Laranja e azul, um mundo perfeito

Na rua com a coligação. Reportagem de Vicente Jorge Silva.
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Encerrado o comício em Braga, na noite de domingo, um grupo de jovens interpela-me para saber o que penso do discurso que Passos Coelho acabara de proferir. Eles estavam claramente galvanizados pelas suas palavras e a sua presença em palco. Reconheço-lhes que fora um discurso bem dirigido àquela audiência de fiéis, mas na verdade eu ficara mais surpreendido do que isso.

Passos parecera-me transportado por uma vaga emocional e histriónica que ultrapassava as imagens habitualmente vistas na televisão, com um talento consumado de ator que provoca um efeito de identificação intensa com o público. É melhor do que imaginava, pensei, e talvez seja esse efeito que explica, em larga medida, o segredo da afirmação política da coligação de direita a menos de uma semana do voto decisivo, aquele suplemento que alimenta o sentimento de uma vitória até há pouco duvidosa.

E, no entanto, Passos evita proclamações excessivamente triunfalistas, como a reivindicação da maioria absoluta. "Não gosto de poderes absolutos - diz - mas da estabilidade que nos permita governar." E num apelo ao eleitorado indeciso - que será ainda imenso - e situado no centro-esquerda, toca numa tecla em que vem insistindo desde há algum tempo: o combate às desigualdades e aos privilégios. "Podemos ir muito mais longe do que fomos até agora na busca do que é justo, da igualdade de oportunidades." É a música social-democrata que Passos descobre para compensar os custos sociais e económicos da austeridade e de um trajeto marcado pelo que tantos portugueses sentiram como o testemunho de uma direita insensível ao sofrimento e ao empobrecimento do país.

Evidentemente, o líder da coligação não põe em causa a herança destes quatro anos. Ou seja: o que foi feito teve de ser feito porque não havia outra alternativa para salvar o país da bancarrota. "Mas os próximos tempos não se assemelham em nada às condições de Portugal em 2011 e que nos trouxeram até aqui." As cores laranja e azul da coligação PAF (uma sigla infeliz que, significativamente, não se faz ouvir nos gritos dos militantes) desenham agora um futuro radioso, um mundo perfeito de crescimento a que a maioria dos portugueses poderá aspirar depois de ultrapassada a crise económica.

Passes de mágica

É uma narrativa esvaziada de contradições - e mesmo os casos que a podem pôr em causa, como a venda do Novo Banco, os protestos dos lesados do BES, as incertezas da conjuntura internacional, o peso da dívida, a equação ainda por resolver da Segurança Social, entre tantas mais incógnitas a pesar no horizonte próximo, tudo isso é tratado com passes de mágica.

No fundo, tudo deveria acontecer como se a maioria dos eleitores estivesse sintonizada com a coligação no desejo de apagar as sombras do passado e do presente, uns e outros vencidos pelo cansaço e pela vontade de acreditar nos tais amanhãs que cantam pela voz inspirada desse eterno aspirante a tenor que se chama Pedro Passos Coelho. E se, afinal, a tal impossível maioria absoluta - que o suave Passos prefere designar por estabilidade, em contraponto aos riscos de uma aventura socialista - estivesse mesmo ao alcance da mão, sob o impulso otimista das sondagens e tracking polls?

Cuidado, porém, avisa logo o prudentíssimo Passos: as sondagens não votam. Até domingo, a estratégia é manter uma serenidade confiante na sabedoria do povo que não quererá enveredar pelos caminhos ínvios de um PS reduzido à solidão agressiva de Costa. No entanto, a guerra aberta dos números com o adversário principal, que tanto animou a pré-campanha, parece ter-se progressivamente desvanecido.

O próprio Paulo Portas - encarregado de assumir as hostilidades mais diretas com o líder do PS, deixando a Passos o papel de maestro unificador e tranquilizador da maioria - já temperou, aparentemente, o seu inimitável killer instinct, embora mantendo a verve dos soundbytes mortíferos, refém do seu passado a editar as manchetes d"O Independente.

Amnésia

À medida que se aproxima o dia D, a coligação aposta decididamente num discurso de tonalidade positiva, construtiva, subtraindo ao PS o mote da confiança em que os socialistas tinham alicerçado a estratégia da sua campanha. O foco de comunicação da direita passou a ser as "questões concretas, sociais e económicas" com que o país se vai defrontar no novo ciclo governativo. E pouco importa que a coligação tenha sido avara (é um eufemismo) na exposição detalhada do seu programa para esse novo ciclo, refugiando-se nas vagas referências de um programa de estabilidade que quase toda a gente já esqueceu.

