Ainda vamos no adro e logo esbarramos contra um paredão de caracóis. Cópias animadas em ladrilhos de trabalhos conhecidos do pintor. Quando se assentaram os azulejos, um pintor (de paredes) brasileiro perguntou ao pintor (de telas): «Porquê as lesmas, seu Pomar?» Júlio Pomar, de humor expedito e disponível para qualquer classe operária filiada de ofício, avançou então o motivo do animal: «Meu estimado amigo, como a obra demorou tanto tempo... aí tem a sua explicação.» À sua maneira satírica, o artista quis que a paciência de molusco gastrópode ficasse assinalada para a história da casa.Passamos aos meandros da futura Casa Museu, ou Fundação Museu, ou Atelier Museu, «como soe melhor às visitas» - o nome é irrelevante. Segundo Pomar, a escolha do caracol partiu de um ponto de vista muito prático. «O Álvaro Siza propôs dois bancos para o pátio e disse-me para fazer neles o que me apetecesse. Uma vez que ia partir do azulejo tradicional, e uma vez que este prevê a multiplicação de motivos, escolhi o caracol, um bicho que dá quatro posições sem perturbação nenhuma. Sobe naturalmente pela parede, e entre a vertical e a horizontal não há diferenças.» No meio da fauna de caracóis há, por exemplo, uma gaivota ou uma vaca aos pulos. Parodiando sempre, até pode ser um convite às pessoas para que venham ver com atenção demorada quando abrirem as portas na Rua do Vale, lá para Abril, segundo as últimas da Câmara, a quem caberá parte do governo da casa. Já instalados no recinto (inspirado no atelier de Delacroix na Rue Furstenberg, em Paris), dois pisos e uma sala única que corresponderá ao local onde se produzirão os eventos, Pomar volta à carga. «O olhar é a mais desgraçada das artes do sentidos, a mais empobrecida. As pessoas normalmente não lêem, vêem. Quando a propósito de um desenho, uma pintura, um objecto, pergunta-se "o que é que isto quer dizer?" Isto quer dizer que uma grande conquista ou criação da humanidade se transformou em qualquer coisa que perverte ou diminui o uso livre e as surpresas da vista.» Ver é uma coisa que requer tempo e ali encontraremos «uma batalhação de toda a vida». Isto é, há que vir com tempo para ver, mais do que passar a vista em cima.«Esta é uma instituição gerida pela Câmara, portanto temos de coordenar as vontades com a minha vontade de fazer coisas. Todo o trabalho a fazer resultará de um acordo mútuo», diz Pomar. Sobre o que vai estar patente em permanência ou de passagem, apura-se que a Fundação tem um espólio particular, resultado de uma doação do pintor e será exposto em alternâncias. «Hoje a tendência é chamar a atenção das pessoas através de elementos de rotatividade. Estamos na sociedade do espectáculo a cem por cento. Numa primeira fase ainda não está definido o que se vai poder ver. Não quero que seja uma obra só minha. Há a Fundação e os meus colaboradores, que terão uma palavra, e a personalidade cultural dos serviços da câmara», sublinha. Apuramos ainda que não será um espaço «morto», mas de integração na vida do bairro e da cidade. «Aqui vai poder fazer-se tudo. Esta casa, tal como está, tem tudo para não ser uma porta desgarrada onde, de três em três meses, virão uns senhores fazer um discurso e depois vão-se embora. Há um conjunto de condições de encarar isto como um projecto integrado na vida da cidade (a dois passos da Baixa, num bairro muito popular). Pode haver telões na rua, cinema ao ar livre, casa de fados... tudo é possível. É ainda fundamental ter aqui a música. Jazz, fado, erudita. Todas as artes em diálogo.» Depois de fala entusiasmada, o pintor recolhe-se a um silêncio. «Isto tanto pode ser uma bomba como mais uma chatice. Lisboa está cheia delas. Depende. As instituições estão moldadas por esquemas que estão longe de acompanhar a evolução dos tempos. Costumo dizer, e nenhum dos meus amigos juristas me contrariou, que a condição da lei é ser mudada. A História prova-o.»Como as cerejas, surge à conversa outra das casas de ilustres anunciadas para a cidade, a do escritor José Saramago. «Acredito que uma casa ou outra possam a vir a dar alguma coisa à cidade, e até realidades comuns", diz. «A literatura