Licenciamento urbanístico nas mãos do Governo com autarquias em total oposição
O diploma que abre as portas à simplificação do licenciamento urbanístico, já aprovado na especialidade (artigo a artigo) na Assembleia da República, vai seguir para as mãos do Governo com uma extensa lista de alertas - e críticas - sobre os riscos de algumas das medidas propostas. Além das ordens profissionais mais diretamente implicadas nesta matéria, também os municípios levantam muitas reservas às medidas enunciadas na proposta de lei - uma autorização legislativa que, uma vez aprovada em votação final global, deixará então ao Executivo a definição concreta das novas regras.
A Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) deu, aliás, um parecer "desfavorável" ao diploma que vai agora nortear a legislação posterior do Executivo. No documento entregue no Parlamento, a ANMP refere que foi ouvida pelo governo em março passado, sobre uma primeira versão da proposta, e que já então "rejeitou contundentemente que a comunicação prévia passasse a ser a regra e o licenciamento ficasse reservado para obras de urbanização e loteamentos". Tal como "alertou para a gravidade das consequências se se avançasse com a dispensa da apreciação do projeto de arquitetura pelos serviços municipais, pois o ordenamento e planeamento são fruto da concertação e construção conjuntas, em especial entre projetistas e serviços municipais". Problemas que, dizem os municípios, não só não foram resolvidos "como se adensam e agravam" na versão final que chegou ao Parlamento, resultando num conjunto de propostas "alheadas da realidade e, pior, comprometedoras dos avanços conseguidos nos últimos 30 anos em matéria de urbanismo e planeamento". Para a ANMP, esta "forma de legislar não agiliza a administração, fragiliza-a".
Dadas as atribuições que lhes cabem nesta área, os municípios sublinham que são "a chave para uma coexistência salutar entre as operações urbanísticas e o ordenamento do território, sendo o princípio do controlo prévio o grande garante do equilíbrio entre a pretensão individual e o interesse coletivo" no que respeita ao urbanismo. E defendem que está em causa um "desiderato público, preventivo" que em nenhuma circunstância pode ser visto como um mero custo de contexto.
No parecer, a ANMP reivindica "uma verdadeira simplificação e não, a pretexto desta, a mera facilitação e desresponsabilização a que se assiste" na proposta de lei. "Eliminar importantes competências municipais de controlo urbanístico representa um claro retrocesso no que respeita ao controlo da qualidade e segurança do edificado - que somente a intervenção, apriorística, dos poderes públicos, tem condições de sindicar e garantir -, e acarretará custos económicos e sociais avultados, de muito difícil, senão impossível, reparação", alertam as autarquias.
Uma das questões que merece particulares críticas da associação que representa os municípios - e onde os socialistas estão em maioria - é a eliminação dos alvarás de operações urbanísticas, um título "fundamental", por "razões de certeza e segurança jurídica, de garantia do interesse público e de proteção dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares e dos cidadãos". Reparos que ainda sobem de tom face ao previsto encurtamento dos prazos de apreciação das autarquias, medida que será acompanhada do deferimento tácito dos processos quando os municípios ultrapassem os prazos legais. O que "não é, de todo, admissível", diz a ANMP: "No limite, abriria a possibilidade de um pedido de licenciamento manifestamente ilegal ser executado nas condições que o promotor unilateralmente defina, sem pagamento de taxas e até sem garantia de que o município tenha conhecimento do deferimento tácito". E se, à luz da proposta, a violação dos prazos legais pelos serviços municipais dará lugar a sanções financeiras, a ANMP responde que esta é "uma medida completamente inaceitável e gravemente lesiva dos princípios do Estado de Direito", na medida em que contempla a "aplicação de uma sanção grave sem qualquer decisão judicial".
Entre as muitas críticas, a ANMP aponta ainda a "absurda ausência de um regime transitório" para aplicação das novas regras, "agravada pela insensata aplicação aos processos pendentes".
Ao documento da ANMP junta-se um parecer da Câmara do Porto (que deixou a associação de municípios em 2022), de teor bem menos crítico, e que fala em "iniciativas de simplificação claramente desejáveis". Mas, face à "magnitude das alterações propostas e uma vez que são introduzidas normas incongruentes e conceitos conflituosos entre si", a autarquia liderada por Rui Moreira defende a elaboração de um novo Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE). Também num parecer próprio, a Câmara de Sintra fala numa "manta de retalhos" e aponta uma outra questão: "A revogação da necessidade de autorização de utilização para as transmissões de imóveis pretende facilitar a comercialização de imóveis ilegais?".
As críticas da ANMP juntam-se aos reparos de arquitetos, engenheiros e urbanistas, com reservas comuns às dos municípios, caso da eliminação do alvará de licença de construção ou o deferimento tácito das licenças. A limitação à capacidade de as autarquias intervirem no urbanismo das cidades é, aliás, um ponto recorrente.
A votação na especialidade do programa "Mais Habitação" prossegue esta semana, com algumas das medidas mais polémicas do plano, como é caso das novas regras para o alojamento local ou do arrendamento coercivo.
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