Júlio Pomar

Pintor.
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Acha que a vida é uma espécie de loja de tintas ou dicionário em movimento e actua em conformidade. Não ser capaz de se repetir e viver sempre a mudar o botão fizeram- -no viajar até aos 82 anos com um humor invejável e uma arte notável. Era jovem e dava aulas quando Salazar implicou com um retrato que fez de Norton de Matos e o expulsou do ensino. Ele agradece ao ditador tê-lo obrigado a ser pintor - e também escritor de poemas, ensaios e fados.


Uma das coisas que surpreende na sua arte é que está em ruptura constante e sempre a absorver as novidades. A que se deve esta inquietação e permanente mudança?

Um dos vícios que tenho é não ser capaz de repetir as coisas. Eu não sei o que seria de mim se fosse funcionário público e tivesse de estar sempre a escrever naqueles livros imensos. Bem, agora já não se escreve nos livros…


Agora é ao computador.


Exactamente! Lembro-me de uma vez em que tinha de pagar a taxa militar, por não ter feito tropa, e fui a uma repartição que ficava num terceiro andar no Bairro Alto. Parecia uma cena de teatro amador. Havia uma lâmpadazinha lá em cima, muito fosca, e um senhor com mangas de alpaca - aquilo que no Porto se chama manguitos, aqui em Lisboa interpretam manguito de maneira diferente -, com um lápis, daqueles muito grossos que davam nos stands de automóveis, a querer meter um número com não sei quantos algarismos numa colunazinha que teria um centímetro. É claro que chegava ao fim e não cabia. Ele pegava na borracha e tentava de novo. Fez isso não sei quantas vezes. Juro que é verdade. Não era teatro de amadores, nem revista do Parque Mayer.


Essa capacidade de viver sempre a mudar o botão é extensível às novas tecnologias? Usa telemóvel?


Não. Chulo o próximo. Não, até já comprei um, mas não me dá jeito. Depois é uma coisa muito pequenina, os meus dedos não se habituaram. Aqui há uns anos, estava com o Jorge Sampaio e o Siza numa manifestação e eu precisava de fazer um telefonema. O Álvaro Siza não tinha, o Jorge Sampaio também não, mas a coisa resolveu-se logo, porque um presidente nunca vem só…


Havia um assessor por perto...


Uma data deles! Um puxou logo do telemóvel que até parecia que estava a sacar de uma arma. Rimo-nos muito.


E fotografias? Tira fotografias?

Não tiro fotografias e não guio automóveis. Eu até gosto muito de automóveis, mas as máquinas comigo não dão.


A fotografia nunca o apaixonou?


Ainda há uns anos fui comprar uma máquina. Mas a minha maneira de olhar para as coisas é completamente diferente da visão do fotógrafo. Eu acho que nós estamos ainda na pré-história da fotografia. No fundo, para a fotografia é como se o mundo fosse uma salsicha ou um chouriço. É um corte. É um corte no tempo. Ora a minha visão é ao longo do tempo. Das poucas vezes em que eu peguei numa máquina, quando ia para disparar, já tudo tinha desaparecido. Não sei se estou a ser claro. O processo é completamente diferente. A fotografia é outra coisa. Não tem nada a ver. É como quase escrever um texto de opinião ou um romance.


Mas usa muito a fotografia no seu trabalho...


Sim, sim, uso fotografias. Sobretudo fotografias que, digamos, ficaram na minha memória. Trabalho sobretudo só com a memória.


E tem boa memória?


Não, não, não, não… Há dois tipos de memória, como há duas maneiras de olhar para as coisas. Há uma memória ou uma visão que é abrangente, que apanha tudo sempre, e, do lado oposto, há o querer ver uma coisa e só se ver uma coisa. Isso é muito engraçado. Há pessoas que quando vão na rua olham para todos os lados, vêem os cartazes, vêem tudo. E outras pessoas vão determinadas no seu caminho e não vêem nada. Ainda há dois dias ou três, estava com a Graça Morais, disse-lhe que Lisboa está cheia de galerias por todo o sítio, contei-lhe de uma conversa com um motorista de táxi que falou de um amigo que se tinha divorciado e para compensar a senhora…


Montou-lhe uma galeria de arte?


Estava hesitante entre uma boutique ou uma galeria de arte.


E a Graça Morais, o que é que disse?


Que não tinha dado conta disso. É daquele tipo de pessoas que só olha o que está em frente. Não regista a visão. Isso é muito frequente.


Há mais de 30 anos que reparte a vida entre Paris e Lisboa. Este permanente vaivém entre dois mundos influencia o seu trabalho?


Há muitos dias em que eu não saio à rua, tanto aqui como em Paris, ou então só saio para jantar com uns amigos. Já não sou aquele Júlio Pomar que andava pelas ruas quase sem destino e fazia grandes trajectos a pé. Isso hoje não sou capaz de fazer ainda…

Porque é que continua a ir para Paris?