terá o seu lugar destacado. Sempre me dei com escritores e também faço a minha perninha», lá vai contando entre uma piscadela de olhos. Em matéria bibliófila também haverá coisas para mostrar que nunca foram vistas. Conte-se, pois, com o factor surpresa, e sobretudo as fintas tão caras a Pomar. Durante muito tempo, o nome de Júlio Pomar equivalia ao Almoço do Trolha, ao militante neo-realista dos anos cinquenta ou, mais recentemente, ao ousado retratista de Mário Soares que pôs as cátedras do poder em sobressalto. «Se alguma coisa se pode deduzir daquilo que tenho feito num número de anos que já não é piqueno, como diria o Camões, é que as cousas mudam. E há que dar atenção a isso», alerta o pintor. Sobre nomes aprisionados à obra única, Pomar lembra um homem importante da cultura portuguesa: Almada Negreiros. «Artista plástico, sim, mas seguramente um dos maiores escritores portugueses do século xx e que ninguém lê. Isto dito bastas vezes pelo José Cardoso Pires e o Nuno Bragança», frisa.Dobrados os 85 anos (a 10 de Janeiro), Júlio Pomar continua, como gosta de dizer, «a fazer pela vida» e atento a todos os avanços da obra, ou das obras, melhor dizendo. «Não escapo à idade, mas continuo activo e curioso. Se for como diz o poeta, morrem cedo os que os deuses amam, eu não fui abençoado», chuta agora entre risos. Curiosidade extensível ao fado e aos seus meandros lisboetas, onde também faz «outra perninha». Rondas da noite, vai-as fazendo, não com a regularidade das saídas aos antigos pontos de encontro de artistas. E ele próprio o diz com o humor que é a sua imagem de marca. «Havia uma coisa que se dizia que as crianças tinham, a bicha solitária. Hoje não se pode dizer isto. Pode dar azo a mal-entendidos. É a riqueza imponderável da língua. Mas eu acho que é uma boa definição para mim.»O Júlio Pomar nunca foi recebido em Portugal de limusina?Não era coisa que me importasse, mas não [risos].Mas ainda é do tempo em que os pintores eram celebridades, quando um Picasso ou um Dalí eram tão galácticos como as estrelas do futebol.Eram celebridades, mas quando se falava deles era para troçar e dizer mal. O Picasso, por exemplo, era um tipo detestado, e parece que detestável em muitos aspectos.No seu caso parece que é um pintor amado e com poucos inimigos. É o estatuto da idade ou foi sempre assim?Houve e há muita gente que não diz, mas se calhar não me grama.Nunca lhe deu para agradecer aos inimigos que o ajudaram na carreira?Não cultivo os inimigos.Onde entram hoje outras artes na sua vida, como a poesia e a escrita de uma maneira geral?A escrita entra por curiosidade. Coisas de puto que sempre gostou de versejar.Alguma vez escreveu para impressionar as miúdas?Faz parte da educação sentimental [risos].Isso de fazer versos com sérios intuitos começou quando?Não eram propriamente sérios, mas começou na [Escola de Artes Decorativas] António Arroio, antes da Segunda Guerra. Não é de agora, como se julga. Era uma coisa bucólica. Aquilo nesse tempo tinha uns belos prados e pomares. Era muito convidativo.Tem essas poesias precoces editadas?Não. A edição é posterior aos primórdios de candidato a poeta, embora esse livro pareça uma antologia.As intenções de criar, no caso da pintura, mantêm-se as mesmas com o passar dos anos?O espontâneo do começo mantém-se. O acto de remexer. O objectivo não é a peça que se apanha. Mas há quadros meus que são quase arrancados à força. Deixam de interessar-me quando deixam de oferecer-me a possibilidade de alterar.Estar hoje mais enamorado pela escrita é porque a mão do pintor já não lhe obedece?É por uma razão de visitação. Não se escreve por querer. O lado oficinal é uma mera ajuda para a cabeça começar a funcionar. A escrita tem de facto essa parte mecânica e física. Mas a cabecinha é senhora absoluta. No caso da pintura pode sair qualquer coisa e disfarça-se melhor.Alguma vez esteve limitado fisicamente para pintar?Não. Claro que a idade trouxe limitações inevitáveis. Mas aceito-as com naturalidade. Há sempre a história do Aleijadinho brasileiro, que nunca deixou de trabalhar.