Faz frio e vento, como é normal no inverno de Leça da Palmeira. As ondas fustigam as rochas, mas ainda não chegam aos balneários da Piscina das Marés, em Leça da Palmeira, uma das primeiras obras que Álvaro Siza assina como arquiteto. Tinha 28 anos e já se notam os traços que se tornaram marcantes na sua obra.."Não é comum um arquiteto construir as suas obras primas tão cedo, mas é o caso", diz, sem delongas, António Choupina, antigo aluno do Álvaro Siza, investigador do seu trabalho há 15 anos, comissário de exposições sobre o arquiteto e, nesta ocasião, anfitrião de uma visita guiada à Piscina das Marés e à Casa de Chá da Boa Nova, agora restaurante do chef Rui Paula com uma estrela Michelin..Os dois projetos na marginal de Leça da Palmeira, dos anos 50, nasceram muito antes de se falar em Pritzkers, Mies van der Rohe ou outros prémios para arquitetos. E a estes edifícios, António Choupina junta um terceiro da mesma época, a piscina da Quinta da Conceição..A "trilogia", visitável via Casa da Arquitetura, em Matosinhos, começa com um nome-chave para Siza: Fernando Távora, "seu mentor, professor, patrão, amigo de toda a vida" ou, simplesmente, "uma pessoa muito importante na sua carreira", como o resume António Choupina, assim que entra na Piscina das Marés.."Estes projetos começam com Távora, no ateliê de Távora. É apenas um estudante quando desenha a maioria destes edifícios", contextualiza o cicerone. Álvaro Siza nasceu em 1933, em Matosinhos, o primeiro projeto, na Quinta da Conceição, é de 1956. Tem 23 anos. Dois anos depois projeta a Casa de Chá. Em 1961, com 28 anos, faz a Piscina das Marés..A visita começa neste último, pelas 15.00, por razões logísticas. "Ainda estão a servir na Casa de Chá". É o edifício branco que se vê ao fundo, junto ao penhasco. "Um compromisso entre a arquitetura vernacular, a tradição da construção e o mais puro modernismo", vai explicando António Choupina, em inglês, para um grupo de jornalistas estrangeiros. "Neste edifício, tão moderno que é na realidade brutalista, já está noutra fase". "É também um tratado da opinião estética de Álvaro Siza", considera. Tinham passado três anos desde que tinha desenhado o edifício junto à igreja da Boa Nova.."A Casa de Chá e a Piscina funcionam como opostos um do outro na avenida", realça Choupina. "Um com uma topografia instável, o outro com uma topografia plana. Num temos que descer para entrar no balneário, no outro é preciso subir", continua. "Essa é uma das razões por que Álvaro Siza acaba por desenhar a avenida [nos anos 60] que os liga conceptualmente", explica, antes de entrar no edifício..Um traço transversal às obras do arquiteto ganha forma à medida que se avança para a entrada. "Nunca se entra num edifício de Siza em linha reta, mas faz-se um ziguezague para abrandar. Ele impele-nos a abrandar para depois nos focarmos no ponto central do projeto, o que neste caso é obviamente a natureza", explica.."Siza teve logo este domínio da proporção", continua. Sem legislação, foi a sua própria altura que serviu de referência. "Estes edifícios são feitos à medida dele e em relação com a topografia". Siza começa a olhar para os edifícios não como edifícios mas como paisagem.".O cimento usado, misturado com as rochas do lugar, procura usar a cor local. "É escolha óbvia neste bunker agarrado às rochas". Tudo é feito a pensar no uso da piscina, mas também nos invernos rigorosos. "Estas caixas junto ao mar tendem a voar ou a ficar destruídas pelo oceano", explica Choupina. É essa, por exemplo, a função dessa parede que divide balneários da piscina propriamente dita. " Tudo seria destruído se não fosse assim"..Intimidade e política na piscina Os balneários também foram concebidos a pensar nas tempestades e em homens e mulheres. O deles é mais escuro, o delas recebe luz natural, através de uma claraboia, para que se arranjem, mas também para preservar a intimidade. Estamos em 1961, os biquínis são raros. "Se fechasse seria escuro, mas os nossos olhos ajustam-se e veriam [as pessoas que trocavam de roupa]. Como temos sempre luz, é sempre mais escuro em alguns pontos, nunca nos habituamos completamente à escuridão"..Choupina chama a atenção para a luz que se reflete no balneário. "Siza cria o momento mais poético, com este poço de luz, no contraste entre a madeira escura, o cimento e este espelho que é aço polido". A estrutura - entra-se na box de um lado, sai-se por outro - faz com que as piscinas se pareçam com um estábulo de cavalos, um animal que sempre se pode ver nos seus desenhos "desprevenidos", segundo António Choupina..Uma vez ultrapassada esta zona, a primeira piscina com que o visitante se depara é a das crianças. "Siza constrói muito baixa para que apenas as crianças pudessem entrar", conta António Choupina. "Hoje as mães querem embrulhar as crianças em plástico-bolha, mas nessa época era muito importante psicologicamente porque permitia às crianças criarem a sua própria aventura, porque vivíamos uma ditadura fascista e uma oportunidade de lhes dar a ilusão da escolha"..O outro manifesto político da arquitetura da Piscina das Marés é a escada "para que as pessoas possam vir da praia e entrar no edifício público tendo o mesmo acesso que as pessoas que pagam", continua, sublinhando que estes aspetos fazem dele "uma pessoa muito