Líbano entalado entre o Hezbollah e as elites que o governam

Crise política agrava-se com a demissão de três ministros. Comunidade internacional e manifestantes coincidem na desconfiança a toda a classe dominante. Mas há um elefante no meio da sala chamado Hezbollah.
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Parte da cidade continua cheia de escombros, enterra-se mortos, trata-se feridos, dá-se guarida a quem ficou sem teto. Mas o momento é grave demais para se tentar colar os cacos e continuar como se Beirute tivesse sido vítima de um furacão. Junto do que foi o porto alguém se lembrou de alertar o mundo antes da conferência internacional de doadores, com uma mensagem na língua franca: "My government did this." (O meu governo fez isto).

A tragédia, causada na terça-feira por 2750 toneladas de nitrato de amónio armazenadas durante seis anos no porto de Beirute "sem medidas de precaução", como admitiu o próprio primeiro-ministro, deixou a nu a inépcia e corrupção do regime, tendo dado um segundo fôlego à contestação generalizada deflagrada em outubro passado.

"Se isto não destruir o sistema corrupto, nada o fará. Como podem ser as mesmas pessoas que nos conduziram adormecidos até ao Armagedão, a tirar-nos de lá?", pergunta o supervisor bancário Nidal Ayyoush, de 36 anos, ao Guardian.

No sistema político libanês, baseado na representação religiosa, governos, eleições e demais repartição de poder nasce de uma teia de interesses comuns onde se privilegia a corrupção, tendo do seu lado o Hezbollah, o movimento político-religioso-militar financiado pelo Irão.

"Aqui [no porto] os oligarcas e os chefes políticos e os seus financiadores dirigiam um dos maiores esquemas do Médio Oriente", disse um ex-funcionário dos serviços secretos libaneses ao Guardian. "Financiou a podridão do Estado, ao mesmo tempo que o destruía."

O governo, não o regime, dá sinais de cair mais cedo do que tarde. Um dia depois do primeiro-ministro Hassan Diab ter anunciado que iria pedir eleições antecipadas, este reuniu-se com vários ministros para avaliar a situação, o que poderá passar pela sua demissão.

A ministra da Justiça Marie-Claude Najm, apresentou esta segunda-feira (10 agosto) a demissão do Governo de Hassan Diab, a terceira após as explosões no porto de Beirute, que causaram 158 mortes e mais de 6.000 feridos.

Antes, d​​​​​​ois outros ministros bateram com a porta no domingo, o segundo dia consecutivo de confrontos entre as forças de segurança e manifestantes enfurecidos contra a classe política, acusada de negligência na explosão que devastou o porto de Beirute.

A primeira demissão ao nível governamental desde a explosão de terça-feira que deixou pelo menos 158 mortos, mais de 6 mil feridos e 300 mil pessoas sem casa foi da ministra da Informação, Manal Abdel Samad. "Após a enorme catástrofe de Beirute, apresento minha demissão do governo", declarou a ministra. "Peço desculpas aos libaneses, não soubemos responder às expectativas", explicou.

Horas mais tarde, foi o ministro do Meio Ambiente e Desenvolvimento Administrativo, Damianos Kattar, a seguir o mesmo caminho. "Diante desta enorme catástrofe e de um regime estéril que falhou em diversas oportunidades, decidi apresentar a demissão do governo", anunciou Kattar em comunicado.

"Revolução!"

Milhares de pessoas juntaram-se na praça dos Mártires, mas foi numa rua junto ao Parlamento que manifestantes e polícias voltaram a medir forças, com pedras e objetos pirotécnicos de um lado e gás lacrimogéneo do outro. A palavra de ordem foi "Revolução, revolução!", enquanto nas redes sociais avisava-se: "Preparem as forcas, porque a nossa raiva não será extinta da noite para o dia."

Para aumentar mais a raiva em relação à classe dirigente, é a própria população a realizar as operações de limpeza, sem que o governo tenha tomado qualquer iniciativa.