É mais esgotante pintar ou escrever?Julgo que há sempre um complexo de Tântalo em qualquer arte. Subir, cair, subir, cair. Neste caso trata-se de corrigir, escrever, corrigir, pintar. Eu nunca tenho a sensação de obra feita, num caso ou no outro.Num mundo em que toda a gente tira fotografias, o pintor nunca se sente cansado da imagem?Digamos que em períodos de cansaço ou estados depressivos, essa capacidade de ver fica mais preguiçosa. Como o cão que se torna molengão com a idade.A pintura para si ainda é lúdica como tem assumido sempre nas suas entrevistas?Felizmente, nunca perdi esse gozo.Diz que a vida o fadou incréu. Passa-se o mesmo com a arte, ou seja, não há metafísica?A minha metafísica é a maneira de pôr em risco. É a voz da experiência. Imaginemos um carpinteiro que faz uma mesa. Sabe quando está acabada. O artista, objectivamente, nunca saberá. Se tomar outro caminho é possível apalpar o terreno de outra maneira e ir de encontro a uma pedra, que se calhar, no seu inconsciente sempre soube que lhe fazia falta. Há um livro do Umberto Eco, A Obra Aberta, que fala muito bem disso. No fundo, no fundo, toda a obra é aberta ou então não é obra.Há quem diga, no caso da escrita, que o escritor quando escreve faz um striptease ao contrário. Passa-se o mesmo na pintura?Penso que sim. Há uma intenção falhada ou condenada de desocultar. A sua passagem de uma pintura chegada ao neo-realismo para o quase surrealismo e a paródia foi uma questão filosófica?Foi um processo mais demorado do que parece, e a aparente paródia não significa que não se mantenha o questionamento. Diria que não sou um sujeito que goste de viver no ralo e repisar na ferida. Confesso que não tenho muito jeito para a comiseração.Continua a ir todos os dias para o atelier?Sempre, nem que seja para dormir a sesta [risos].É ali que escreve?Não, por falta de espaço. Mas sou um escritor descontinuado. Posso passar grandes temporadas sem hipóteses de escrita.O que é que continua a dar-lhe um prazer sempre renovado na arte?Transformar.São vidas paralelas ou contíguas, a do escritor e do pintor?Contíguas. Acho que os mecanismos são quase os mesmos. A escrita aconteceu sempre sem ser chamada.Podia ter sido um grande escritor ou tocador de rabeca?De piano ainda vá que não vá, mas criei logo uma aversão ao ensino da música. Aquelas métricas espartanas davam-me cabo do juízo. Talvez exija uma disciplina que não se compadece com o meu feitio. Mas quando comecei a pintar também não podia tocar no cavalete. Estive quase a desistir.Quem encontrou quem: foi o Júlio Pomar que achou a pintura ou ela a si?Acho que é uma procura mútua que nunca acaba.Consegue ter uma definição do que é ser pintor?É uma definição simplista, na medida em que se distingue uma guitarra de um piano. Como é que, ao longo de setenta anos de carreira, o mundo se foi dando com o pintor?Nunca foi uma relação muito famosa. Quando comecei a trabalhar era inimaginável em Portugal fazer carreira como pintor. Ia-se para as Belas-Artes, fazia-se o curso e depois fazíamos o caminho dos mestres na Academia, muitas vezes sem pintar um quadro que se visse. Julgava que ia passar a vida com dois ofícios. Acumular com artes gráficas ou coisa parecida e pintar aos domingos. Não tinha fortuna pessoal, nem meios de sustento para que fosse de outra maneira.Houve um prenúncio bastante cedo na vida, ainda adolescente, de que a pintura se podia tornar o seu ofício exclusivo, quando Almada Negreiros lhe comprou um quadro.No fundo, aqui para nós e com o recuo da razão, penso que isso está empolado por eu ter na altura 16 anos ou coisa que o valha. O Almada tinha muito isso com os miúdos. Comprou-me o quadro e expô-lo na Sociedade Nacional de Belas-Artes. Mais tarde, numa visita, vi que havia uma arrecadação cheia de quadros. O facto de o quadro ter desaparecido criou-lhe uma aura.E dá alvíssaras a quem o descobrir?Pois com certeza.Já agora, podemos falar da sua futura Casa Museu? [do outro lado da Rua do Vale, ao Bairro Alto, onde mora quando está em Lisboa; alterna residência em Paris.]Vai ser um atelier-museu com projecto do Álvaro Siza, uma coisa muito simples estilo atelier industrial do início