Ler uma cidade, com os pés e com os olhos
Uma cidade nunca é um ato concluído. É um processo de mutação onde as interações ocorrem numa coreografia rica e complexa, tornando-a um objeto apetecível. Uma construção milagrosa, onde camadas de ideias - materializadas em construção física ou imaterial - são sedimentadas em longos períodos de história. Onde o resultado é muito mais do que a simples soma das partes. Para a compreender é necessário um exercício semelhante ao do colecionador. Pode fazer-se conjugando quatro verbos: procurar, encontrar, identificar e registar.
"Para entender uma cidade é preciso lê-la com os pés." A afirmação, dita das mais diversas formas, não é novidade. Mas exige, precisamente, que se conjugue o primeiro dos quatro verbos: procurar. Ler as cidades requer movimento. Pelo menos três tipos de movimento. Físico, na medida em que importa, acima de tudo reconhecer os lugares que a constituem, observando-a nas avenidas e nos recantos, nos passeios largos e nas ruas escuras, ao nível do chão, do que lhe está escondido sob os pés, e acima do horizonte. Depois o movimento do tempo, já que as mutações das cidades são tão ou mais importantes que os resultados observáveis num determinado momento. A cidade é, precisamente, um conjunto de momentos acumulados e não pode ser compreendida sem saber o que já foi ou o que pretende vir a ser. E, em terceiro lugar, um movimento entre olhares. Cada perceção, cada entendimento sobre a cidade, os seus constituintes, funções e aspetos, depende essencialmente de quem a olha. Cada olhar é uma construção individual sobre a cidade e é, por várias razões, sempre diferente.
Se o primeiro movimento obriga a deslocação e o segundo à espera do tempo, este último é o mais difícil de realizar. O decisor da cidade consegue usar outros olhos que não os do poder? O condutor do automóvel perceberá a velocidade do velho na passadeira? O adulto vê a cidade à altura de uma criança? Compreendemos que a cidade é, também, a do outro?
Ouvi um presidente de uma Câmara Municipal dizer recentemente, em reposta a pedidos de esclarecimento sobre um projeto urbanístico, que a sua cidade não precisava de "mais opiniões". Que existiriam os "órgãos e momentos próprios, devidamente legitimados para o efeito". Sim, também é verdade. Mas pode apenas um olhar ser capaz de ler a cidade em todas as suas dimensões: espaço, tempo, alteridade? E determinar-lhe os destinos?
Precisamos de uma pedagogia da voz. Importa ouvir as múltiplas formas de fazer e ser cidade.
Filipe Teles é pró-reitor da Universidade de Aveiro