Lenine Cunha. O atleta paralímpico que chegou às 203 medalhas

O atleta de Gaia conquistou este domingo a sexta medalha nos Europeus de pista coberta da Federação Internacional para Atletas com Deficiência Intelectual e ultrapassou o número redondo (200) que perseguia há um ano. Uma história de superação que começou aos 7 anos por iniciativa da mãe.
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O objetivo chegou um pouco mais tarde do que o inicialmente previsto, mas está cumprido. O atleta paralímpico português Lenine Cunha, de 36 anos, garantiu este domingo nos Europeus de pista coberta da Federação Internacional para Atletas com Deficiência Intelectual (INAS), na Turquia, a 203.ª medalha da sua carreira. Depois de na sexta-feira ter ganho duas pratas (triplo salto e pentatlo), no sábado ultrapassou o número redondo (200) com um bronze nos 60 metros barreiras, mais um bronze no salto em comprimento e uma prata na estafeta 4x200m. E este domingo foi prata no salto em altura.

Está assim cumprido o desejo do atleta português, que na segunda-feira, antes de embarcar para a Turquia, só pensava em alcançar a meta das 200 medalhas. "O objetivo para esta competição é mesmo chegar às 200 medalhas internacionais, foi para isso que treinei nos últimos meses. É um sonho que persigo há um ano. Estou confiante e, como sempre, irei dar o meu melhor e trazer esta alegria para Portugal", referiu na altura. Este domingo superou essa meta e chegou às 203.

Nascido a 4 de dezembro de 1982 em Vila Nova de Gaia, Lenine Cunha era uma criança igual às outras quando aos quatro anos sofreu uma meningite que lhe provocou graves lesões como perda de memória, capacidade de falar e de andar, problemas de audição e limitações na visão.

A mãe, Ana Maria, colocou-o aos sete anos no desporto, com o objetivo que o filho se desenvolvesse a nível físico e intelectual. Começou no andebol, nos Jogos Juvenis de Gaia, mas foi um colega do pai de Lenine, o treinador José Costa Pereira, que o cativou para a prática do atletismo e para as competições de desporto adaptado e que ainda hoje é seu treinador. Em março de 2000, participou na sua primeira prova internacional, um Campeonato da Europa na Suécia, tendo conquistado logo aí um recorde mundial no triplo salto, além dos bronzes em 4x200 metros e no salto em comprimento.

As medalhas não paravam de chegar, ao mesmo tempo que trabalhava noutras áreas. Foi ajudante de eletricista, emprego que perdeu para participar numa competição no estrangeiro, e rececionista num ginásio. Mas depois de 2003, passou a dedicar-se em exclusivo ao desporto. Treina três horas diárias durante pelo menos seis dias por semana, alternando entre o Estádio Municipal de Gaia, idas ao ginásio e corridas junto à praia.

Embora tivesse participado nos Jogos Paralímpicos de Sidney, em 2000, foi em Londres, 12 anos depois, que obteve a consagração com a conquista de uma medalha de bronze no salto em comprimento na classe F20, para atletas com deficiência intelectual, perante uma assistência de 80 mil pessoas. Antes, em abril de 2017, foi eleito o melhor atleta mundial da Federação Internacional para Atletas com Deficiência Intelectual (INAS), numa gala que decorreu em Brisbane, na Austrália.

Um clube com o seu nome

Há pouco mais de três anos, em outubro de 2015, fundou o seu próprio clube desportivo, o Sport Clube Lenine Cunha, com o objetivo principal de ajudar jovens a iniciarem ou prosseguirem as suas carreiras desportivos. "Fundado a 21 de outubro de 2015, em Vila Nova de Gaia, tem as suas portas abertas a todas as pessoas, com principal enfoque nos jovens, para a prática de uma atividade desportiva com técnicos qualificados e com excelentes condições de treino", anunciou num comunicado.