do século. O mais parecido que haverá com isto é o atelier do Delacroix, em Paris. O edifício tem uma história contada de boca: diz-se que era aqui que se guardava o «chora» (antepassado do eléctrico). Um bocado esquisito porque a rua não tinha grande circulação. Não sei se é facto, porque escasseiam informações. Sabe-se que na última vida era o depósito de livros da Sá da Costa. Começou por ser uma negociação entre mim e o proprietário, mas como o preço era inabordável desisti. Nessa altura era presidente da Câmara o João Soares e foi em conversa com ele que surgiu a hipótese de o edifício ser adquirido pela Câmara de Lisboa e utilizado por mim enquanto estivesse vivo.Que lhe diz a obra do seu amigo Siza? Na Rua do Alecrim, onde projectou um condomínio, houve críticas severas. Diz-se no bairro que andou a fazer urinóis trendy...Isso foi um aparte de um grupo de velhinhas sem humor. Há exemplos de projectos apedrejados que são hoje referências, como a «Nova Caracas», na Av. Almirante Reis, ou os blocos de habitação no Bairro de São Miguel, ambos em Lisboa. No princípio toda a gente achou aquilo um horror. Hoje matam-se para arranjar uma casa daquelas. Quanto ao Siza, acho que é de longe o nosso melhor arquitecto. Não deve haver muitos arquitectos que se possam gabar de ter excursões internacionais para lhe verem uma igreja na província. É hoje mais conhecido do que o Eusébio.Quem são os seus interlocutores artísticos?Vivos ou mortos?Disponha.O Fernando Lanhas é um dos principais. Convivemos muito e tivemos uma colaboração muito frutífera quando estive a viver no Porto. O Rui Chafes tem um trabalho que me interessa muito. O José Loureiro, pintor. A Paula Rego...São seus amigos, trocam ideias artísticas?Alguns. Com a Paula, como tínhamos uma amiga comum, encontrávamo-nos assiduamente. Era um ritual.Costuma receber jovens artistas no seu atelier?Agora não, porque não deixo [risos].É um sacrário?Não. Quando temos uma ferida na perna não gostamos de andar a mostrá-la.Está cada vez mais longe da pintura, é isso?Não necessariamente. Acho que não tenho nada de novo que interesse mostrar. É como mostrar um embrião de um romance. Não tem interesse.Continua a ter uma vida mundana?Continuo a ter prazer em pensar nela, mas saio cada vez menos.Consta que é assíduo das casas de fados em Alfama.É uma necessidade de convívio e de ouvir o que se anda a fazer, talvez para treinar a mão do poeta [risos].Um homem que viveu intensamente a noite, o debate, que lhe diz o fim das tertúlias dos cafés, como a do Café Gelo?As pessoas agora preferem o e-mail, os blogues, o Facebook. Mas, curiosamente, hoje recebo mails de pessoas que nunca me escreveram uma carta.Creio que é pública a sua amizade pelo escritor António Lobo Antunes. Falam com regularidade?Oiço mais do que falo porque o António é muito mais solitário do que eu e tem necessidade de produzir um discurso. Mas o António sempre foi um homem de poucas ligações. Agarrava-se a uma pessoa ou outra, como o Zé Cardoso Pires, que era mais homem do convívio. O António foi episodicamente um homem de convívios.O que é mais importante para si enquanto indivíduo: trabalhar para a posteridade?Nunca me perguntei isso com seriedade. Conheço muitos casos, como o António Lobo Antunes, que certamente trabalham para o imediato, uma certa aceitação e reputação. Não vejo o António a trabalhar para o post mortem.Acha-se acarinhado na mesma medida em Portugal e em França?Isso é uma resposta difícil. Mas não posso queixar-me de falta de carinho. Já aconteceu oferecerem-me um jantar em Portugal [risos].Já sendo um Pomar de idade veneranda?Já pois.Sempre foi assim?Nem sempre. Lembro-me de que quando havia o Coro do Lopes-Graça, que dava concertos nas sociedades recreativas, ter havido uma rusga. Pediram a identificação a toda a gente mas quando chegou a minha vez houve um polícia que disse «esse não é preciso que é o senhor fulano de tal». Acho que foi porque tinha uma reputação duvidosa e não por ser uma celebridade...Alguma vez foi vaiado?As minhas exposições sempre tiveram críticas desfavoráveis. Falo de cá. Na primeira exposição que fiz a