O universo dos melómanos e interessados no contraponto às (muitas) banalidades do mundo pop susteve a respiração em março de 2014: Kate Bush, então com 55 anos, anunciava o regresso ao palco, em nome próprio, interrompendo uma ausência que durava desde maio de 1979, quando o seu currículo apresentava apenas dois álbuns de estúdio, o da revelação (The Kick Inside) e o da confirmação (Lionheart)..Desta vez, Miss Bush trocava a itinerância por uma "residência" - 22 noites numa mítica sala londrina, o Hammersmith Apollo, periodicamente transformado no reino cénico de uma cantora conhecida pelas suas preocupações visuais - através dos videoclips que foi acumulando ao longo de um percurso musical imaculado -, pelo seu empenhamento coreográfico, pelas ligações improváveis que gosta de estabelecer entre diferentes artes, pelo seu confessado prazer em inovadoras aventuras, desde que controladas..Multiplicam-se as explicações, algumas delas com contornos especulativos, para tão longo interregno na subida ao palco "a tempo inteiro", ou seja, descontadas as presenças fugazes em concertos coletivos (de causas quase sempre beneficentes) ou como convidada especial de terceiros (aconteceu com Peter Gabriel e David Gilmour, dois dos seus mestres e companheiros de "estrada" artística). Quase tudo serviu para justificar este afastamento, mais difícil de entender diante da excelência dos conteúdos que ia passando em discos de estúdio como Hounds of Love (1985), The Sensual World (1989) ou Aerial (2005): o perfeccionismo desta primeira figura, incapaz de manter o controlo absoluto das ocorrências em função das vicissitudes dos concertos; uma qualquer fobia ao palco, alicerçada na trágica morte de um técnico de luzes antes do espetáculo de estreia da sua tournée inaugural... e única; a vontade de esconder um alegado e incontrolável aumento de peso, que também seria motivo para a sua vida de "eremita" e para a ausência de novos documentos fotográficos..Ao que parece, as razões são bastante mais lineares do que tudo isto: por um lado, Kate esteve realmente afastada do mundo da canção (entre The Red Shoes e Aerial voaram doze anos); por outro, fez questão de se dedicar exclusivamente ao acompanhamento continuado dos primeiros anos de vida do filho, Albert (Bertie) McIntosh, nascido em 1998. E Bertie até pode ter ajudado a esta boa surpresa - ele não só integra o coro das canções reunidas em Before The Dawn (o espetáculo e, agora, o disco) mas também assume a primeira voz do único tema novo do alinhamento - se descontarmos a vinheta cénica Little Light - destes concertos, Tawny Moon..Mudar e moldar.Bush, já percebemos, não brinca em serviço. Basta olhar a "seita" de músicos que reuniu para a série de recitais: o baixista John Giblin (que tocou com Peter Gabriel, David Sylvian e por aí fora), o baterista Omar Hakim (David Bowie, Sting e muito jazz), o percussionista Mino Cinelu (Miles Davis, Pat Metheny, Weather Report), o guitarrista David Rhodes (parceiro habitual de Gabriel), o multi-instrumentista Frissi Karlsson (um veterano de musicais como Jesus Christ Superstar ou Saturday Night Fever, que também tocou com Madonna ou José Carreras). Teve ainda o bom gosto de reconvocar um homem que a acompanhou nos shows de 1979 - o multi-instrumentista irlandês Kevin Mc Alea. Resolvidas as questões da eficácia e da segurança, faltava "o resto" - o brilho cénico é algo que (para já) se adivinha, com o concerto dividido em três atos: o primeiro viaja por vários álbuns do percurso de Lady Bush (excluídos em absoluto os quatro primeiros, com Never for Ever e The Dreaming a juntarem-se aos dois acima referidos), o que permite o encontro com novas versões de Lily, Hounds of Love, Joanni, Never Be Mine (gravada numa sessão sem público e posteriormente retirada porque a "patroa" entendeu que o espetáculo estava demasiado longo), Running up That Hill e King of the Mountain, entre outras..Para o segundo, o prato forte é a sequência The Ninth Wave, que vem do álbum Hounds of Love, acrescentada de uma canção rebatizada entre a edição de The Sensual World e esta subida ao palco - chamava-se The Fog, passou a The Morning Fog. Para o capítulo final outra suite, A Sky of Honey (de Aerial), antes dos encores com Among Angels (a única escala em 50 Words for Snow) e a incontornável Cloudbusting..Se a essência fica, todos os pormenores mudam - os arranjos, adaptados à escala cénica, fazem novas canções daquilo que já conhecíamos. Exemplos: Never Be Mine, em que desaparecem as "vozes búlgaras" do original e, com isso, se ganha uma dimensão muito mais íntima; The Jig of Life, em que o tempo foi substancialmente alterado e a instrumentação aproxima o desfecho da folk; Sunset, que aprofunda a abertura de horizontes, a ideia de paisagem aberta, da primeira versão..Mas, em verdade, acontece um pouco isto por todos os momentos contemplados - Kate Bush não reproduz, reinventa. Sem perder fulgor, gosto, dimensão, textura. Outro argumento para se poder julgar que houve aqui uma aposta all in: para dotar And Dream of Sheep de mais realismo na história de uma mulher perdida no mar, à espera que a resgatem, a cantora passou três dias mergulhada num tanque de água fria e foi aí que gravou a vocalização depois reproduzida no teatro. Valeu a pena a tangente à hipotermia....Faz pensar no tempo perdido, claro. Mas, vistas as coisas de outro ângulo, também permite conferir a esta edição o estatuto de acontecimento, curiosamente atribuído (na capa do CD) a uma tal KT Fellowship e não apenas à criadora, que percebeu o alcance do empenhamento coletivo para o êxito. Em resumo, um dos melhores discos de 2016 faz-se com canções que, nalguns casos, levam agora mais de 30 anos..Agora, é preciso reivindicar, sem esmorecimentos, o DVD que permita juntar o efetivo alcance visual, algo que fica por enquanto entregue apenas ao imaginário. Para o abaixo-assinado respetivo, podem perfeitamente usar a assinatura de quem escreveu este texto. Hoje, ao contrário dos tempos de Wuthering Heights, Kate Bush já não é uma paixão juvenil e assolapada, é uma devoção madura, consciente e devidamente interiorizada. Vale o que vale...