Júlio
O escritor francês Júlio Verne, que morreu faz hoje 100 anos, em Amiens, disse numa entrevista dada no final da vida que apenas lamentava "nunca ter sido levado a sério do ponto de vista literário" no seu tempo. Pouco importa. Verne continua a ser lido geração após geração, enquanto que os seus contemporâneos que não o levaram a sério, literariamente ou de qualquer outra forma, já nem memória de pó são.
Aliás, o esmero estilístico, neste caso, é secundário. O que importa é que Verne - que, quando rapazinho de 11 anos fascinado pelo mar e pelas terras distantes, embarcou da sua Nantes natal como moço de cabina num barco de longo curso (o pai foi buscá-lo ao primeiro porto e deu-lhe uma sova memorável) - foi um dos dois "pais fundadores" da literatura de ficção científica, juntamente com H.G. Wells - e sem ter tido consciência disso.
Júlio Verne escreveu as suas obras na tradição da literatura popular da época, mas o que as separa e eleva das demais é a forma como as transformou num misto de entusiásticas aventuras de exploração e descrição geográfica com intenções pedagógicas, e de narrativas de antecipação e especulação com bases científicas, animadas pela crença optimista no progresso tecnológico. Uma crença que se tingiu sombriamente de pessimismo no final da vida, como o comprovam os seus derradeiros livros.
Tudo aquilo que escreveu, Verne foi buscar aos livros e publicações que lia vorazmente (assinava inúmeros jornais e revistas, coleccionava enciclopédias e obras científicas) e às suas viagens (realizou o sonho de ter o seu próprio barco), anotando e desenhando tudo o que via.
Era um apaixonado pelo mundo à sua volta, um imaginativo fértil, e um grande assimilador de informação. Tinha, além de um sentido do maravilhoso "racional", uma prodigiosa capacidade de escrita. Qualidades que nos tornam tolerantes da fraca espessura psicológicas de muitos dos seus heróis e personagens, ou das ingénuas e insistentes esterotipações nacionais e étnicas.
A época. A obra de Júlio Verne, onde se mesclam a ficção romanesca e a divulgação pragmática, é a expressão literária acabada de um século XIX onde o mundo ainda tinha zonas inexploradas; de uma época de euforia capitalista e industrial, de agressividade das nações e de afirmação expansionista, colonial e civilizadora do Ocidente; de um tempo de descobertas científicas e saltos tecnológicos ; de uma era de crença no avanço positivo e construtivo da humanidade, que a I Guerra Mundial viria cortar cerce. Nela se encontram, ainda, os primórdios do interesse pelas viagens e o advento do turismo.
As aventuras e périplos das personagens vernianas cobrem todos os continentes, abrangem os quatro elementos, rumam à lua e ao espaço e mergulham no centro da Terra, desbravando horizontes, recolhendo conhecimentos e expandindo a imaginação. O homem que foi para Paris ainda novo e, influenciado por Hugo e Dumas, escreveu dramalhões, operetas e versos românticos, e trabalhou na Bolsa de Paris com muito sucesso financeiro, tornou-se no grande "futurista a vapor" do seu tempo.
Como escreveu Ray Bradbury, "De uma maneira ou de outra, somos todos filhos de Júlio Verne".