seguir ao 25 de Abril houve um crítico de arte, que depois fez carreira pública, que começava o texto a interrogar-se como pediam 25 escudos por um catálogo de uma coisa e, passo a citar, tão «manhosa».São mito urbano os episódios de estalada entre surrealistas e neo-realistas?Não, não.Quem eram os seus amigos de então, além do Mário Cesariny?O [Marcelino] Vespeira, o Fernando Azevedo... Antes do fim da [II] Guerra fui para o Porto, que coincide com um episódio importante que foi a vinda do António Pedro para Portugal. Tinha uma aura de intelectual de que ninguém gozava. Era um tipo que editava os seus próprios livros e era afortunado, pois tinha sempre uma herança de uma tia para receber. Viajava quando ninguém viajava. Quando foi a Guerra voltou de Londres e receberam-no em braços. Eu frequentava esse grupo do «Papa Pedro», que era como lhe chamavam. Não terminou muito bem porque na altura a homossexualidade era uma coisa escondida. Até houve um ministro do Salazar que foi apanhado numa escada com um marujo e dizia-se que tinha sido preso pela «brochepista». Não quer dizer que não tenha havido uns patriarcas dos homossexuais dentro do governo, um deles era um alto funcionário no Património... Mas voltando ao grupo dos surrealistas, que deu lugar ao Movimento Surrealista: o Cesariny andava sempre a ser enclausurado por comportamentos impróprios em urinóis ou coisas assim. Um dia ligaram ao António Pedro para ele interceder. Mas ele dizia que não tinha nada que ver com isso. Desde aí passou a ser o «surrealista minhoto» e criou-se a dissidência, com o Cesariny a assumir a liderança da facção de Lisboa, sediada no Café Gelo.Tem saudades desses tempos mais animados?Brinca-se pouco agora.O humor sempre foi a sua arma. É um exercício contra a timidez?Não tenho paciência para a seriedade. Um crítico (outro) escreveu que eu não era um pintor sério e mal sabe ele que me fez um grande elogio. Agora muito a sério: não me levar a sério não quer dizer que não reflicta. Há um certo tipo de produção de discurso que me faz trepar pelas paredes. Não sou capaz de produzir o nojo da exortação da minha personagem. Aquilo que me interessa é o discurso que se desconstrói. A coisa inacabada, a obra aberta.Uma vidaJúlio Pomar nasceu em Lisboa, em 1926. Frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e as escolas superiores de Belas-Artes de Lisboa e Porto. No início da carreira foi influenciado por escritores neo-realistas como Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes, ligados ao Partido Comunista. Fora do país tem como referências o brasileiro Cândido Portinari e os muralistas mexicanos Orozco, Rivera e Siqueiros, que o encorajaram a fazer da arte um veículo de intervenção sociopolítica. Em 1945, Pomar expôs uma das suas obras paradigmáticas, O Gadanheiro, na Sociedade Nacional de Belas-Artes (SNBA), em Lisboa. O crítico Mário Dionísio escreveu a propósito o artigo «O princípio de um grande pintor?». Pomar assumiu-se então como um agitador da contestação ao regime, promovendo a I Exposição da Primavera no Ateneu Comercial do Porto, onde se agruparam artistas que recusavam qualquer colaboração com o salazarismo. A sua intervenção nas lutas estudantis custou-lhe a interdição da frequência na Escola de Belas-Artes do Porto. Para a decoração do Cinema Batalha naquela cidade foi-lhe encomendado um grande mural, mandado destruir pela polícia política poucos meses depois da abertura da sala ao público.Pomar regressou a Lisboa, onde foi preso (durante quatro meses). Nesse período, o seu quadro Resistência foi apreendido na II Exposição Geral de Artes Plásticas. Em 1950, realizou uma exposição individual na SNBA, em Lisboa, onde apresentou obras marcantes da pintura portuguesa do século xx, como o célebre O Almoço do Trolha. Nos anos sessenta, radicou-se em Paris. Em 1968, inspirado pela revolta dos estudantes, pintou uma série subordinada ao tema da insurreição. Quando se deu o 25 de Abril de 1974, Júlio Pomar encontrava-se em Lisboa, onde permaneceu nos meses seguintes, vivendo os acontecimentos revolucionários. Mantém-se activo enquanto artista e escritor.