No sábado, milhares de libaneses reuniram-se na praça dos Mártires, brandindo vassouras e pás, e simulando o enforcamento dos líderes do país, incluindo o de Hassan Nasrallah, do movimento armado Hezbollah, que domina a vida política.

Num momento que pode ser de viragem, uma multidão entoou um cântico a denunciar a natureza terrorista do Hezbollah, cujo líder nega quaisquer responsabilidades no sucedido.

Mas paira no ar uma imensa interrogação. Não falta quem junte peças soltas e veja no movimento pró-iraniano um ator na sombra. Vários relatórios indicam que a maioria das armas que chegam do Irão passavam pelo porto, e algumas lá ficariam armazenadas. E que a infraestrutura estaria sob o controlo não oficial do movimento.

Nitrato de amónio e Hezbollah

O material químico que tanto pode ser utilizado como fertilizante como explosivo é um velho conhecido do Hezbollah, e como era sabido por todos os dirigentes que o carregamento de 2750 toneladas estava armazenado há seis anos, os seus líderes estavam a par do perigo que representava.

Em 2012, a polícia tailandesa prendeu um indivíduo com ligações ao Hezbollah pela posse de nitrato de amónio. Em 2015, as autoridades cipriotas apreenderam 420 caixas de nitrato de amónio pertencentes ao Hezbollah. No mesmo ano, o Kuwait prendeu três pessoas afiliadas ao Hezbollah sob a acusação de armazenarem toneladas da mesma substância.

O mesmo no Reino Unido, quando detiveram membros do movimento pelo armazenamento de 3,3 toneladas de nitrato de amónio em Londres. Por fim, a Alemanha, que em abril passou a classificar o Hezbollah como uma organização terrorista, revelou que uma das razões foi a descoberta de nitrato de amónio num depósito no sul da Alemanha ligado àquela milícia.

E depois há um vídeo de dois período (2016 e 2017) de Hassan Nassrallah, no qual ele compara o bombardeamento de um porto a uma bomba nuclear. "A bomba nuclear será detonada por mísseis (lançados pelo Hezbollah) sobre contentores de amónio no porto de Haifa, em Israel, o que criará uma explosão semelhante à de uma bomba nuclear."

O investigador Emile Hokayem especializado em segurança no Médio Oriente do International Institute for Strategic Studies apontou para o papel único do Hezbollah no Líbano.

"Há uma tendência para tratar o Hezbollah como um entre muitos, diminuindo assim ou, por vezes, até mesmo descartando a sua responsabilidade única. Não é bem assim. O Hezbollah tem uma responsabilidade única onde o Líbano se encontra, e adiar a abordagem do seu estatuto armado não só é moral e estrategicamente errado, como também garante que a verdadeira transformação política nunca irá acontecer", escreveu numa série de mensagens no Twitter.

"Então porque é que o Hezbollah é único? Inicia as suas próprias guerras; mata, coage e intimida os seus rivais domésticos; constrói a sua própria rede de segurança interna; tem as suas próprias redes económicas; afasta parceiros internacionais chave, etc. Quem mais faz isso?", pergunta.

Além disso, sustenta, o Hezbollah "é único porque se senta (como todos os outros) dentro e (como ninguém) acima do (quase não) Estado que é o Líbano."

Para Hussain Abdul-Hussain, chefe da delegação em Washington do jornal do Koweit Al-Rai, "a corrupção é o sangue vital do Hezbollah, por isso, se o Líbano conseguisse realmente acabar com a corrupção, também iria afastar Hassan Nasrallah e os seus acólitos, escreve no Arab News.

"A tragédia -- prossegue -- é que o Líbano não se pode reformar. O Hezbollah, com a sua poderosa milícia, não o deixa. E porque a reforma está fora de questão, o Líbano está cada vez mais dependente das remessas da sua vasta diáspora. Tais transferências estão entre as mais elevadas do mundo, mas nenhuma economia moderna pode ser construída sobre um sistema de transferências tão amplo e profundo: Desaprova a ambição e o empreendedorismo. O país precisa desesperadamente de mudar", sentencia.

