Para traçar um percurso, talvez possamos situar o início da redescoberta recente de Kinuyo Tanaka (1909-1977) num documentário de Mark Cousins, As Mulheres Fazem Cinema (2018), lançado entre nós há um par de anos pela Midas Filmes. Foi nessa caixa de cinco DVD, com mais de um milhar de excertos de filmes realizados por elas, que deparei pela primeira vez com o seu gesto de cineasta, através de um fragmento de A Lua Ascendeu (1955), que Cousins analisa ao mesmo tempo que relembra o espectador do lugar de Tanaka no cinema dos grandes mestres japoneses: era "a Bette Davis do Japão", refere, que passou para trás da câmara depois de adquirir uma enorme experiência e estatuto à frente dela. Os seus seis filmes, realizados entre 1953 e 1962, foram objeto de restauro pelos diferentes estúdios onde trabalhou e regressaram às salas de cinema no último ano, distribuídos em França pela Carlotta Films (depois da passagem pelo Festival Lumière de Lyon) e exibidos na Film Society of Lincoln Center em Nova Iorque, chegando agora ao circuito português pela mão da distribuidora The Stone and The Plot, de Daniel Pereira, e do programador Miguel Patrício, que continuam um precioso trabalho conjunto de divulgação do cinema japonês desconhecido..Embora Tanaka não seja propriamente desconhecida - era, aliás, uma autêntica vedeta, cujo nome chegou a ser usado em títulos de filmes para atrair o público -, a sua faceta de realizadora acabou por ser ofuscada pela impressionante carreira como atriz, que acumula mais de 200 créditos ao longo de cinco décadas. Os cinéfilos reconhecem a sua arte melodramática do cinema de Kenji Mizoguchi (entrou em 15 filmes), que lhe conferiu uma eterna silhueta trágica, mas também das colaborações com Yasujiro Ozu e Mikio Naruse, entre outros. Porém, no Japão do pós-guerra Tanaka começou a alimentar a ideia de inscrever no grande ecrã, com a sua própria assinatura, os traumas nacionais e as questões de género levantadas numa sociedade em turbulenta transição. "Depois da guerra, tornou-se possível para as mulheres fazerem, até certo ponto, muitas coisas que queriam fazer. Eu também queria experimentar algo novo e uma das minhas motivações foi justamente esse sentimento", disse à revista Kinema Junpo em 1961. Ora, nada para além da realização poderia ser acrescentado ao seu currículo. Era uma escolha natural..O facto de ser uma atriz de renome garantiu-lhe condições que de outra forma não teria para dar esse passo, tornando-se a segunda mulher na história do cinema japonês a consegui-lo, embora seja a primeira e única realizadora no período após a Segunda Guerra Mundial (antes dela, Tazuko Sakane assinou documentários e uma longa-metragem que não chegaram aos dias de hoje). O mais curioso é que nesta aventura não tenha contado com o apoio de Mizoguchi, o afamado "cineasta das mulheres", que precisamente fez de Tanaka a sua musa. Há quem defenda que apenas o inquietava a possibilidade de perder uma atriz, mas não andará longe da verdade quem identifica também um certo preconceito - afinal, o amor pelas mulheres registado nas películas não é necessariamente o amor pelas mulheres no plano da realidade, isto é, no respeito pela sua afirmação social..Seja como for, Tanaka, a estrela, estabelecera os seus contactos na indústria ao longo dos anos, e não foi muito difícil ter à disposição atores e equipas técnicas, já para não falar dos contributos de Naruse, que a contratou como assistente de realização, e de Ozu, que coassinou o argumento do seu segundo filme, o já referido A Lua Ascendeu. Na casa dos 40, idade com que a generalidade das atrizes japonesas começava a perder presença no ecrã, Kinuyo Tanaka assumiu um novo compromisso com o cinema, e Carta de Amor (1953) seria o primeiro passo..Seguindo a ordem cronológica das realizações de Tanaka, o maravilhoso programa que chega amanhã às salas - com sessões diárias no Cinema City Alvalade, em Lisboa, e depois um pouco por todo o país - está dividido em duas partes, cada uma com três filmes correspondentes às duas décadas desta filmografia agora em retrospetiva integral. A segunda parte arranca a 18 de maio..Assim, Carta de Amor surge como introdução a uma obra que cresce de filme para filme, revelando a cada passo a voz de uma cineasta e, necessariamente, a perspetiva feminina de um Japão ferido. Neste título que começa por se centrar num veterano repatriado que aceita um pequeno emprego como tradutor de cartas românticas de prostitutas japonesas para soldados americanos, aquilo que está em causa é, na verdade, a condição de uma mulher ausente, que habita a memória amorosa desse homem. Ele procura-a em ruas, praças e estações de comboio, mas vem a descobrir que o objeto do seu amor teve o mesmo destino daquelas que recorrem