Após a morte do coronel Muammar Kadhafi, em outubro de 2011, a Líbia passou por várias guerras civis, que geralmente o grande público resume e generaliza para "guerra civil". Até à morte do ditador, o que aconteceu foi um todos-contra-um, com população e milícias à caça de Kadhafi, família e das poucas tribos do sul profundo (20% do total das "tribos pretorianas") que continuaram fielmente ao lado do patrono. Não foi uma guerra civil, foi um momento de consenso unificador contra um homem e tudo o que ele representava, foi um momento de rutura libertadora. De tal forma, que marcou a agenda dos alinhamentos seguintes, bem como das dinâmicas das mudanças súbitas, uma marca-de-água da Líbia pós-Kadhafi das 124 tribos e três "regiões autónomas"!.A primeira guerra civil, pode-se situar no Verão de 2014, cuja disputa se centrou no aeroporto de Trípoli, desmembrando a Frente Revolucionária, anteriormente formada para derrubar Kadhafi. As poderosas milícias de Zintane e de Misrata tornam-se inimigas, há eleições para o Parlamento, a situação acalma com o Acordo Político de dezembro de 2015 e a entrada do Governo de Acordo Nacional, reconhecido pelas Nações Unidas e com sede em Trípoli (Tripolitânia). Quem não reconheceu este Governo "fabricado" a partir de fora e demasiado próximo dos "líbios turcos", mudou-se para Benghazi criando a partição da Cirenaica (a terceira "Região Autónoma" é Fezzan, no Sul)..A segunda guerra civil, também conhecida de "guerra por Trípoli", inicia-se em abril de 2019, fruto desta partição do país em dois, mas também e uma vez mais porque as divisões internas nos "zintanes" e nos "misratas" baralharam os dados e partes destes alinham com Trípoli e partes de outros com Benghazi..A terceira guerra civil é uma evolução desta partição, tendo ganho dimensão também de guerra proxy entre Turquia e Rússia, respetivamente em apoio ao Governo legitimo de Trípoli e ao Governo rebelde de Benghazi..Porque a Rússia joga cartadas decisivas na frente ucraniana, mas também na frente síria e na frente líbia. As mesmas frentes em que a Turquia joga, sendo que na Ucrânia aparece como mediador e os interesses turcos na Líbia chocam com os interesses russos. Por isso mesmo uma acalmia no cenário de guerra atualmente na Líbia e uma aparição do presidente turco, Erdogan, como o salvador das economias africanas através do Acordo dos Cereais com russos e ucranianos. É desta forma que Putin dá o palco a Erdogan, reconhecendo-lhe ter a chave dos Estreitos de Bósforo e Dardanelos, o acesso do Mar Negro ao Mar Mediterrâneo, garantia de uma Crimeia útil para Moscovo. Chegados ao Mediterrâneo, a Península ucraniana ocupada, apenas poderá manter a sua utilidade para os russos com um Canal do Suez e Estreito de Gibraltar abertos. Por isso mesmo precisam de projetar força através de Tartus e Latakia na Síria (por isso nunca abandonaram Bashar al-Assad) e agora com a Base Naval de Benghazi, o que implica interferir com as ambições turcas, que têm desde 2019 um Acordo Marítimo assinado com o atual Governo de Acordo Nacional, delimitando fronteiras marítimas entre os dois países, bem como a Zona Económica Exclusiva, em parte ocupada agora pelos "russos do marechal Haftar"!.Aqui fica também uma das razões principais para a importância da vitória do presidente Erdogan nas recentes presidenciais turcas. É imperativo manter o presidente turco entre os grandes, ter um "presidente NATO" enquanto mediador, já que este sabe que o que não pode fazer é colocar Putin num beco sem saída, tendo capacidade para o fazer, através do Bósforo e de Dardanelos. Enquanto estes dois forem atores principais, os equilíbrios vão manter-se na Ucrânia e na Líbia e esta última voltará a emergir em caso de desequilíbrio profundo e inesperado na Ucrânia..O chamado "Comité 6+6", Parlamento mais Alto Conselho do Estado, em sintonia com a Missão das Nações Unidas de Apoio à Líbia, é uma das frentes internas com raízes internacionais que tenta dar viabilidade à Líbia enquanto país e teve muito recentemente uma importante vitória, já que no passado dia 7 soube-se a partir de Bouznika, Marrocos, terem chegado a acordo para a implementação das leis eleitorais a aplicar nas próximas legislativas e presidenciais. Sem data marcada ainda, é imperativo também que a Líbia dê sinais claros de vontade própria em tentar avançar, apesar de os líbios estarem cientes que estão envolvidos num jogo ainda maior que o deles próprios. O Comité 6+6 também concorda na formação de um novo Governo, exclusivo para a monitorização das próximas eleições, um novo sintoma de que as mesmas deverão mesmo acontecer até ao fim do ano. Aliás, este encontro em Marrocos é significativo desse sentimento nacional de "ou vai ou racha", um "agora ou nunca" que já teve tempo para amadurecer e perceber que cada povo faz por si..No entanto, é de esperar um crescente sentimento separatista no leste, Cirenaica. Este dado permitirá manter o cenário de uma Líbia Federal num futuro próximo, que em nada será prejudicial aos líbios, já que se tal cenário for garante de paz, ganham todos. O problema são as ambições regionais do novo otomanismo turco e de uma crescente "África russa", sobretudo a partir de um eixo que se pode traçar a norte entre o Cairo e Argel e que tem avançado Sahel adentro nos últimos três anos. Se a Primavera Árabe permitiu um avanço turco no norte de África, a guerra na Ucrânia está também a alimentar uma investida russa no deserto e na selva..Apesar do Comité 6+6 ter apresentado um entendimento sobre as leis eleitorais a aplicar, não foi feita nenhuma comunicação oficial, suspeitando-se também que haverá objeções das Nações Unidas a alguns pontos acordados. Por outro lado, surge o rumor de que tudo poderá estar ligado ao facto de prepararem um dois em um, anunciando já um novo Governo que daria a novidade da nova lei eleitoral, já com uma data para a realização das próximas eleições. Ou seja, este é o cenário líbio desde praticamente 2019, com tudo sempre quase a acontecer e sempre dependente das vontades externas, demasiadas ao final de todos estes anos, que tem contribuído para um sentimento anti-estrangeiro, anti-ocidental..Em Zawiyya, a leste de Trípoli os confrontos entre milícias de segunda linha continuam tendo o grande mufti Sadiq al-Ghariani pedido ao primeiro-ministro Dbeiba para intensificar os ataques aéreos. Este detalhe é importantíssimo e definidor de uma outra limitação, já que é importante para o poder político ter o ámen do poder religioso. Dbeiba só será levado completamente a sério, caso consiga eliminar todas as escaramuças na sua periferia..Outra excelente imagem do estado das instituições, é o facto de os bilhetes de identidade emitidos serem um milhão a mais, do número de canhotos emitidos para os cidadãos os irem reclamar à entidade emissora..E termino com a sombra do coronel Kadhafi que perdurará durante muitos anos entre os líbios, para informar que Hannibal Kadhafi começou este mês uma greve de fome, em protesto pela detenção prolongada sem julgamento, no Líbano (e não na Líbia, não é erro). Por outro lado, o regresso de Seif al-Islam Kadhafi, faz deste um forte candidato, pelo menos à desestabilização das próximas eleições, não colocando de parte a possibilidade de uma vitória ou de forçar algum candidato a uma segunda volta. Em qualquer dos cenários, uma prova inequívoca do poder e do ferrete com que esta família moldou o país à sua imagem e vontade!.dnot@dn.pt