A patente dificuldade do PS em traduzir em linguagem acessível ao eleitor comum as propostas do seu programa macroeconómico - nomeadamente no campo da segurança social - facilitou claramente a vida à coligação e permitiu-lhe até prescindir da memória histórica, beneficiando de uma amnésia que grande parte do nosso eleitorado, causticado pelas agruras da crise parece ter tendência em cultivar.

Quem se recorda das crises internas da coligação e, em particular, da "irrevogável" demissão de Paulo Portas? Quem os viu e quem os vê... Depois de Passos ter recusado o abandono do líder do CDS da barca governativa e o ter promovido a vice-primeiro-ministro - numa afirmação de autoridade que surpreendeu muita gente -, o cimento do poder fez deles, como vem sendo lembrado, uma dupla idêntica aos famosos Dupond e Dupont.

Se é difícil conceber duas personagens mais antagónicas em temperamento, estilo e convicções, a prova do tempo e das conveniências recíprocas - em especial por parte de Portas - acabou por criar entre os dois protagonistas da coligação uma complementaridade inesperada e quase enigmática que constitui hoje um dos trunfos principais da PAF, acentuando em contrapartida a já referida solidão de António Costa.

Portas continua temperamentalmente igual a si próprio e à sua velha fama de enfant terrible mas parece ter trocado as suas antigas ambições messiânicas de chefe da direita portuguesa pelo bem mais modesto papel de condutor da diplomacia económica. No almoço de domingo com os apoiantes de Guimarães, foi sobretudo esse papel que envergou - numa mensagem dirigida particularmente aos empresários da zona - quando talvez se tivesse esperado dele um discurso político mais acutilante contra um dos seus alvos favoritos: os perigos do radicalismo socialista.

O mistério Passos

Mas o mistério principal da coligação - e que representa porventura o seu maior capital - é, efetivamente, Passos Coelho. Há, de facto, dois Passos Coelho. Um é comunicativo, exuberante e mobilizador, como o que encontrámos no comício em Braga, no almoço ou numa arruada festiva em Guimarães e ainda num encontro com militantes da JSD e da JP na Casa das Artes em Famalicão. E há um outro, tímido, de uma afabilidade reservada, aparentemente pouco à vontade na sua pele, que foi o que, ao início da manhã, recebeu os jornalistas num hotel de Vizela para um pequeno-almoço com declarações off the record (mas que em boa verdade não continham qualquer segredo).

Nada do que aí foi dito - nem mesmo uma referência passageira aos lesados do BES que, aliás, estiveram ausentes de cena neste domingo minhoto - poderia ser relatado como inconfidências. A preocupação com a agenda social e económica, a redução progressiva da austeridade, as questões da família e da natalidade, a importância da concertação social, entre outros temas congéneres, não ofereciam nenhum segredo particular e que não fosse posteriormente desvendado em Guimarães e em Braga.

Não é também segredo para ninguém a insistência pública da coligação em que não pretende explorar um clima de medo, que não é bota-abaixo e é favor do compromisso - daí a predisposição da PAF, em caso de derrota, a viabilizar o Orçamento do PS, ao contrário do que este tem anunciado se a coligação vencer. Finalmente, admitir que Lisboa será o mais difícil teste na disputa eleitoral não cabe, de todo, na categoria das inconfidências.

Que leva, então, Passos Coelho a querer refugiar-se numa redoma, com um discurso redondo perante os jornalistas, e transfigurar-se depois num orador capaz de levar ao rubro as plateias de militantes? É talvez uma questão a que o próprio Passos não saberá responder, dividido que está entre uma personalidade desconfiada e reservada e outra personalidade comunicativa e exuberante.

O homem que levou o país além da troika - embora se mostre relutante em reconhecer-se nesta fórmula - é o mesmo homem que agora pretende potenciar o capital dos sacrifícios feitos num futuro ciclo de reformas de cariz social-democrata, combatendo as desigualdades e promovendo a redistribuição das riquezas.

Apesar dos percalços que continuam a assombrá-lo, Passos beneficia hoje de um clima de maior distensão social que não existiu durante o período mais extenso do seu mandato. É nesta conjuntura relativamente favorável que ele aposta para criar a ilusão de um mundo perfeito (ou tão perfeito quanto possível).

Resta saber, finalmente, quantos portugueses ainda indecisos estarão disponíveis para embarcar nesse projeto de contornos mágicos, pressionados pelo medo - porque o medo existe e é estimulado de muitas formas, quer Passos o queira quer não - de ensaiar uma alternativa, quando por todo o lado, da Grécia ao Reino Unido, o dogma dominante é de que não há alternativas.

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