controversa na época". "Ele não recebe encomenda pública por muito tempo depois da Piscina". Em 2011 tornou-se monumento nacional, tal como a Casa de Chá, para onde segue a visita.."O que ele cria aqui é um compromisso entre o que se entendia que e ra a arquitetura tradicional e o estilo internacional, os volumes brancos sob o sol de Le Corbusier", situa António Choupina..O projeto nasce quando, ainda estudante, começa a trabalhar com Fernando Távora, alguém que aceita o seu projeto e que está, também, muito interessado neste compromisso. Acabava de participar no Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa, um levantamento de formas de construção e tipologias que viria a ser entregue ao Estado português "como que dizendo: a arquitetura portuguesa é assim, justificando fazer tudo o que quisessem a seguir"..É também um arquiteto que visita México, EUA, Grécia, etc, e que quer passar esse conhecimento aos estudantes da Faculdade de Arquitetura do Porto, e quer dar visibilidade a uma nova geração de arquitetos. Entre eles, o jovem Álvaro Siza. O projeto da Casa de Chá da Boa Nova, encomenda da câmara de Matosinhos, é um concurso que Fernando Távora vence com dois volumes hexagonais com os quais Siza nunca concordou. O professor cedeu a Siza a possibilidade de pôr de pé a sua ideia..Choupina realça que o edifício "demonstra o período pelo qual passava, as suas incertezas". "Távora convida-o para trabalhar porque achava que ele era um mau aluno", explica. "Aqui começa a revelar detalhes esculturais, o que é muito curioso, porque ele queria ser escultor. O pai queria que fosse engenheiro civil, fazem um compromisso e Siza vai para arquitetura"..O detalhe poético da escada que coincide com a linha do horizonte é um dos "segredos" da Casa de Chá da Boa Nova. Antes de entrar há uma visão panorâmica, a última. Choupina acrescenta: "No interior ele quer mostrar momento selecionados, e, lá dentro, quer criar várias atmosferas". É uma história da infância: "Quando era pequeno teve pneumonia, teve de ir para o campo e tinha sempre a mesma vista - bonita, mas sempre a mesma - e ao fim de uns dias odiava-a. Por isso, não é o tipo de arquiteto que nos mostre toda a paisagem, antes seleciona"..A Casa de Chá é "como um gato a dormir ao sol", compara Choupina, mas não foi imune às críticas na época: "Dizia-se que a fachada estava nas traseiras do edifício, virado para o oceano". No entanto, "essa era a intenção de Siza". O arquiteto quer tirar todo o partido da topografia instável. "O espaço principal, mais ortogonal, fica de frente para o mar. É aqui que instala um sistema hidráulico de abertura da ampla janela, semelhante ao de uma oficina de carros, explica Choupina".Quando Siza regressa em 1991 para reabilitar a casa"não gosta de nada e quer mudar tudo". Até decidir, por fim, intervir na casa como faria "com outro arquiteto cujo trabalho que tem de respeitar"..Os detalhes:.CASA DE CHÁ DA BOA NOVA.A linha do oceano A linha do oceano é a última coisa que o olhar vê quando sobe as escadas, antes de chegar à plataforma que dá acesso à Casa de Chá. Nesse momento, tem uma visão panorâmica da paisagem, quase 360º. Lá dentro, escolhe momentos selecionados da paisagem..O Telhado Visto da igreja da Boa Nova, o beirado do telhado da Casa de Chá parece reto. Uma ilusão que se desmonta uma vez dentro do edíficio. Tem a forma de um boomerangue..As rochas A Casa de Chá da Boa Nova parece estar construída nas rochas, mas, na verdade, não lhes toca. O edifício fica a milímetros desses elementos. Termina sempre que os encontra. Choupina recorda a pintura da Capela Sistina: os dois dedos que quase se tocam, sem que, no entanto, isso aconteça..A chaminé Siza trabalhou muito a luz ao pôr do sol na Casa de Chá. A chaminé é inspirada nos barcos que partiam a esta hora para o alto mar..PISCINA DAS MARÉS.A proporção Antes de haver legislação que determinasse tudo, os arquitetos usavam outras medidas. Na Piscina das Marés, Álvaro Siza usou a sua altura - pouco mais de 1,60 cm - como referência..Os Cavalos "A tipologia do edifício é quase a de um estábulo, em que os cavalos entram por um lado e saem do outro", diz António Choupina, referindo-se aos balneários. Não espanta a inspiração. "Álvaro Siza adora cavalos, quando está aborrecido desenha-os", refere o investigador..As madeiras Siza propôs usar a madeira que ficava para trás durante a recuperação da baixa do Porto, em que também esteve envolvido. Fica negra, depois de "mergulhada numa substância com petróleo". As divisórias não tocam no chão. "A água pode entrar no inverno sem danificar as madeiras"..A escuridão O balneário feminino tem um poço de luz que também impede os olhos de se habituarem à escuridão, criando assim maior intimidade..Visitas guiadas da Casa da Arquitetura Para grupos de mais de 10 pessoas ou participações individuais sujeita à participação mínima de 10 pessoas..Casa de Chá da Boa Nova Visitas às terças e quintas para grupos e às quartas e sábados, para marcações individuais. Às 10.00 ou 16.00. Entrada: 6 euros; 5 euros (estudantes e associados da Casa da Arquitetura); 3 euros (grupos de estudantes)..Piscina das Marés Visitas todos os dias das 09.00 às 18.00. Entrada (por grupo): 50 euros. Marcação : (com antecedência mínima de 48 horas). visitas@casadaarquitectura.pt