Keynes é de esquerda?

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Keynes é habitualmente associado à esquerda política. Mas será assim? John Maynard Keynes pertencia à elite aristocrático-burguesa de Inglaterra (frequentou o muito elitista Eton College) e era radicalmente liberal nas ideias, nas artes e nos costumes. Sobre o marxismo escreveu que era "um prodígio para os historiadores da Opinião - como uma doutrina tão ilógica e aborrecida pode ter exercido uma influência tão poderosa e duradoura sobre a mente dos homens e, através deles, os eventos da história", interrogando-se "como posso eu adotar um credo que, preferindo a lama ao peixe, exalta o proletariado grosseiro acima da burguesia e da intelligentsia?". E como que concluiu que "eu posso ser influenciado pelo que me parece ser justiça e bom senso; mas a guerra de classes me encontrará do lado da burguesia culta". Longe, portanto, das qualificações para ícone de esquerda.

Keynes foi brilhante em vários campos, e um dos maiores economistas da história. Com uma vastíssima obra, teórica e prática, pode dizer-se que escreveu muito e sobre quase tudo, tornando fácil encontrar citações desgarradas para todos os gostos, mesmo que usadas erradamente. Uma das mais citada pelos críticos - "a longo prazo estamos todos mortos" (de 1923) -, parece sinalizar uma enorme irresponsabilidade para com o futuro. Mas enquadrada pelo que vem a seguir e omitem - "os economistas colocam-se uma tarefa demasiado fácil, inútil até, se no meio de uma tempestade só souberem dizer que quando esta passar o mar voltará a estar calmo" -, é bastante sensata: no meio de uma tempestade (crise), a tarefa imediata é salvar o barco, sem o qual não é possível desfrutar da superveniente bonança. É reflexão de um economista pragmático, por oposição às simplificações dos economistas de laboratório e do ceteris paribus.

Um dos seus contributos mais importantes para a teoria económica, muito inspirado na Grande Depressão dos anos 1930, foi a "descoberta", contra a precedente convicção clássica, da rigidez em baixa de salários e preços, que dificulta o ajustamento automático da economia a um choque económico negativo. Nessas condições, o ajustamento automático requer profundas recessões (e grandes níveis de desemprego) para gerar o necessário efeito nos salários, podendo este não se atingir e o ajustamento "parar" num duradouro "equilíbrio" muito abaixo do pleno emprego. Só a injecção pelo Estado de "procura administrativa" permitiria restabelecer, mais rapidamente, e com menores custos sociais, o equilíbrio de pleno emprego.

Esta intervenção estatal, porém, deveria envolver medidas transitórias e realizar-se através do investimento público, de preferência descentralizado (a nível local), única variável da despesa pública que deveria poder ser financiada com dívida, e não através de aumentos permanentes da despesa corrente.

Este contributo foi incorporado na corrente dominante do pensamento económico, e, sobretudo, na prática da política económica, embora continue a encontrar resistências teóricas nalguns quadrantes, nomeadamente nos ligados ao chamado monetarismo, à "escola austríaca" e ao ordoliberalismo alemão (este por razões que têm sobretudo que ver com o uso bem sucedido, avant la lettre, e em larga escala, de políticas intervencionistas de investimento público para infra-estruturas e armamento pelo regime nazi, retirando a Alemanha da depressão e consolidando a sua popularidade, e o compreensível receio de que esse intervencionismo acabe por se tornar o caminho para a sustentação de regimes totalitários).

Mas muitos dos que se intitulam seguidores de Keynes acabariam por abusar do intervencionismo estatal e associá-lo à propagação da inflação, nos anos 1970 e 1980, e ao descrédito das políticas inspiradas em Keynes. Segundo reportou Hayek numa entrevista de 1977, Keynes estaria consciente dos abusos a que os seus seguidores poderiam conduzir as suas recomendações, tendo-lhe dito, semanas antes da sua morte, em 1946, que "essas ideias foram terrivelmente importantes na década de 1930, mas se se tornarem perigosas... eu vou virar a opinião pública". Sobreviveu pouco tempo à alegada conversa.

Muitos dos que se reclamam das suas ideias, conhecem-nas mal e usam-nos como o homem que, tendo um martelo na mão, tudo lhe parece um prego. É uma espécie de keynesianismo de martelo, em que a intervenção do Estado e o aumento da despesa pública é a receita para todos os males. E é daqui que vem a associação implícita no título. Mas este "keynesianismo de martelo" - que conduz à insustentabilidade das finanças públicas - tem muito pouco de Keynes e de económico e muito mais de político e de ideológico. É a expressão de uma preferência política, ideologicamente fundada, de um Estado intervencionista e dominador, e que conduz inevitavelmente a um de dois caminhos - crises de dívida ou inflação acelerada (se for usado o financiamento monetário) -, terminando ambos em austeridade, para debelar as crises que originam.

Tão errada estará, pois, a esquerda em invocar o patrocínio de Keynes, como a direita em recusar as suas ideias.

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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