Júlio Isidro. A vida cheia do Senhor Comunicação 

De tantos nos entrar pela casa dentro, via rádio e televisão, Júlio Isidro tornou-se parte (uma parte simpática) das vidas dos portugueses. Nesta entrevista, o DN convidou-o a contar-nos, agora, a sua própria vida, desde o fascínio infantil pela rádio à sua estreia em teatro, aos 78 anos. E nada ficou por responder.
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Mais do que o tio que todos gostaríamos de ter, Júlio Isidro é o amigo que a maioria dos portugueses com mais de 35 anos sente como seu. O cúmplice, de uma elegância discreta mas notória (a que não falta sequer um toque subtil de irreverência), que nos dá a conhecer músicas que depois se tornam parte da banda sonora de cada um ou que nos conta como bebeu chá com Meryl Streep ou lançou, no seu Passeio dos Alegres, uma estrela cadente, cujo brilho nos ilumina até hoje, chamada António Variações.

Com uma vida cheia na Rádio e na Televisão, este rapaz nascido (a 5 de janeiro de 1945) nas Avenidas Novas, em Lisboa, cresceu a ouvir música e relatos desportivos, com a família, no rádio da sala, peça de tal modo preciosa que só o pai podia manobrar. Só mais tarde, na sua adolescência, a televisão chegaria a Portugal, abrindo aos portugueses mais um pouco da janela sobre o mundo, apesar do constante cerco da censura. Muito novo, Júlio estreou-se num meio (primeiro na RTP) e noutro (no Rádio Clube Português). Não mais parou, cheio de energia, a cabeça a fervilhar de ideias. Para a história cultural do país e para a de cada um de nós, ficam as estreias em televisão de figuras como António Variações, Dany Silva, Trabalhadores do Comércio, Táxi, a vinda a Portugal de bandas como os Duran Duran, Spandau Ballett ou os Nazareth e ainda a divertida saga que levou dezenas de portugueses a tentarem entrar num Mini, fosse lá como fosse.

Evocar a vida de Júlio Isidro, através desta entrevista, não é, no entanto, um exercício de nostalgia. A prova disso é que este autêntico Senhor Comunicação acaba de se estrear como ator de teatro. Acontece na peça O Amor é um Som, concebida pela atriz Carla Vasconcelos. Podem vê-lo, no Casino Lisboa, até 23 de julho.

O Júlio acaba de se estrear na peça de Carla Vasconcelos, O Amor é um Som, em que se revisita os tempos áureos da rádio, sobretudo os anos anteriores ao aparecimento da televisão que corresponde à sua infância. O que significa este espetáculo para si?
Com esta peça tenho o privilégio de homenagear várias estrelas do passado e faço, no final, um momento de homenagem aos padrinhos da Carla e da Luísa Cruz, que foram pessoas muito importantes na rádio em Portugal. Na primeira situação, que varia de espetáculo para espetáculo, falei já do Fernando Pessa, do Artur Agostinho, Alice Cruz, Maria Leonor, Aurélio Carlos Moreira. O que nunca muda é a deixa final que tem de ser a palavra liberdade porque, a 25 de Abril de 1974, a rádio em que eu trabalhava, o Rádio Clube Português, passou a ser a rádio da liberdade.

Que papel é que a rádio desempenhou na sua infância?
Como eu digo na peça, em casa dos meus pais havia um móvel grande com um mostrador e uns botões, em que só o meu pai é que mexia (tal e qual como fazia o António Silva no filme O Costa do Castelo). Estávamos no final dos anos 40, princípio dos anos 50, e basicamente via o meu pai a ouvir rádio. Ele trabalhava na Companhia de Seguros Tranquilidade, na Rua de São Julião, e ia almoçar a casa (que era o que se fazia nesse tempo). Sentava-se à mesa, começava a almoçar, havia um silêncio absoluto porque ele estava a ouvir as notícias na Emissora Nacional. À uma e meia em ponto saía, apanhava o autocarro e voltava ao trabalho. E eu estava ali, a ouvi-lo vociferar baixinho, porque nunca falou alto na vida, contra notícias que eram obviamente propaganda da ditadura, mas não havia alternativa. A outra memória que tenho dessa época era ficarmos a ouvir música na rádio depois do jantar, também tínhamos uma grafonola mas raramente a ouvíamos.

De que programas e figuras é que se lembra mais?
Lembro-me muito bem dos Serões para Trabalhadores e posteriormente Os Companheiros da Alegria, com o Igrejas Caeiro, outra grande figura da rádio, que até tinha um estúdio em casa e que foi muito castigado pelo regime. O meu pai até fazia um quizz comigo, quando eles transmitiam um pequeno concurso com perguntas de cultura geral, cujo slogan era "uma nota de quinhentos não se pode deitar fora". Ouvia também os relatos de futebol e os de hóquei em patins.

