O Lehman caiu há dez anos. E Portugal ainda recupera

Gigante financeiro faliu no dia 15 de setembro de 2008 e as ondas de choque chegaram ao mundo inteiro. Uma década depois, Portugal ainda recupera da austeridade e o sistema financeiro dos prejuízos. O pior já passou, mas ainda há riscos.
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Cativações de verbas na administração pública, impostos altos, salários baixos, banca em recuperação. Estes são alguns dos efeitos que se sentem nos dias de hoje em Portugal, uma década após a mais grave crise financeira desde a Grande Depressão.

Faz agora dez anos que faliu o banco norte-americano Lehman Brothers - que se tornou um símbolo da crise financeira de 2008 - que nasceu nos Estados Unidos e chocou o mundo. Em Portugal, levou ao colapso de bancos, a uma crise de dívida soberana e ao resgate financeiro do país, a uma austeridade aguda, à venda de empresas públicas e à emigração, entre outros danos colaterais.

O país ainda não recuperou totalmente daquele evento que não só teve consequências na economia, como abalou o sistema financeiro nacional e deixou sequelas nos maiores partidos políticos. Alguns riscos persistem e são uma ameaça para Portugal em caso de nova crise.

Para economistas e banqueiros, a crise financeira não teria tido o efeito que teve em Portugal e na Europa se não houvesse um nível tão elevado de endividamento neste lado do Atlântico, como se constatou na crise de dívida soberana de 2011. E a dívida continua a ser um calcanhar de Aquiles que se encontra por resolver.

"A crise ainda não foi completamente ultrapassada. A crise da dívida soberana foi contida à custa de muita austeridade e da ação interventiva do Banco Central Europeu (BCE), que conteve a crise", afirma Luís Nazaré, economista e professor universitário. "Mas os stocks de dívida pública são uma ameaça que se mantém", adiantou.

O governador do Banco de Portugal também aponta o dedo à dívida elevada. Para Carlos Costa, "a elevada acumulação de endividamento público" e "o grau de endividamento do setor privado em alguns países europeus" potenciaram as crises sentidas após o choque de 2008.

"Gerou-se uma crescente aversão ao risco por parte dos investidores, que acabaram por se focar nos países com fraco crescimento e elevado endividamento, dando origem à crise da dívida soberana", afirmou num comentário escrito enviado ao Dinheiro Vivo.

Em junho, a dívida pública portuguesa situava-se em 246,7 mil milhões de euros. O governo estima que o país possa reduzir o seu rácio de dívida pública face ao Produto Interno Bruto (PIB) para 122,2% no final deste ano. Mas em março, o rácio estava nos 126,4%, segundo dados do Banco de Portugal.

Para Luís Nazaré, "até encararmos de forma mundial, europeia, comunitária, a questão do stock de dívida, continuamos com a espada de Dâmocles lá em cima". "Esperemos que a corda que a sustenta seja robusta, mas está lá, por cima de nós."

O economista alerta ainda para o facto de nos últimos dez anos se ter acentuado a tendência de "financeirização" da economia, com máquinas e algoritmos a fazer parte do dia-a-dia das transações nos mercados. "Hoje, a maioria das transações nos mercados são feitas ao microssegundo, em que não há tangibilidade na maioria das operações. As transações feitas num dia são equivalentes a toda a riqueza do planeta num ano. Isso devia fazer-nos pensar."

Luís Nazaré sublinha que "a economia é o motor, não a finança". "Quando a economia dá um soluço ou tropeça, a finança é afetada." Por isso, defende que "há muita coisa que devia ser mudada", lembrando que o problema em 2008 nasceu nos Estados Unidos devido à forma como foi feita a "desregulação selvagem" dos mercados financeiros no país, de que são exemplo os diversos produtos derivados que deram origem à crise.

Assalto de estrangeiros

Outro efeito que a crise teve em Portugal foi a tomada de controlo de grandes empresas públicas e privadas portuguesas por parte de estrangeiros. Da energia às telecomunicações, passando pela banca e pela aviação, o controlo de várias empresas portuguesas mudou de mãos.

Em 2012, a China Three Gorges entrou na EDP e a chinesa State Grid entrou na REN. Na banca, o Banif ruiu e foi absorvido pelo Santander Totta. O BPI é controlado pelos catalães do CaixaBank e o Millennium BCP pelos chineses da Fosun.

O setor da banca foi dos mais afetados pelas crises. Em Portugal, os bancos com mais falhas foram os primeiros a ir ao chão, como o BPN, que foi nacionalizado, e o BPP. O Banco Espírito Santo foi alvo de resolução em agosto de 2014 e em parte arrastou consigo a Portugal Telecom, de que o Grupo Espírito Santo era acionista. Alguns dos ativos do grupo foram vendidos, como a Tranquilidade, que está nas mãos da Apollo, e o Haitong, que é detido por chineses. O que restou da PT faz agora parte do grupo Altice.

Na CGD, a seguradora Fidelidade, a maior do país, é agora da chinesa Fosun. E o banco estatal ainda está a vender ativos, tal como o Novo Banco.

Bancos olham em frente

Na banca, as opiniões são unânimes de que houve melhorias, mas ainda há muito a fazer. Há menos bancos e maiores, como sucedeu nos EUA e por toda a Europa. E houve melhorias na regulação e na governação e controlo de gestão.

Para António Horta Osório, presidente executivo do Lloyds Bank, "o sistema financeiro internacional e também em Portugal está muito mais forte em capital, liquidez e cultura/capacidade de gestão, o que é fundamental para termos economias saudáveis".

Em declarações ao DN/Dinheiro Vivo, o líder do banco britânico Lloyds sublinha que "em Portugal, como noutros países europeus, a crise acabou por revelar falhas na gestão de empresas e também de vários bancos, que, após resolvidas, tiveram como consequência termos agora melhores gestores e também mais prudentes, no caso da banca, e uma supervisão mais rigorosa".

O presidente do Santander Totta, António Vieira Monteiro, considera que "sente-se atualmente uma grande melhoria na supervisão bancária, que passou a ser feita pelo BCE, e na criação do Fundo de Resolução Europeu, faltando só a criação do Fundo de Garantia de Depósitos geral".

"No sistema financeiro português, e embora acreditemos que o pior já tenha passado, persistem ainda dificuldades próprias. Apesar da clara redução do défice e da trajetória descendente da dívida, só um maior crescimento da economia permitirá ter uma banca mais saudável e sustentável", adiantou ao DN/Dinheiro Vivo.

O advento dos serviços financeiros digitais e dos novos concorrentes dos bancos no mundo da internet também obrigam os bancos a evoluir e a transformar-se. Cada vez é mais difícil gerar receita mediante a pressão da concorrência.

Os juros negativos deverão continuar nos atuais níveis por mais algum tempo, já que o BCE só deverá começar a subir as taxas de juro na zona euro no próximo verão. Os tempos do dinheiro barato ainda vão continuar por mais uns anos.

Se para os bancos é mais um peso nas margens, para empresas e famílias endividadas é uma boa notícia.

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