O lar que combate a demência ao estilo Adeus, Lenine!

O AlexA, na cidade de Dresden, no leste da Alemanha, tem duas salas dedicadas às recordações da RDA. Dos móveis aos produtos de supermercado, tudo recuperado de uma Alemanha que deixou de existir com a queda do Muro de Berlim. Uma viagem no tempo para ajudar os pacientes com demências
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Fecha os olhos para segurar uma lembrança. Recorda os cheiros bons do chocolate, do café forte, cheiros chiques que raramente estavam ao alcance do seu bolso de leste. Às vezes, os amigos do "lado de lá" emprestavam alguns marcos e ela podia comprar na Intershop que ficava mesmo ao lado de casa. Estas lojas estatais eram as únicas que vendiam produtos ocidentais na República Democrática Alemã (RDA).

Numa prateleira, a marca sobressai a vermelho, ao lado de outra, a Kaufhallz, escrita a letras azuis, o nome da única rede de supermercados que existia. Gerda Noack vai partilhando as memórias que lhe restam e, às vezes, ir às compras é a melhor maneira de as recuperar. Com 93 anos, vividos sempre na RDA, teima em não deixar que o Alzheimer lhe leve o que o muro deixou cair. Está sentada à mesa, mas vira-se para conversar. Cabelo branco curtinho, mãos cruzadas, aproxima a cara para ver melhor, e dá detalhes de um chapéu, o mais bonito que fez quando trabalhou numa importante empresa que os fabricava, em Dresden. Era castanho. Tinha abas e uma espécie de nuvens desenhadas. Era perfeito.

"Não temos nenhuma prova científica que sustente o que fazemos. Sabemos que isto não é uma cura para as demências de que os nossos pacientes padecem, não temos um milagre para terminar com doenças como a de Alzheimer. Mas estamos a dar-lhes qualidade de vida durante alguns meses, estamos a dar-lhes confiança, com este projeto sentem-se úteis e ativos", revela Gunter Wolfram, o diretor do lar de idosos AlexA, em Dresden. Algo feito num espírito que faz lembrar a história do filme Adeus, Lenine!

O trabalho de Wolfram na residência de idosos começou há mais de uma década, mas foi há cinco anos que assumiu a administração. O projeto das "salas da memória", como lhes chama, começou há pouco mais de dois anos com uma moto. "Mas não é uma moto qualquer", sublinha, "é uma Troll, fabricada nos anos 1960." O modelo ficou popular na RDA e não passou despercebido no AlexA.

"No início pensei num Cadillac, mas era demasiado grande", conta o administrador do AlexA entre risos, "mas depois encontrei esta moto no eBay e comprei-a." Passou a ocupar um lugar de destaque na sala de cinema. Em baixo de dois holofotes, vigiada pelas imagens de atores famosos coladas na parede, a motorizada, preta, branca e vermelha, com uma mala na traseira, acabou por dar boleia às primeiras memórias. "Mal eu sabia qual seria o resultado", confessa Wolfram, "alguns pacientes começaram a recordar passeios com as namoradas, as viagens até ao trabalho, e houve até quem se lembrasse de que a pele do acento aquecia muito quando alguém se sentava lá."

Na realidade a Troll não saiu mais do sítio, mas deu o mote para outras viagens no tempo. Primeiro foi criada uma sala dedicada aos anos 1960, e "como essa teve tanto sucesso", partiram para uma segunda que recria os anos 1970. "Muitas das coisas que compõem essas salas foram trazidas pelos próprios funcionários, objetos que eles guardavam nas suas casas, outras foram compradas pela internet ou em mercados de segunda mão", explica Gunter Wolfram.

Mas há também pessoas de fora que ouviram falar do projeto e querem participar, oferecendo objetos usados pelas famílias na antiga Alemanha de Leste. "Há até quem passe por aqui e olhe pela janela. Ao verem objetos familiares e antigos perguntam se é um museu, mas nós explicamos que não", revela Nadja Preuss, coordenadora no AlexA e também quem recebe os e-mails que chegam de outros países. "Temos recebido imensos pedidos de cooperação, na semana passada tivemos até um da China", conta com admiração, "e quem sabe se o AlexA não vai também para China!", remata, entre risos.

São várias as residências sénior do grupo AlexA espalhadas pela Alemanha. Mas esta é a única que adotou este conceito, uma ideia que partiu do diretor, mas que foi imediatamente acarinhada por todos os funcionários. São cerca de 130 pacientes e 120 colaboradores de todas as áreas. Mais ou menos duas dúzias, com demências mais graves, têm acesso às salas.

