Letizia, rainha de Espanha por graça de si mesma

De jornalista a Rainha de Espanha, Letizia Ortiz Rocasolano, que acaba de completar 50 anos, é uma das mulheres mais fotografadas do mundo. Uma nova biografia, agora lançada em Portugal, fala das suas zonas de luz e sombra.
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A 31 de outubro de 2003, Letizia Ortiz Rocasolano, a pivot do principal serviço serviço informativo da Televisión Española (TVE), despediu-se dos telespectadores com um cordial: "Até 2.ª feira", mas a verdade é que não só não voltaria, como passaria a ser ela própria notícia de abertura dos telejornais de todo o mundo, quando, a 3 de novembro, os Reis de Espanha anunciaram o noivado da jornalista com o príncipe das Astúrias, Felipe de Borbón y Grécia. A boda celebrar-se-ia a 22 de maio de 2004, na Catedral de Almudena, em Madrid, com a pompa e circunstância devida a uma das dinastias mais antigas do mundo, mas que, no caso de Espanha, mercê da História recente do país, é também uma das monarquias menos consensuais da Europa.

Quase 18 anos e duas filhas depois, a relação do público com a agora Rainha de Espanha (é-o desde 2014, quando o marido sucedeu a Juan Carlos, que abdicou depois de sucessivos escândalos) é tudo menos simples. Se, por um lado, os seus outfits são comentados e seguidos até à exaustão (o que faz dela uma influencer, malgré elle), não são poucos os que a acusam de ser fria, distante e altiva, por oposição à sua doce antecessora, a rainha Sofia. Um enigma que o jornalista argentino Leonardo Faccio procura desvendar no livro, Letizia, Uma rainha Impaciente, agora publicado em Portugal pela Casa das Letras.

Não autorizada, a biografia de Faccio (que já escrevera sobre a vida de Lionel Messi) não é apologética mas também não é sensacionalista. Parte da perplexidade causada por ver uma mulher culta, trabalhadora obsessiva e moderna abdicar da profissão que escolhera (e em que tinha sucesso) para se sujeitar ao papel quase decorativo de mulher do Rei: "As rainhas de Espanha costumam ser vistas como mulheres resignadas. Mais do que uma autoridade elegante, a mulher do rei tem sido sobretudo uma presença discreta com a obrigação de procriar. Desde que, no século XV, a rainha Isabel I foi coroada em Espanha, as suas 26 sucessoras, que vão até à rainha Letizia, tiveram ao todo 169 filhos. Uma média de seis filhos por rainha. Nas pinacotecas as rainhas espanholas têm tido um protagonismo triste. Não foram retratadas em atos triunfais, antes em momentos históricos que também correspondem aos mais infelizes da vida de cada uma. No Museu do Prado, Isabel, a Católica, a mais importante das rainhas de Espanha, surge agonizante, numa cena de 1504, enquanto dita o testamento através do qual se funda um Estado unificado com os reinos de Castela e Aragão. Os cronistas da época realçam o caráter estoico de Isabel I ao não dar mostras de dor durante os partos. Recusava-se a que olhassem para ela com pena. No seu retrato mais famoso, para lá da relevância histórica, impressiona o gesto dramático que excede a vontade documental. Noutra pintura do Museu do Prado aparece a filha, a rainha Joana I, mais conhecida como "Joana, a Louca", com um semblante perdido junto ao caixão do marido." E acrescenta: "Não há muitos membros da monarquia com estudos universitários e uma rainha que compra livros constitui uma novidade. Em Espanha, não foi a defesa do voto nem o direito a votar ou os contracetivos a unir o feminismo mas a aspiração tenaz a superar a imemorial condenação à ignorância pela falta de acesso à cultura (...) A mulher culta viu-se estigmatizada de mil maneiras pela cultura popular espanhola."

O biógrafo começa por mergulhar na infância e juventude de Letizia. Filha mais velha de uma enfermeira e de um jornalista, destacou-se desde menina pelo perfeccionismo que punha em tudo. Boa aluna, insistia que o seu nome, de origem italiana, deveria ser escrito com Z e dava o seu melhor nas aulas de ballet da professora Marisa Fanjul, que a recorda como uma criança muito auto-exigente e aplicada. Foi também por essa época que terá visto Felipe pela primeira vez. Tinha nove anos e o príncipe das Astúrias, mais velho quatro anos, de visita à sua cidade, Oviedo, nas Astúrias, passou-lhe de carro escoltado à porta de casa. O facto impressionou-a o bastante para lhe deixar uma recordação.

O empenho da meninice continuou na adolescência e na vida adulta. Letizia estudou Comunicação Social na Universidade Complutense de Madrid, fez o mestrado com uma tese sobre a relação da imprensa com o poder e partiu para o México onde estagiou no jornal Siglo 21, entrevistou o escritor Carlos Fuentes e frequentava a movida de botas vermelhas. De regresso a Madrid, passou pela agência EFE, pela CNN España e pela TVE, onde chegou a pivot do principal serviço informativo da noite depois de ter dado boa conta de si como enviada especial a Nova Iorque na sequência do 11 de Setembro de 2001 ou ao Iraque quando as tropas norte-americanas entraram no país. Os antigos colegas de trabalho ouvidos por Leonardo Faccio lembram-na como uma jornalista muito empenhada, meticulosa, não especialmente simpática. Havia mesmo quem a apelidasse de "ambição loura" e a acusasse de ser demasiado controladora.