Como mudar?

Há cerca de um mês, Ahmed Fatfat, ex-ministro da juventude e do desporto, disse que todas as milícias do seu país, a começar pelo Hezbollah, deveriam ser desmanteladas para cumprir o Acordo de Taif, assinado em 1989 para pôr fim à guerra civil, e a constituição libanesa.

Fatfat disse que o Hezbollah exerce demasiado poder político no Líbano, controlando tudo menos o Parlamento.

Mas nem toda a gente pensa dessa forma, ou admite tal em público.

"Nesta fase, penso que a prioridade é livrar-se dos mafiosos", diz Nadim Houry, diretor executivo do think tank Iniciativa de Reforma Árabe. "Não se pode derrotar os mafiosos e o Hezbollah ao mesmo tempo. Por agora, o principal é tirar os criminosos de lá", disse ao Guardian.

"O próximo passo [é] um governo de salvação de fora da classe política com um mandato especial para enfrentar a crise humanitária e económica", um executivo com um mandato de três anos no máximo e que preparassem uma nova lei eleitoral.

"O risco é que algum anti-Hezbollah possa estar à espera de usar isto para finalmente subjugar o grupo. Isso seria um enorme erro. Não devido a qualquer simpatia para com o grupo, mas porque o país não se pode dar ao luxo de um tal confronto", conclui Houry.

Opinião diversa tem Emile Hokayem. "Esta estratégia está destinada a falhar e a dar poder ao Hezbollah. O Hezbollah, que não é propriamente conhecido por cumprir as suas promessas, terá interesse em ver revolucionários desmantelar o sistema político e enfraquecer os seus rivais, antes de se aproveitar de tudo isto."

"Será que se acredita realmente que o Hezbollah permitirá que a mudança política se estenda à comunidade xiita, onde a dissidência é severamente dissuadida e punida (ver todas as eleições desde 2005)? E o Irão, para quem o Hezbollah é uma extensão ideológica e de segurança?", questiona.

Antes de concluir: "Mais importante ainda, esta estratégia reconhece explicitamente e cede à chantagem e à capacidade de coação do Hezbollah."

Ajuda com transparência

Da conferência de doadores organizada no domingo pela França e pelas Nações Unidas, saiu a promessa de ajuda de emergência avaliada em 253 milhões de euros. "Devemos atuar rápido e com eficiência" para que a ajuda "chegue diretamente" ao povo libanês, garantiu neste domingo o presidente da França, Emmanuel Macron, no início da videoconferência internacional.

Os doadores prometeram prestar ajuda de emergência, centrando-se no apoio médico e aos hospitais, escolas, alimentação e habitação e fazê-lo com a maior "transparência".

"Os participantes concordaram que a sua assistência deve ser coordenada sob a égide das Nações Unidas e fornecida diretamente à população libanesa, com o máximo de eficácia e transparência", declararam os representantes de perto de 30 países, bem como da União Europeia, da Liga Árabe, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.

Mas este valor é um penso rápido, insuficiente para curar o Líbano da doença de que padece.

Kristalina Georgieva, diretora do Fundo Monetário Internacional, não deixou margem para ambiguidades: um pacote financeiro de ajuda depende de reformas antes da entrada de dinheiro.

"As presentes e futuras gerações de libaneses não devem ser sobrecarregadas com mais dívidas do que alguma vez poderão pagar", disse Georgieva durante a conferência. "O compromisso com estas reformas irá desbloquear milhares de milhões de dólares em benefício do povo libanês".

Enquanto isso a ajuda internacional continua a chegar ao Líbano. A França, que vai participar com 30 milhões de euros no fundo, está a organizar uma ponte aérea e marítima para entregar mais de 18 toneladas de ajuda médica e quase 700 toneladas de ajuda alimentar.

* atualizado às 13.30 com a terceira demissão entre membros do governo libanês

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