aos seus serviços de tradução, e que costuma desdenhar em conversas de homens... "És só uma mulher, afinal", diz-lhe quando a confronta com esse passado, e numa frase fica resumida a misoginia que está para além da personagem: é um sentimento enraizado numa circunstância histórica, que Tanaka traz para a tela e questiona através da dinâmica complexa do tecido social..Exibido no Festival de Cannes de 1954, onde granjeou reconhecimento, Carta de Amor é o "teste" que permite a Tanaka continuar. Um filme que agarra a vibração das ruas de Tóquio, antes de se deter sobre o rosto da atriz Yoshiko Kuga, este a refletir sublimemente a violência do olhar e das palavras que recaem sobre ela. Bem diferente, no tom, de A Lua Ascendeu, um segundo título mais próximo da comédia romântica. O tal filme com argumento de Ozu, e uma evidente influência do mestre - vejam-se os planos exteriores, o gesto de descascar uma maçã, o pai interpretado pelo ator de Ozu, Chishû Ryû... -, mas que ensaia uma espontaneidade quotidiana menos característica no cineasta. É a história de três irmãs a viver na casa do pai, uma viúva, outra sem pressa para casar, e a mais nova armada em casamenteira (tal e qual uma personagem de Jane Austen), que são de alguma forma influenciadas pela lua, enquanto gerem a serenidade ou impaciência interior, a última relativa à juventude que anseia pelo alvoroço de Tóquio. A certa altura também surge a própria Tanaka no papel de uma empregada que tem a missão de se fazer passar por outra pessoa ao telefone, sendo-lhe tecido um elogio ("És uma verdadeira atriz!") na cena em que é instruída pela patroa. Apenas um exemplo brilhante dos seus cameos..Mas preparem-se: ao terceiro filme, Kinuyo Tanaka parte a louça toda. Para Sempre Mulher (1955) continua uma busca pela textura real da figura feminina, o seu traço mais rebelde dentro do idealismo japonês, e alcança o zénite dessa demanda com uma heroína absolutamente carnal, ou "escandalosa" (como foi vista pela sociedade, à época, a mulher que inspirou este retrato). Aqui o melodrama, que já tínhamos visto despontar em Carta de Amor, ganha proporções desarmantes, desde logo através dessa protagonista, Fumiko, interpretada por Yumeji Tsukioka, que descobre num clube de poesia o caminho para a libertação da sua triste existência rural. Mãe de dois filhos, divorcia-se do marido, que a trai, e mais tarde publica uma coletânea de poemas, ao mesmo tempo que um diagnóstico de cancro da mama a condena a uma mastectomia dupla, limitando-a a uma cama de enfermaria..Todo este quadro trágico resulta numa postura inversa à vitimização: esta é a mulher que apalpa os seios à procura de nódulos, sem que a câmara se retraia perante a crueza do toque físico, e é a mulher que procura o derradeiro êxtase de estar viva nos braços do jornalista que deverá escrever o seu obituário. Tanaka rompe com a delicadeza dos primeiros filmes, para encerrar toda a poesia do corpo e intimidade feminina numa proeza formal que se intensifica até aos minutos finais..Parte desta energia brutal contida em Para Sempre Mulher será reencontrada em Mulheres da Noite (1961), um filme que regressa ao tema da prostituição (Carta de Amor), desta vez para observar a reintegração social das ex-prostitutas, começando por retratar um centro de reabilitação que acolhe várias delas numa altura em que a lei proibiu o seu meio de subsistência. A protagonista é uma jovem que atravessa várias etapas, com avanços e recuos, sempre a bater com a cabeça no muro do passado enquanto tenta refazer a vida..No fundo, Mulheres da Noite é o título "despenteado" que se situa entre duas produções robustas: A Princesa Errante (1960), primeiro filme a cores e em CinemaScope de Tanaka, e Senhora Ogin (1963), também a cores, um jidai-geki (filme de época) que lhe permitiu fechar a obra como realizadora numa belíssima expressão cerimonial. O primeiro conta com Machiko Kyô, outra atriz fetiche de Mizoguchi, no papel de uma aristocrata japonesa obrigada a casar com o irmão mais novo de um imperador chinês, e atropelada pelo movimento feroz da História; o segundo, ambientado no Japão do século XVI, fala de um amor condenado, focando a tragédia serena da personagem titular (interpretada por uma das atrizes de Ozu, Ineko Arima), filha de um mestre de chá. São ambos projetos profundamente inscritos numa lógica feminina, mas sobretudo em Senhora Ogin esta traduz-se numa dignidade encontrada no momento da morte. Dir-se-ia, uma outra versão do êxtase de Fumiko em Para Sempre Mulher... Eis uma obra, seis filmes de géneros bastante diversos, que Kinuyo Tanaka concebeu com traços de modernidade mais ou menos ostensivos, sem descansar à sombra dos mestres. Não era sequer suposto ir além de musa do cinema japonês..dnot@dn.pt