Primeiro, porque me habituei muito a trabalhar em Paris.


Mas é mais produtivo lá?


Não, isso é igual. Quando fui para Paris, tinha a necessidade de ver coisas, saía todos os dias. Nessa altura, seria impensável um dia fechado em casa. Mas agora tenho lá os meus amigos, etc. E depois, repare, há outra coisa, hoje as pessoas se não têm uma casa de fim-de-semana ficam desqualificadas. Ou menos qualificadas. Se nasceu na província, volta-se à terra natal. Tive a pouca sorte de nascer em Lisboa, quem nasce em Lisboa não tem terra. Voltando à Graça Morais, ela é de Trás-os-Montes e, portanto, tem terra aonde voltar …


Trabalha todos os dias?


Sim, sim, sim.


Sábados e domingos?


Adoro sábados e domingos. Está-se mais tranquilo porque as pessoas têm a obrigação de ir passar o fim-de-semana fora.


Trabalha à noite?


Já trabalhei à noite, mas agora evito.


Já sabe o que é que vai fazer amanhã?


Amanhã? Quando chego ao atelier faço sempre coisas várias ao mesmo tempo.


Durante os 60 anos que leva a trabalhar, alguma vez teve ordenado fixo ao fim do mês?


Tive. Quando fui professor. Era bastante novo e dei aulas de Desenho na Escola Afonso Domingues.


Durante quanto tempo?


Acho que um ano e picos. Porque entretanto foi a campanha do general Norton de Matos. Fiz um retrato, que teve uma grande popularidade entre os rapazes que diziam "lá vi a caricatura do sr. doutor", mas parece que Salazar se interessava sobre as actividades dos seus subordinados e mandou-me embora. O que só me fez bem. Imagine você que eu me tenho habituado? Eu não sou de massa diferente.


Podia ter entrado naquela rotina?


Podia ter entrado naquilo. A massa não era diferente. Simplesmente tinha de sobreviver, tinha de tentar por todos os lados. E como não tive jeito para aquelas coisas que se faziam na altura, as publicidades e os cartazes. No meu tempo, os meus colegas todos iam para um atelier de publicidade. Foi o que aconteceu ao Vespeira, ao Fernandes Azevedo, essa gente já toda morreu. Era a perspectiva que havia à frente, não é?


O Salazar ajudou-o a fazer a opção pela pintura a tempo inteiro?


O Salazar e a falta de jeito para as coisas da publicidade. E eu tentei muitas vezes.


Ai tentou?

Tentei, pois. Já tinha filhos, etc. Tinha de sobreviver de qualquer maneira.

Quando foi para Paris, com 37 anos e já homem feito, já vivia da pintura?

Eu não vou para Paris em princípio de vida, como foi gente do meu tempo, o Eduardo Luís, o Costa Pinheiro e outros. Nessa altura, eu já estava a poder viver, bastante modestamente, é preciso que se diga, do meu trabalho.


Partiu para viver e aprender coisas novas?


Sim. Foi fundamental porque a informação e a preparação aqui eram praticamente inexistentes. E nada nasce do nada. Nas artes há muita aprendizagem. E nessa altura em Portugal o ambiente à volta era muito pobre.


Tinha um tio que queria que fosse arquitecto ou engenheiro. Desde que se lembra sempre quis ser artista?

Todo o menino que gostava de desenhar a família mandava-o para arquitectura. Até que um dia, estava eu na escola primária, esse meu tio, que era uma espécie de chefe da família, veio com a ideia de que eu devia era ir para engenheiro, porque era mais importante do que arquitecto.


Entrou-lhe por um ouvido e saiu-lhe pelo outro?


Fui para Belas Artes e nem sequer para arquitecto, mas sim para aprender pintura.

Gostou da escola?


Aqui em Lisboa, Belas Artes era um sítio absolutamente tenebroso, dirigido por um homem chamado Luís Alexandre da Cunha, arquitecto, ao que se dizia, mas cuja obra na pintura parece que foram, enfim, uns sanitários de uma estação de comboios. Era um homem que era perfeitamente monstruoso e com ideias definidas. Quem vinha da Escola António Arroio, como era o meu caso, não passava. Chumbava-nos sistematicamente numa cadeira do primeiro ano. Fazia logo a selecção. Foi assim que eu fui para a escola do Porto.


Foi a primeira grande decisão da sua vida? 


Foi muito útil, até na medida em que na escola do Porto havia um outro ambiente, um outro companheirismo, a iniciativa dos novos artistas, já com outra visão, com hábitos independentes, Foi uma decisão bem tomada.


Teve sucesso como artista muito cedo. Ainda não tinha 20 anos e encomendaram-lhe logo o painel para o Cinema Batalha.


Sim, sim. É absolutamente inconcebível. Só possível naquelas circunstâncias. O Porto era um meio pequeno em que havia uma relação entre as pessoas que tinham interesses semelhantes. 


