Libertino esbanjador em vida, mas despojado em cena
Numa ópera, como é The Rake's Progress, de múltiplas referências/influências e assumidos flirts com a história, invariavelmente colocados sob a lente da ironia e do "estudado", a opção do encenador e cenógrafo Rui Horta por uma cena sempre despojada poderá ela própria relevar do propósito de se colocar sob a "linhagem" irónica de Auden (libretista) e Stravinsky.
A disposição e o dispositivo funcionam... com uma exceção de monta: o 2.º ato. Ali, onde é questão dos aposentos do afluente Tom, das ruas de Londres e da fachada da sua casa, a conceção de Rui Horta deixa a desejar, de tão depurada e alusiva, ao mesmo tempo que remete para uma estética que é estranha à da obra. No resto, os atos I e III (deste, só as cenas 2 e 3), cada qual com dois diferentes cenários, funcionam bem, coadjuvados por um desenho de luzes, esse sim, sem pontos fracos de fio a pavio; e aproveitando as três cenas com coro para aproximações (via figurinos, luzes e composição) ao universo pictórico dos séculos XVII e XVIII.
Dito isto, nota-se a "mão" do coreógrafo no tratamento das cenas de conjunto e na direção de atores: aquelas sempre muito boas, esta, só com raras incongruências/inconsistências.
Os personagens estão bem delineados, com uma exceção: Anne Trulove. Nenhuma mulher passaria pelo que Anne passa ao longo da ópera sem se transformar. E Ambur Braid permanece sempre visual e dramaticamenter igual do início ao fim (simbologia do verde incluída)! Nesse capítulo, também o Tom de Tuomas Katajala mereceria outro tratamento na cena 1 do ato II. E a caracterização de Baba, de clara ascendência demoníaca, por mais vistosa e "show-stealing" que seja, não se coaduna com o que de si Baba revela no dueto com Anne.
Ao nível do cenário, a imagem do bosque (cenas 1 e 3 do ato 1) é ambígua, porque a associação que dele é feita com "ameaça" não se compagina, por um lado, com o imaginário do bosque inglês (em contraste, por exemplo, com o bosque germânico/teutónico), nem, por outro lado, com o tom pastoral do libreto, que amiúde celebra o "mel" da vida campestre por oposição ao "fel" da vida citadina. As árvores nuas nem sempre encontram justificação para estar em cena, senão a de serem meros apoios de cena ou topoi auxiliares das marcações. No final, porém, a imagem das árvores dependuradas, descarnadas, raízes à mostra, é bela e simbolicamente rica. Bonita também a alusão à barca do Estige, com o pai de Trulove a "fazer" de Caronte, levando e trazendo Anne ao/do mundo das dantescas almas penadas (que é o que, mais do que loucos, aquelas figuras ali são). No Epílogo, teria sido engraçado (e até mais desconstrutor) levar a barca com o quinteto de cantores de um lado ao outro do palco, com ajuda dos figurantes.
Vocalmente, esta produção está bastante bem servida (das composições, estamos falados), com boas prestações de Tuomas Katajala (voz interessante, que prenuncia por vezes acentos até heróicos), Luís Rodrigues (o papel assenta-lhe como uma luva e é um dos grandes papéis que já lhe temos visto). Ambur Braid tem tudo o que de lírico e luminoso Anne Trulove requer, mas por vezes gostaríamos de lhe ouvir algum apoio acrescido na região grave. Maria Luísa de Freitas faz um trabalho incrível nos "preparos" que lhe arranjaram e é forte e marcante em quanto canta. Carlos Guilherme é um Sellem nato, mas podia ser algo mais incisivo nos momentos de licitação junto à mesa. Cátia Moreso (Mother Goose) e Nuno Dias (pai Trulove) cumprem outrossim bem vocalmente os seus papéis.
No fosso, tivemos uma orquestra em bom plano (e em crescendo da récita de sexta para a de domingo), claramente entusiasmada com a partitura (e como não!!), capaz de traduzir vividamente, quer os momentos de maior animação, nervo, acerbidade; quer os mais meditabundos, de maior lirismo, ou de pungência. Mas os segredos - o nervo rítmico e a escrita "poli-ensemblística" - estiveram lá. Tudo guiado e levado a termo pela direção (hiper-)enfática (mas que convirá talvez moderar para não haver excesso de informação), dedicada e generosa de Joana Carneiro.
Excelente prestação (e cheia de cores!) a de Joana David, no cravo.