se manter empenhada na investigação científica, enquanto projeto de vida, sem ceder às expectativas da sociedade. Por outras palavras, não será mais uma dona de casa naquela Los Angeles reprimida pelo patriarcado.

Enfim, nos restantes seis episódios de Lessons in Chemistry, as coisas não vão correr exatamente como o planeado pela nossa heroína. Desde logo, acrescentando-se o fator surpresa à "fórmula" que ela concebeu para si mesma: fica grávida, e é em parte para sustentar esta criança que o seu perfil fechado se vai adaptar ao meio televisivo, através do qual se tornará uma inspiração para outras mulheres. Não necessariamente uma inspiração ao nível de receitas e conselhos práticos de cozinha, mas na atitude perante a realidade que tentou limitar a sua realização profissional.

E neste aspeto, Lições de Química é apenas uma série bem posicionada na sua comunicação prévia, um retrato de espírito feminista que sabe em que pontos tocar e como espalhar no tabuleiro da ficção os bons e os maus. Mas o que lhe confere algo mais do que a perspetiva da protagonista é a consciência do ambiente à sua volta, desde a comunidade negra que compõe a vizinhança aos locais de trabalho que definem momentos diferentes da sua vida, e que fazem com que uma rede de personagens se deixe contagiar, ou até enternecer, pelo racionalismo desta mulher de armas científicas. Numa entrevista ao jornal The Guardian, a autora Bonnie Garmus foi a primeira a admitir a importância de descentrar a narrativa: "Nunca quis escrever apenas do ponto de vista de Elizabeth: o modo como os outros a veem e reagem a ela é, em última análise, o que impulsiona a história. Quimicamente falando, ela é a catalisadora - muda cada personagem com quem entra em contato." Inclua-se nesta categoria um cão chamado Six-Thirty.

Acima de tudo, o que se segue à doçura inequívoca dos primeiros episódios é um labor de nuances dramáticas que Brie Larson assegura com a mestria de atriz oscarizada. A expressão quase inflexível do seu rosto contém, em doses iguais, a inteligência, a coragem e a inocência social que tornam a presença de Elizabeth tão forte quanto vulnerável. Não obstante, conforme o tempo passa por ela, há uma energia jazzística (refletida na própria banda sonora) que suaviza a amargura do drama da personagem. Lições de Química funciona sobretudo nessa faixa de maturação humana e das relações que baralham o esquema previsível da existência feminina.

Se fosse uma figura verídica, o que seria então previsível para Elizabeth? "Nos primeiros tempos, a obtenção de um curso superior por uma jovem mulher não lhe garantia, necessariamente, um futuro sem preocupações. Ao abrirem as portas ao sexo feminino, as universidades pouco ou nada tinham pensado sobre o que as suas discentes poderiam fazer com os respetivos diplomas (dando-se até o caso de algumas instituições nem os atribuírem!)", lê-se em Irmãs de Prometeu. E há mais: "Eram muito poucas as que, de um universo já por si restrito, entravam no mundo da investigação científica, para o que a ligação a um professor ou investigador era praticamente inevitável". Lições de Química põe à vista esse panorama, que ainda se fazia sentir nos anos 1950, mas acrescenta ao cinzentismo natural da história o que pode ser lido como uma fantasia de época, à semelhança da cozinha falsa do programa de televisão da protagonista. Fica-se a sonhar com a existência de Elizabeth Zott e a transformação da mentalidade de umas quantas donas de casa. No fundo, aí reside algo do conforto da boa ficção: agarrar-nos pela possibilidade de reescrever um bocadinho a(s) história(s).

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