Em que café paravam?

No Majestic e na Brasileira. Aqui em Lisboa, havia uma grande separação entre estudantes das Belas Artes e os chamados artistas, salvo seja. Eles iam à Brasileira e os rapazes das Belas Artes iam ao Chiado. Dois campos. No Porto, nós, os rapazes das Belas Artes, sentávamo-nos à mesma mesa do que gente com a vida profissional já assegurada como, por exemplo, o arquitecto Viana de Lima, que foi um dos meus companheiros. Eu não tinha 20 anos e ela devia ter entre os 40 e os 50. Isto era absolutamente natural no Porto e não existia em Lisboa. 


Foi então que conheceu o arquitecto Artur Andrade, que desenhou o Cinema Batalha?


Exactamente. Tínhamos afinidades de ordem política.


Nessa altura já era militante do PC?


Sim, sim. As minhas primeiras militâncias políticas acontecem no Porto e coincidem com os MUD. Esse momento de efervescência avivou, naturalmente, esse companheirismo entre diferentes gerações. O pai e o avô deste banqueiro, o Artur Santos Silva, eram pilares da Brasileira e do republicanismo no Porto.


O avô era médico e chegou a ser ministro da República..


É. Era médico e muito simpático. Foi ele que me tratou de uma fraqueza, como se costuma dizer.


Ainda frequenta cafés?

Cada vez menos. 


Mas porquê? Por inércia?


Não é inércia, não. Tenho a impressão de que o tempo não chega.


Não chega porque tem vontade de fazer muitas coisas?

Tenho bastante… Metade é tontice, mas… 


Em Lisboa, como era a sua vida de café?


Ia à Brasileira. A grandeza dos hábitos era corrente. Havia uns senhores sérios, como por exemplo Reinaldo dos Santos, que era presidente da Academia de Belas Artes e médico urologista, o que levava outro pilar da Brasileira, que era o pintor Abel Manta, a dizer que a arte em Portugal passava sempre pelas vias urinárias. O Abel Manta, pai do João Abel Manta, ia pelo menos três vezes por dia à Brasileira. Antes do almoço, depois do almoço e ao fim da tarde. E, em noite de S. Carlos, quatro. Isso é inimaginável hoje.


Não havia televisão… 


E, sobretudo, não havia nada que fazer, não se passava nada. 


Conversavam, não é?


Fundamentalmente é isso. Quando expus a primeira vez, com outros companheiros da mesma idade, numa sala ali à Rua das Flores que chamávamos pomposamente de atelier, os senhores da Brasileira foram lá todos. Não foi pelo génio dos rapazes. É que não havia nada que fazer e não se passava nada em Lisboa. Num dia, chegou um e diz: "Olha, estão ali uns miúdos a expor." E vão todos lá. Isso hoje seria absolutamente impossível. 


Os tempos agora são outros.


As pessoas correm de um sítio para o outro, têm as suas coisas muito organizadas, a tertúlia desapareceu. 


Voltando à exposição. O Almada foi lá e comprou-lhe o seu o primeiro quadro.


O Almada ia duas vezes por dia à Brasileira. Soube da exposição dos putos e ele foi lá.


O seu sucesso foi rápido. Aos 18 anos estava a vender um quadro ao Almada, ao 20 a fazer o fresco para o Cinema Batalha...


Eu não estou a armar-me em modesto. Nada disso. Mas esse sucesso só poderia acontecido nesse tempo. Se hoje o Júlio Pomar e mais três ou quatro bonecos alugassem um quarto, chamassem aquilo de atelier e pusessem uns bonecos na parede…


Com tantas galerias de arte que há agora…


Salvo os seus amigos mais próximos, quem é que ia lá? Exactamente porque as pessoas têm todo o seu tempo muito, supostamente, preenchido, claro. Preenche-se tudo com coisa nenhuma. 


Por causa da sua militância no MUD Juvenil esteve preso quatro meses em Caxias, com o Mário Soares.

Aquilo foi um momento de grande agitação. As prisões estavam superlotadas, porque tinha havido greves e uma tentativa fracassada de golpe militar. Era uma coisa que acontecia periodicamente. Pessoas como o pai do Mário Soares lá engatavam de vez em quando um sargento reformado e lá havia um golpe que falhava. Por isso estávamos muitos na mesma sala. Dormíamos em beliches e passávamos o tempo a jogar cartas e a fazer cursos.


Acha que o regime era fascista?


A repressão salazarista era muito curiosa. A grande repressão era feita ao nível das famílias. Era um medo que se instalava e era administrado através da estrutura familiar, que era muito forte. 


Vivia-se muito mal naqueles anos 40 e 50?


Vivia-se muito mal e - não quer isto dizer que as pessoas pensem agora, coitadinhos, que também não pensam - o interior das cabeças era muito limitado.

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