Silke trabalha na sala dos anos 1960 há alguns meses. Bata verde-clara, nome numa pequena chapa, na lapela, agarra um baralho de cartas, enquanto ouve as histórias da Frau Noack, a senhora Noack. A maior parte já as conhece, mas faz sempre de conta que é a primeira vez. Explica que antes estava no andar de cima, ocupado por muitos pacientes acamados ou com dificuldades severas de locomoção. Um problema de saúde obrigou-a a deixar de fazer esforços e a ser realocada numa das duas "salas da memória".

"Já não quero trabalhar noutro sítio, é fantástico ver o que aqui acontece, como muitos dos que aqui entram chegam confusos, e pouco depois já se sentem em casa", confessa Silke. Conta, de sorriso nos lábios e lágrimas nos olhos, que os que aqui trabalham fazem-no com o coração.

Doreen, mais nova, dá-lhe um lenço para a mão e vai preparando o lanche, bolas de berlim com recheio de doce de morango. Na parede, em cima, há um quadro feito de recortes antigos de publicidade a produtos alimentares, onde não faltam a Club Cola (uma cópia da Coca-Cola, feita na Alemanha de Leste), as bolachas Cottbuser Keks ou os feijões Tempo-bohnen. Algumas versões reais estão nas estantes do supermercado recriado, onde estão também os sacos de compras de rede, tal como existiam antigamente.

"É impressionante perceber como um pequeno objeto pode desencadear nestes doentes uma série de memórias, memórias de pessoas, de vivências", realça o diretor do AlexA, acrescentando que "não é só o facto de esses momentos voltarem, é o sentimento familiar e confortável que eles ganham aqui, é um terreno que conhecem, onde se sentem cómodos e úteis, onde até fazem tarefas domésticas, como cozinhar. Muitos passam de estar deitados numa cama a quererem participar."

Wolfram dá o exemplo do telefone laranja-forte que ocupa uma estante. "É um telefone antigo, em que é preciso rodar o disco sobre os números para fazer a chamada. Há dias uma paciente estava a explicar a uma funcionária como é que se manuseava o telefone. Tentamos aproveitar essas vivências para os estimular, por exemplo, dando-lhes alguns utensílios da época e perguntando-lhes como os usavam, como é que lavavam a roupa ou como é que descascavam batatas", detalha o responsável pela residência sénior.

As salas têm horários específicos, funcionam apenas de segunda a sexta-feira, uma só de manhã, a outra das 08.00 às 18.00. O objetivo é criar rotinas e fazer que os momentos passados nesse espaço "sejam especiais". Muitas vezes, durante o fim de semana, "alguns pacientes vêm até aqui e tentam abrir a porta que está trancada", conta Gunter Wolfram.

Todos os dias há diferentes atividades dentro das "salas da memória", uma delas, por exemplo, é cantar músicas da época. Mas quem cá trabalha garante que isso nem sempre faz falta, às vezes basta entrar numa das salas para recuar no tempo. Com a memória é devolvida uma realidade que se desmoronou em 1989. Com a queda do Muro de Berlim, a vida de muitos pacientes do AlexA mudou radicalmente, perdendo tudo aquilo que conheciam.

Gunter Wolfram acredita que este conceito terapêutico pode ser replicado em qualquer outra cidade, em qualquer outro país: "Não com salas dedicadas à RDA, obviamente, mas todos os países têm a sua história, todos têm o seu passado, há sempre memórias." Na mesa verde, da cor das batas, a conversa continua: "O que gosta mais deste sítio, Frau Noack? Não consigo escolher só uma coisa, é muito difícil. Gosto de tudo".

Adeus, Lenine: Fingir que o muro não caiu para preservar a saúde da mãe

O filme Adeus, Lenin!, realizado em 2003 pelo alemão Wolfgang Becker, fala sobre um período muito importante da história da Europa: a divisão da Alemanha, o Muro de Berlim e, depois, a reunificação alemã. O protagonista da história, Alexander, participa numa manifestação a 7 de outubro de 1989, quando a mãe, Christiane, sofre um ataque cardíaco e desmaia. Isto porque ela era uma acérrima defensora do regime de orientação soviética e o filho estava a protestar contra o mesmo. Ela fica em coma e acorda oito meses depois, já o Muro de Berlim caíra, a 9 de novembro de 1989. Preocupado com a saúde da mãe, o filho resolve poupá-la à realidade e decora o apartamento da família ao estilo da RDA, para ela achar que esta ainda continuava a existir.

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