"A censura está para a arte como o linchamento para a justiça" .Henry Louis Gates Jr..Assistimos a um número crescente de ataques a obras literárias e artísticas em nome do movimento "woke", cuja filosofia assenta em grande medida na chegada a uma espécie de amnésia colectiva, requerendo, pois, o empenho contínuo desse movimento na deslegitimação da História (subsumida que é a uma sequência de eventos de crueldade chocante) e na supressão de obras literárias e artísticas (vistas como instrumentos de opressão de grupos marginalizados)..Nessa sequência, o movimento tem exigido, entre outras coisas, (i) o banimento ou a correcção e conversão em textos politicamente correctos de obras que considera snobs, misóginas e/ou racistas (como as obras de Enid Blyton conforme já aqui referi), (ii) a destruição ou vandalização de monumentos (como o Padrão dos Descobrimentos) que encara não como recordações ou lembranças de factos ou entidades doutras épocas, mas como símbolo de um passado colonial e (iii) mais recentemente a tentativa de remoção de uma obra artística do notável Francisco Simões na qual o autor de Amor de Perdição abraça uma mulher nua (Ana Camilo), alegando que a escultura objectifica a mulher e ofende a sua dignidade..Estes incidentes obrigam-nos a reflectir sobre as fronteiras e limites entre a expressão cultural, que emana da liberdade de expressão, e outros valores, incluindo os que se encontram associados a tendências "woke"..O movimento "woke" não reconhece a existência de uma natureza ou condição humana fixa e inata, vendo o ser humano como uma folha em branco, fruto de um processo de construção social que deve alicerçar-se numa visão orientada para o futuro e no âmbito da qual a narrativa dos factos passados (e os bens culturais a ela associados) podem e devem ser dispensados..A questão que aqui se coloca é onde traçar os limites entre a liberdade de expressão cultural e os valores, crenças, convicções e práticas de terceiros, guardiões da estética e do bom gosto, que actuam em nome de padrões ideológicos, sociais e culturais que nem sempre reflectem a visão da maioria,.Comecemos por ressaltar que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (em consonância com a Declaração Universal dos Direitos Humanos) consagra o direito à liberdade de expressão, que abrange não apenas formas de expressão de natureza política, mas também a expressão artística. A criação intelectual deve, pois, ser livre..Neste quadro normativo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos ao examinar processos relativos a potenciais violações da liberdade de expressão no contexto de obras artísticas e literárias, em conexão, por exemplo, com livros (The Little Red Schoolbook, History in Mourning, 33 bullets, We made each dawn a Newroz, Le Grand Secret), pinturas (Three Nights, Three Pictures), filmes (Council in Heaven) e até poemas (O canto de uma rebelião - Dersim), tem acentuado o imperativo da liberdade de expressão como um dos pilares de qualquer sociedade democrática..O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já reconheceu que os criadores de expressão cultural devem evitar que essa expressão seja gratuitamente ofensiva em relação às opiniões religiosas e crenças de terceiros, não sancionando, todavia, a eliminação da História nem a remoção, sem mais, de bens culturais..Com efeito, segundo esse Tribunal, a liberdade de expressão permite, de forma salutar, a divulgação de informação e de ideias, quer estas sejam recebidas de forma favorável, quer sejam consideradas inofensivas, quer sejam vistas com indiferença, quer ofendam, choquem ou perturbam um ou mais elementos da população..Sabe bem o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que só a liberdade de expressão garante a livre criação literária e artística, que as artes e as letras desafiam convenções, incitam à reflexão e inspiram mudança e que quando a expressão criativa é tolhida pela censura é sufocada a essência da inovação e do progresso..Conclui de forma magistral e sumária o referido Tribunal que "aqueles que criam, executam, distribuem ou exibem obras de natureza cultural contribuem para a troca de ideias e opiniões, algo essencial numa sociedade democrática"..E neste contexto legal e judicial não podemos senão concluir por um princípio de intocabilidade da expressão literária e artística (a não ser por motivos de força maior), quer estejam em causa bens culturais de hoje, quer se trate da Arte de ontem..A autora não escreve de acordo com o novo acordo ortográfico. Fundadora de GPI/IPO, Gabinete de Jurisconsultoria e Associate de CIPIL, University of Cambridge