Legado de Pinochet em causa 40 anos após golpe

Quarenta anos depois do golpe de Estado que derrubou o Governo socialista de Salvador Allende, o Chile está longe da reconciliação, entre a herança da ditadura de Augusto Pinochet e as exigências das novas gerações.
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"Atualmente, vivemos noutro país. Um país que decidiu expressar as suas exigências, com a convicção de que é preciso mudar toda a herança da ditadura, e isso dá-nos uma perspetiva diferente sobre como abordar estes 40 anos", disse à agência noticiosa francesa AFP Lorena Pizarro, presidente da associação das Famílias dos Detidos-Desaparecidos.

O sociólogo Alberto Mayol afirmou que "esta comemoração produz-se no final de um ciclo político, nascido sob a ditadura, mantido numa fase de transição e atualmente em fase de conclusão".

Com o movimento dos estudantes, que gritaram na rua "Ela vai acabar, ela vai acabar, a educação de Pinochet!", a sociedade chilena exige mudanças de um modelo económico ultraliberal, que fez do Chile um dos países mais desenvolvidos da América Latina, mas de grandes desigualdades, com um sistema político pouco representativo.

"É todo um legado ditatorial que está hoje em questão", considerou Mayol.

Inspirado pelos discípulos do economista norte-americano Milton Friedman, Pinochet privatizou a saúde, a educação e as reformas.

De acordo com os dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Chile está prestes a atingir um rendimento 'per capita' de 20.000 dólares por ano, o mais elevado da região. Os governos da transição democrática conseguiram reduzir, desde 1990, o índice de pobreza de 40 para 14%, apesar de persistirem disparidades sociais.

"Não se procura uma mudança radical para voltar ao que tínhamos antes da década de 1970, mas antes uma maior participação de algumas camadas da sociedade. Não é que queiram estar fora do modelo, mas querem ter um papel mais importante", considerou Francisco Klapp, investigador do Instituto Liberdade e Desenvolvimento, um centro conservador.

A dois meses da eleição presidencial, é o futuro do modelo que está em jogo.

A candidata socialista, a antiga presidente Michelle Bachelet e grande favorita do escrutínio, promete uma reforma profunda para acabar com os vestígios da ditadura, incluindo uma nova Constituição, para substituir a que foi imposta por Pinochet em 1980.

A principal rival de Bachelet e candidata da direita Evelyn Matthei é uma defensora da atual situação.

As duas candidatas a La Moneda partilharam uma infância comum, mas a 11 de setembro de 1973 a sua vida seguiu caminhos radicalmente diferentes.

Os pais das candidatas, ambos generais da força aérea, eram colegas e amigos. Alberto Bachelet foi preso a 11 de setembro de 1973 pela lealdade mostrada a Salvador Allende, e morreu alguns meses mais tarde, vítima de torturas. Fernando Matthei integrou a junta militar de Augusto Pinochet.

Se Michelle Bachelet e a mãe foram detidas, torturadas e exiladas, Evelyn Matthei fez parte do círculo íntimo do ditador.

Além das exigências de mudança, intensifica-se também o clamor para conhecer toda a verdade sobre uma ditadura que deixou mais de 3.200 mortos, 38.000 torturados e centenas de desaparecidos.

"Com o tempo, reconciliação e justiça tornaram-se conceitos contraditórios. Em qualquer país, a justiça pode levar à reconciliação, mas no Chile a reconciliação é sinónimo de injustiça e de impunidade. Infelizmente, não avançámos o suficiente em termos de justiça para provocar uma reconciliação", lamentou Lorena Pizarro.

Isabel Allende, senadora e filha do antigo presidente deposto, afirmou: "Não podemos fechar um ciclo enquanto não for dito aquilo que, até aqui, não pudemos dizer. Quarenta anos passados, há muitas coisas que só agora começaram a surgir".

Os dossiers de cerca de 1.300 crimes, cometidos durante os 17 anos de ditadura, ainda estão nas mãos da justiça chilena.

Perto de 800 funcionários públicos e militares foram julgados ou condenados, e 70 cumprem penas de prisão, quase todos em centros de detenção militares.

Manuel Contreras, chefe da polícia política chilena durante a ditadura, cumpre uma pena de 200 anos de prisão.

Pinochet morreu acamado, há sete anos, sem nunca ter sido julgado pelos crimes cometidos.

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