Este lado mais sombrio da rainha é tratado por Faccio e, segundo ele, ter-se-á agudizado quando Letizia se tornou uma Borbón, a tal ponto que ainda hoje os funcionários da Casa Real a tratam por "chefa". O que não admira, concede o autor: "Em Espanha, durante muito tempo, foi tabu falar mal da família real", lembrou Paul Preston, o historiador britânico e biógrafo do rei Juan Carlos, numa entrevista. "Quando esse tabu se desfez finalmente, havia uma fome de falar acumulada ao longo de vários anos." De repente, a vida da cidadã Letizia Ortiz Rocasolano e da sua família, idêntica às de tantas famílias espanholas da classe média, foi escrutinada até à loucura: Falava-se do avô taxista, do divórcio litigioso dos pais, dos parentes que pediam créditos para comprar roupa adequada a tão sumptuoso casamento, mas sobretudo procurava-se algo de picante sobre o passado amoroso da principal visada, que era divorciada: "O salto para a vida pública dá-se violentamente, com uma onda de rumores e delações. Letizia Ortiz estava a tentar pôr a salvo a privacidade dela. Sempre se disse que ela diz aos amigos: "Se querem continuar a ser meus amigos, não digam uma única palavra"", recordou Alfredo Urdaci, o seu antigo chefe na Televisión Española, numa entrevista. "É essa a premissa para manter a amizade dela." Por essa altura, Telma Ortiz, a irmã do meio da rainha, processou 50 meios de comunicação, acusando-os de assédio. A juíza responsável por dirimir o litígio descartou a denúncia por considerar que a vida da família Ortiz Rocasolano era pública. Em fevereiro de 2007, a pressão parece ter sido demasiada para a irmã mais nova da rainha, Erica, que se suicidou.

A espontaneidade da enérgica Letizia ia-se diluindo. Um dia, Juan Carlos, habituado à discrição da rainha Sofia, terá pedido que arranjassem uma carteira à nora para que ela não gesticulasse tanto enquanto conversava em atos públicos. Para Faccio, a mensagem do rei era clara: "Arranjar uma carteira à futura rainha para que esta ficasse com as mãos quietas foi um modo elegante de a mandar calar."

Outro ponto de tensão entre os Borbóns e Letizia foi a sua atitude perante a religião católica. Estando fora de questão (pela tradição de séculos) que o príncipe das Astúrias não casasse pela Igreja, Letizia teve de ceder. Na entrevista que deu ao autor desta biografia, José Infante, antigo colega da rainha na TVE, afirmou que esta sempre se dissera agnóstica e não manifestava qualquer interesse pelos temas de fé. O que não parece ter mudado muito já que, como também se diz nesta obra, na origem da famosa discussão com a Rainha Sofia, em 2018, estava a determinação de não querer as filhas fotografadas junto a símbolos religiosos. Como tudo se passou na Catedral de Palma, Letizia terá considerado o gesto de Sofia uma intromissão nas suas funções maternas, de que se mostra muito ciosa.

Aos poucos, a rainha foi encontrando um espaço próprio. Reivindicativa (é filha de uma enfermeira sindicalista), considera que não tem de sacrificar toda a sua liberdade pela Coroa: "Exigiu à Casa Real não trabalhar ao fim de semana, tendo pedido igualmente para interromper o seu papel oficial durante os feriados. A imprensa viu nela a filha de uma sindicalista que reclama direitos laborais e intitulou-a "princesa das nove às cinco", como quem recrimina um funcionário que trabalhe respeitando as normas e regras vigentes." Ao contrário dos sogros, não se resigna a ver cinema na sala privada do Palácio e é uma frequentadora regular das 11 salas dos Cine Princesa, das poucas de Madrid em que é possível ver filmes na versão original, isto é, não dobrados para castelhano. Sempre que pode, faz-se acompanhar pelo marido e alguns amigos e depois da sessão vão ao bar Ebla, no bairro madrileno de Argüelles, "picar algo". Ao contrário do que se possa pensar, não se trata dum spot de luxo mas de um típico bar espanhol com um longo balcão e poucas mesas.

Grande leitora, Letizia é uma frequentadora assídua da Feira do Livro de Madrid e acompanha a vida artística com grande interesse. Para deleite seu, em 2005, o cantautor Joaquín Sabina organizou para os então príncipes das Astúrias um jantar em sua casa, em que os outros convivas eram Joan Manuel Serrat, Ana Belén, Victor Manuel e Penélope Cruz. Mas o equilíbrio é sempre instável. A monarquia espanhola vive sobre o arame desde sempre, como também escreve Leonardo Faccio: "Em 300 anos de história da dinastia Borbón, apenas um rei terminou o reinado sem que este fosse interrompido por uma revolução, doença ou morte prematura. Apenas um. Aconteceu no século XVIII. Carlos III foi o único a morrer ancião e sem ter perdido a Coroa. Os reis de Espanha viveram permanentemente entre a abdicação e a queda, entre a fuga e o exílio. Chegavam ao trono sabendo de antemão que o iriam perder." Acresce a isto que a República Espanhola foi efectivamente proclamada em 1931 e que os Borbóns só foram resgatados ao exílio por decisão unilateral do ditador Francisco Franco. Enquanto isso, são muitas vozes que gritam: "España mañana será republicana." Aos 50 anos, Letizia, perfeccionista e ambiciosa, talvez se aproxime "da mulher que sonhou ser" (para usar a expressão de uma personagem de Pedro Almodóvar", mas não é uma rainha tranquila.

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