Por esta altura, em 2015, viu-se envolvido numa polémica. Depois de ter organizado uma ação de crowdfunding para o ajudar na preparação para os Jogos Paralímpicos e para fundar o seu clube, Lenine colocou nas redes sociais fotos sua em Nova Iorque. Houve logo que o criticasse por se estar a aproveitar do dinheiro para passar férias nos Estados Unidos. E foi obrigado a justificar-se. Afinal, a viagem aos EUA estava relacionada com um convite de uma farmacêutica, a GSK, para participar numa campanha a nível mundial onde deu a cara por uma ação de prevenção da meningite.

As 203 medalhas foram ganhas ao longo dos últimos anos em várias provas. Mas há algumas que, pela importância das competições, destacam-se das restantes. As mais importantes foram o bronze nos Jogos Paralímpicos de Londres, em 2012 (salto em comprimento), um ouro, uma prata e um bronze nos Campeonatos Mundiais de Atletismo Paralímpicos e mais três (dois bronzes e uma prata) nos Campeonatos Europeus de Atletismo Paralímpico.

Ganhou o nome de Lenine porque os pais eram comunistas e quiseram homenagear o líder da revolução bolchevique. E isso deu-lhe alguns problemas na escola e não só. "O meu nome vem do Lenin, da URSS, e passei um bocadinho mal na escola pois tinha dois professores que não gostavam de mim por causa do nome. Tive problemas quando fui batizado porque o padre não me queria batizar. No registo civil também não queriam fazer o meu registo, tudo se resolveu colocando o "e" no fim. Mas apesar destas referências familiares, não, não sou comunista!", contou ao Expresso.

Suspeitas e dificuldades económicas

Em entrevistas concedidas a jornais entre 2016 e 2017, Lenine Cunha chegou a colocar em causa se iria continuar a competir, pois perdeu vários apoios e passava por muitas dificuldades financeiras. "Não tenho sequer dinheiro para pagar a renda. No princípio do ano, soube que dois dos meus patrocinadores não iriam continuar, com a justificação de não terem orçamento. Ao Todo perdi 20 mil euros", desabafou ao Jornal de Notícias em junho de 2017.

Um ano antes, em entrevista ao Expresso, tinha também dado conta das dificuldades financeiras e dos poucos apoios que recebia do Estado: "Recebo 386 euros mensais. Não é suficiente para viver, nem para fazer uma preparação conveniente para os JP. São necessários vários milhares de euros anuais para que um atleta possa treinar, estagiar, competir, mas acima de tudo viver. Já tentei arranjar trabalho, mas quando digo que sou atleta de competição as portas fecham-se de imediato, porque isso é sinónimo de que tenho que me ausentar do meu posto de trabalho para treinos, para estágios, para competições, logo as empresas pensam que vão ter prejuízo.

Numa entrevista ao jornal O Jogo, em janeiro de 2016, Lenine foi questionado sobre o facto de muita gente colocar em causa a sua deficiência intelectual. E a resposta saiu de pronto. "Já estou habituado a isso. Quem está ao meu redor sabe das minhas dificuldades. Depois do escândalo dos falsos paralímpicos na equipa de basquetebol espanhola, que participou nos Jogos de Sidney 2000, tivemos de fazer novos exames. Entre 2009 e 2012, fui sujeito a muitos exames psicológicos e físicos. Só a nível internacional fiz cinco. E colocaram-me na categoria T20, que inclui todos os atletas com deficiência intelectual. Já é para toda a vida", esclareceu, aprofundando depois mais a questão sobre as dificuldades que sente.

"Dou um exemplo: já tentei tirar a carta de condução cinco vezes e nunca consegui. Não consigo memorizar nada. Com a meningite que tive aos quatro anos perdi a fala, a memória, afetou-me também a audição e a visão. Ainda hoje, só vejo 25% do olho esquerdo. Fui para a escola sem saber falar e tive de ter aulas de apoio a todas as disciplinas. Não memorizava nada. Felizmente a minha mãe sempre puxou muito por mim, ensinou-me a ser uma pessoa independente e interessada por aprender. As pessoas não notam deficiência porque os assuntos de que falo regularmente na minha vida são aqueles em que sou bom."

Texto atualizado domingo, dia 10 de março de 2018.

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