"Lá, as pessoas chamam-te 'patrão', só porque és branco..."
Posto Avançado do Progresso é um filme com traços de alguma alucinação, e mesmo sugestão onírica. Este efeito foi produzido, em grande parte, pela própria atmosfera local, ou foi uma intenção objetiva e formal do realizador?
Nuno Lopes (N.L.) - Essa dimensão onírica foi um efeito que o Hugo [Vieira da Silva] quis imprimir - já vinha do texto do Conrad - e que aumenta pelo facto de ele ter acrescentado à narrativa as visitas dos fantasmas da história da relação de Portugal com o Congo.
Ivo Alexandre (I.A) - Há uma presença concreta desse lado místico, até porque estávamos num terreno que é muito ligado aos cultos - foi lá que nasceu o voodoo, por exemplo. Nós no próprio local sentíamos isso, porque as pessoas ali têm crenças mesmo muito intensas, o que jogou em benefício de se provocar essa impressão no espetador.
Pegando na expressão de outro título de Conrad, sentiam-se mesmo no "coração das trevas"?
N.L. - Eu já tinha algumas referências de floresta tropical, porque estive um mês na Amazónia, mas não deixei de renovar um sentimento: o de estar num sítio que não tem dono. Nós aqui vivemos numa espécie de lego, o chão que pisamos tem dono, mas lá és tu o dono e ao mesmo tempo não és. Isso é uma sensação muitíssimo forte.
I.A. - Era inevitável que nos sentíssemos realmente frágeis, é instintivo, porque não temos praticamente defesas. O simples facto de tomarmos banho no rio tem uma imensidão de perigos: os hipopótamos, os crocodilos, as cobras... Portanto, o perigo é real. Particularmente, na zona onde estávamos, tínhamos desde a Black Mamba a cobras que matavam em cinco minutos, e aranhas que matavam em dois... A selva africana é avassaladora, e ao contrário da imagem que nos passam alguns filmes, de espaços enormes, há um aspeto também claustrofóbico. Penso que isso está muito bem retratado no filme. É realmente o coração das trevas.