Kizomba: uma coreografia do possível
Com o tema "Coreografias do impossível", a 35ª Bienal de Artes de São Paulo, a maior de arte contemporânea da América Latina, traz este ano não apenas um número recorde de artistas não brancos, mas também novas percepções capazes de desafiar a rigidez da linearidade do tempo ocidental, construindo, assim, espaços e outros sentidos.
A mim, ficou a pergunta: seria o impossível apenas uma coreografia que nos convenceram a dançar?
Entre as obras da curadoria de Grada Kilomba, Manuel Borja-Villel, Diane Lima e Hélio Menezes, podemos encontrar os casulos tecidos e amarrados de Judith Scott, a menina surda com síndrome de Down que foi separada da irmã gêmea e por ela resgatada 36 anos depois. A neurodivergente cria, e eu, ao ver as suas texturas, os ninhos feitos com fita cassete, rendas, lã, linhas e restos, me senti menos sozinha. Há várias formas de orfandade, a dos pais, a de uma língua perdida ou proibida, a de um nome apagado, a da exclusão, a de uma terra que ficou para trás. E é preciso tecer e criar caminhos para que a solidão não nos consuma em ressentimento.
Foram 121 artistas e mais de mil obras selecionadas, resgatando tradições e desafiando noções estratificadas. Portugal está presente na Bienal no chão pintado de rosa na site-specific-art de Carlos Bunga e outras obras que tendem a bagunçar as noções de grandeza e de medida no espaço-tempo.e com Rasuras, de Raquel Lima, a desvelar traumas íntimos, sociais e coletivos. Mas a presença lusitana não se restringe aos limites do pavilhão do Parque Ibirapuera.
Para além da programação da Bienal, razoavelmente perto, no edifício Copan, que, por si só, é uma obra de arte da arquitetura de Oscar Niemeyer, entre uma livraria, um espaço de exposições e um café, acontecia o primeiro Kizomba Design Museum, de Kalaf Epalanga e Nastio Mosquito (www.kizombadesignmuseum.com).
Para quem não sabe, Kizomba, que significa festa ou celebração em kimbundo, é uma dança, mas, nestes dias em São Paulo, tornou-se algo maior, para além de um evento, mais próximo de um encontro. Um verdadeiro chamado para as urgências de nosso tempo, capaz de permear o corpo todo, começando com um matabicho, depois conversas e enfim música e dança. Da Kizomba e suas derivações, havia ali um cogito de possibilidades. Uma contradança anti-horária e algébrica, o rompimento da rigidez linear.
Mas por que estou a dizer que Portugal estava também presente, se, afinal, a Kizomba vem de Angola e da diáspora cabo-verdiana?
Porque foi nesta Europa portuguesa que a Kizomba ultrapassou os limites de uma dança e de uma celebração, tornando-se também um caminho de salvaguarda de afetos, de memórias e de uma cultura. Por isso é urgente este chamado a Portugal, para reinventar seu papel nos processos históricos. Portugal precisa, por exemplo, olhar atentamente para seus pares, saber quantos africanos e filhos e netos de africanos vivem nestas terras. Quantos brasileiros? Sem um olhar atento, é difícil cuidar e pensar o futuro. E não se trata de construir políticas identitárias, mas, sim, valorizar as diferenças e as singularidades. E perceber que as misturas e os trânsitos nos qualificam mais do que imaginamos. Somente através de um olhar assim as antipatias, aversões e os impossíveis conseguem se diluir.
Num primeiro momento, admito, o nome museu me causou antipatias, afinal, são abarrotados de memórias surrupiadas de outros povos. Falo memórias e não objetos porque um museu é originalmente a morada das musas, ao menos no sentido original da palavra grega mouseion, cuja origem remete a um affair entre Zeus e Mnemosine, a deusa da memória. Os objetos nunca são apenas objetos, são histórias, símbolos, mesmo se arrancados dos seus contextos de significado. Mas um museu também é lugar de inspiração e de criação. E o que aconteceu em São Paulo foi um resgate ao sentido radical do termo. Antipatias afastadas, sobra espaço para o matabicho e para a dança.
Dino d"Santiago, antes do seu show, faz uma prece. Um templo talvez seja este corpo pátria que ele canta, e o sagrado se cria na reverência por onde passam nossos pés. A Kizomba, como boa dança africana, te convoca a pisar firme no chão.
Quando vi Kady dançando e cantando, me lembrei das mulheres maquiadas e ornadas em joias carregando paralelepípedos na cabeça numa construção civil em Bangalore, na Índia. Não, não estou a comparar Kady às indianas, como se todo não branco fizesse parte de um grande pacote e o mundo fosse divido entre nós e eles. O que me remeteu às indianas foi o movimento do corpo, a roupa e o quanto eu, uma crioula branca ítalo-brasileira, tem dificuldade em ver sentido na maquiagem, nas joias e nos tecidos coloridos misturados com cascalhos e cimento. A relação é para destacar o quanto nosso olhar é sempre parte. Kady não carregava pedras, mas fazia um outro tipo de construção, talvez a mesma que permitiu a tantas pessoas sobreviveram à diáspora.
"A minha Kizomba herdou o saudosismo da minha mãe pela sua terra", disse a escritora Yara Nakahanda Monteiro, e continuou, "a Kizomba é uma tecnologia de encontro e regresso". Mas de qual regresso estamos falando? Pensei.
Seria uma ode ao passado? Uma colonização às avessas com retórica de descolonização. Sofreremos, nós, pobres caucasianos, a invasão negra? Seremos arrancados de nossa cultura inventada, das nossas casas e do nosso português de Camões? Dramas delirantes à parte, não se trata de nada disso. Aplaquem vossos medos e antipatias, senhoras e senhores, a fim de não enrijecermos demais e não sobrar espaço para novos sabores e movimentos que a vida vivida nos exige. Até porque a velha prática exposta na dialética do senhor e do escravo de Hegel já está por demais defasada. É urgente inventarmos algo novo, e o inovador, e neste caso o regresso, pode estar simplesmente em preservar uma arte, passos de dança, resgatar caminhos e, principalmente, voltar a si. Nada mais desafiador que o simples neste nosso tempo. Sem falar, sinto em dizer, que só somos o que somos porque estamos atravessados pela África desde muito tempo e diria, ainda bem. Nos falta, talvez, a prece de Dino antes de começar o show, regressar à reverência ao sagrado que nos constitui, um sagrado encarnado nas gentes.
Afinal, o que levamos da vida senão o que deixamos para os outros? E o que é isso que deixamos para os outros senão uma picada aberta, um caminho, uma forma, um empenho amoroso, uma ferramenta tecnológica para liberdade e para os afetos? Eu fiz questão de levar meus filhos tanto no Kizomba quanto na 35a Bienal, algumas coisas precisam ser sentidas para fazer sentido. O que eles irão absorver da experiência? Não sei, não cabe a mim a sorte de saber, meu papel como mãe é ofertar.
Se a 35a Bienal de Arte Contemporânea fala das coreografias do impossível, a Kizomba nos põe a dançar e a questionar os limites dos nossos próprios desejos, nossa capacidade de cuidar de nós e do outro. Oxalá Portugal desperte para esta Kizomba-encontro.
Psicanalista e escritora, doutora em ciências humanas