Juristas criticam tribunal por deliberar que "comia-te toda" não é crime

"Desmoralizador"; "anacrónico"; "chocante no século XXI". Decisão da Relação de Coimbra suscita censura de especialistas em Direito Penal
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Foi por um mês. A mulher que se queixou de ter ouvido de um homem, no dia 23 de julho de 2015, pelas 18.00, frente à praça de táxis de São Pedro do Sul, as expressões "Estás cada vez melhor! Comia-te toda! És toda boa! Pagavas o que me deves!" perdeu a oportunidade de ser a primeira a pôr à prova a apreciação dos tribunais sobre a criminalização de propostas de teor sexual (vulgo piropos), incluídas, desde agosto do ano passado, no crime de importunação sexual (170.º do Código Penal). Não tendo essa possibilidade, queixou-se pelo crime de injúrias e viu a Justiça fechar-lhe a porta. O MP considerou que os factos não constituem crime, o tribunal de primeira instância rejeitou a acusação particular, negando-lhe a possibilidade de ir a julgamento, e a Relação de Coimbra, que em 2006 acordara ser crime de injúria apelidar alguém de "cromo", apoiou a decisão. Embora admitindo serem as expressões em causa suscetíveis de "ferir a sensibilidade subjetiva da visada", o acórdão de que foi relator o juiz Jorge França, datado de 14 de setembro, conclui que "não atingem o patamar mínimo de dignidade ético-penal apto a fazer intervir o tipo de crime de injúria."

Uma decisão que choca a Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, pela voz da advogada Ana Oliveira Monteiro: "Entendemos que, não havendo dúvidas de que os ditos preencheriam o tipo criminal de importunação sexual, que é posterior, consideramos que também se enquadra no crime de injúrias." A jurista atribui o sentido da decisão à "pouca sensibilidade dos tribunais em relação à violência contra as mulheres" e fala de "desmoralização" em relação a queixas futuras.

Carlos Abreu Amorim, professor de Direito da Universidade do Minho e deputado do PSD, partido que propôs a inclusão das propostas sexuais indesejadas no crime de importunação sexual, junta-se ao protesto, afirmando-se "entristecido": "Considerar que não é passível de censura jurídica e criminal um dito destes, é como se fosse aceitável, como se fizesse parte dos costumes de relacionamento. É uma decisão anacrónica." Discordando "frontalmente da apreciação jurídica que o acórdão faz, porque a honra e a consideração social da mulher é manifestamente lesada com aquele tipo de expressões", concluiu que "jurisprudência deste cariz só vem demonstrar que era necessário criar um tipo legal novo, ao contrário do que muitos diziam, porque evidencia que mesmo quando a injúria contra a mulher é evidente, como é este caso, os tribunais não agem". Desse ponto de vista, vê a decisão da Relação de Coimbra, "embora errada, como um elogio ao Parlamento, por ter tido a coragem de uma intervenção legislativa que, independentemente da maior ou menor sensibilidade do decisor ou do juiz, não deixa margem para dúvidas".

"Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração", diz o artigo 181.º do Código Penal, que a Relação considerou não poder ser invocado neste caso. De facto, nem tudo o que é incorreto é crime, admite Conceição Cunha, professora de Direito da Escola de Direito do Porto da Universidade Católica. "Mas se achamos que chamar grande filho deste ou daquele é crime de injúria, então certas observações dirigidas às mulheres também são e ainda mais. E a conjugação do "comia-te toda" com a suposta dívida é muito explícita, sendo que isto ter sido dito num local público ainda é pior. E certamente uma situação muito mais grave do que chamar cromos a soldados da GNR, algo que o mesmo tribunal já reputou de injúria." E acrescenta: "Esta decisão ocorrer no século XXI é chocante."

A professora de Direito Penal Inês Ferreira Leite, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, tempera as opiniões anteriores. "Num crime como o de injúrias é muito importante o contexto." Estando em vigor o novo crime de importunação sexual, seria óbvio, afirma, estar-se perante factos que nele se integravam: "Se aquilo não são propostas sexuais, não sei o que são propostas sexuais." Mas, mesmo não achando tão claro que haja crime de injúrias, a penalista crê que a Relação não podia decidir como decidiu. "É possível que após o julgamento se chegasse à conclusão de que não havia crime, mas rejeitar a acusação só é possível se for óbvio que não há crime. Como podem concluir tal coisa à partida?"

O crime de injúrias prevê pena de prisão até três meses; as propostas indesejadas de teor sexual, previstas no crime de importunação sexual, têm uma pena bem mais elevada: até um ano de prisão (três se as vítimas forem menores de 14). Será que, questiona Ana Oliveira Monteiro, juízes que consideraram as expressões em causa "sem dignidade penal" poderiam aceitar os mesmos factos como integrando um crime mais grave - o de importunação sexual?

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