"Lendas japonesas"

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"O Japão é um país feito de risos, ou antes de sorrisos; ao Criador, que tudo pode, não admira que bastasse esta subtil matéria-prima para a elaboração das suas maravilhas". Quem o disse foi Wenceslau de Moraes (1854-1929), oficial da Marinha, cônsul português no Japão em Kobe e Osaka e o melhor intérprete dessa cultura, cujos passos foram seguidos pelo embaixador António Martins Janeira no século XX. A sua obra escrita, tardiamente conhecida, constitui uma marca única que permite compreender a importância do diálogo entre duas civilizações. "Tudo sorri. Sorri o céu, em doces cambiantes de azul nunca sonhados; sorri a vegetação, em doidas ramarias curvando ao peso de dedicadas florescências; sorriem as colinas caprichosamente acavalgadas, com as suas bastas cabeleiras de garotos, feitas de musgos e de capilárias; sorri a paisagem fresca das ribeiras, serpeando pelas campinas verdes: sorriem as casinhas garridas das aldeias, surgindo dos campos de lótus cor-de-rosa; sorriem os pássaros em gorjeios e os insetos em palpitações de élitros, sorriem as crianças, mimosas de carinhos e de louçanias; sorri o aldeão, sorri o operário, em doces fisionomias de gestos sem cuidados, e sorriem as musumés, as raparigas, frescas, deliciosas de perfis e adoráveis. Lágrimas, meus amigos, creio que só do orvalho aqui logram gotejar". Esta passagem, escrita em Dai Nippon, publicado em 1897 pela Sociedade de Geografia, é prova de como Moraes foi um intérprete sensível e arguto da essência da cultura japonesa. E recordo este texto, a propósito da recente publicação do álbum de Banda Desenhada da autoria de José Ruy (edições Polvo, 2023), onde se nota o magnífico encontro entre a memória de Wenceslau de Moraes, a tradição japonesa e a grande qualidade gráfica de uma referência fundamental da narrativa gráfica entre nós.

José Ruy tomou conhecimento dos textos de Wenceslau de Moraes na revista Serões e desenhou entre 1949 e 1951 nove lendas, adaptadas para quadradinhos. Era o tempo de O Papagaio de Adolfo Simões Müller. O projeto ficou, porém, longamente interrompido, e em 1987 foram republicadas três lendas por Catherine Labey e Jorge Magalhães nos Cadernos de Banda Desenhada, mas a continuidade foi impossível. Só agora podemos ter, mercê do entusiasmo e da persistência de José Ruy, já no final da vida, uma bela publicação que abrange onze lendas: Amaterasu, a deusa da luz do sol, Orochi, a serpente com oito cabeças, Biki no kaeru, as duas rãs curiosas, Nan no ingwa, Jorogmó e o templo assombrado, O crime de katzutoyo, Ninguió, a sereia; Acumá, os diabos da floresta; Ymabushi, o bonzo sedutor; Momotaró, o menino pêssego e Mimi-nashi-hôichi, o cego sem orelhas. Cada um destes contos baseia-se num imaginário fantástico. Para Wenceslau de Moraes, o "desenho japonês quase não se mexe. Roupas que ondulam; braços nus de musumés, adoráveis na forma, curvando-se, erguendo-se, consoante os misteres; dedinhos longos, terminando por unhas em amêndoa, contorcendo-se na originalíssima mímica de todos os instantes. Os samurais lutam corpo a corpo". Vemo-lo nas Estampas que estão na Gulbenkian. "Paisagens fantásticas; liberdades inauditas de ramaria, quiosques rendilhados, borboletas amando-se, as manchas escarlates dos peixes rompendo a serenidade verde dos lagos, dos jardins, nuvens roxas aos saltos pelo espaço. É isto o Japão".

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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