De que fala na peça...
O hóquei em patins era uma modalidade muito popular na época. O meu pai tinha o ritual de convidar dois ou três amigos para ouvirem com ele os relatos dos jogos da Seleção Nacional e beber uma ginginha. Tinha um barrilzinho em prata e bebiam uma ginginha por cada golo de Portugal, o problema foi quando ganhámos por 22 a zero à Dinamarca. Não sei se beberam 22 copos mas beberam muitos, com certeza. Este fascínio aumentou quando fui para o Liceu Camões e tive como professor o Padre Ávila, que era pai da cantora Maria do Amparo (posso dizê-lo porque ela já tornou pública a situação). Ele vinha dos Açores e trouxera, possivelmente comprados aos americanos da base da Lages, gravadores e microfones, que era coisa que não havia cá (as cassetes nem sequer eram em fita, gravavam em fio de aço). Comecei logo ali a fazer umas experiências. Nas minhas férias da escola, tinha um amigo em Buarcos, na Figueira de Foz, que, tendo mais possibilidades do que os outros, dispunha de um gravador de fita e eu passava o dia a gravar programas de rádio para levar para a praia e pôr as meninas a ouvir música.

E fazia um sucesso...
Então não era? Eu tinha que me safar já que não era um galã. De certo modo, já estava a realizar programas naquela altura.

Era a época das grandes "estrelas" de rádio?
Grandes estrelas de quem nem conhecíamos o nome. Eu sabia que existia o Artur Agostinho, o Amadeu José de Freitas, que era um magnífico relator desportivo. Ainda antes de ir para a tropa fui para o Rádio Clube Português. Em 1967, Álvaro Jorge, submeteu-me a um conjunto vasto de provas, em que eu tinha de ler um noticiário, um texto em francês, outro em inglês e um improviso, que no meu caso foi um texto sobre a estreia de uma peça de teatro no Dona Maria II, com a presença do chefe de Estado, Almirante Américo Thomaz. Eu fiz aquilo tudo (ainda por cima, não se podia parar, a margem de erro era nenhuma), ele veio ter comigo e disse "Ó filho, eu gostei da tua prova. Tens uma voz fresquinha, mas leste o noticiário e as páginas do romance mais ou menos no mesmo registo. E eu respondi: "Tem razão porque eu comecei no noticiário e depois li as duas páginas do romance, não me lembro qual, num registo um bocado frio." Ele não gostou da minha resposta porque quem estava ali para me criticar, era ele. Mandou-me para casa, para fazer a tal auto-crítica, durante um ano. Passado um ano, ligou-me mesmo para me apresentar ao serviço. E, com efeito, estreei-me num programa chamado FM 67, no dia 1 de junho de 1968.

O que foi fazer?
Um programa das 2 às 4 da manhã em FM, em direto, quando a maior parte das rádios nem sequer tinha sintonia de FM. Logo a seguir, o meu grande mestre, Luís Filipe Costa, que é uma das pessoas de quem tenho mais saudades na vida, convidou-me para os noticiários. Comecei a ler com um manual de cinco páginas escrito à mão por ele, sendo que as quatro primeiras serviam para ensinar como se fazia um noticiário de rádio e a última era para mostrar como se fugia à censura.

E como é que isso se fazia?
Tinha a ver com o que não convinha dar, o que se deveria maquilhar, que palavras é que nós deveríamos usar para poder passar.

Tornou-se um mestre da metáfora?
Pode-se dizer que sim. Ainda hoje, procuro ser elegante em rádio e televisão, evitando ser literal. É evidente que, para isso, importa ter um léxico de mais de 500 palavras, para apelar à sensibilidade e inteligência das pessoas. Nessa altura, comecei a fazer noticiários num dos quatro horários que havia. Éramos oito e eu estive muitas vezes no horário entre as 19 horas e a uma da madrugada, sendo que o da meia noite à 1 tinha quase uma hora de duração e era um resumo do que tinha acontecido no mundo, no dia que passara. Nós íamos buscar o material todo escrito pelos nossos colegas. Também fazia muitas vezes da 1 às 7 da manhã e, quando não fazia o noticiário, fazia um programa chamado A Noite é Nossa, do meu querido amigo Ruy Castelar, que morreu há dois ou três meses. O slogan era: "Nas horas mortas da noite nós somos o ritmo trepidante da vida".

O registo da noite é muito intimista. Recebiam muitos telefonemas de admiradores, propostas de sedução, cartas de amor?
Bem, podia haver uma canção que podia despoletar uma relação, mesmo que fosse efémera. Só posso referir Atlantis, de Donovan, que deu origem a um caso amoroso muito simpático e misterioso que eu tive. As pessoas telefonavam, havia namoros. É evidente que para namorar tinha de se arranjar um "Tom Jones ao Vivo em Las Vegas", que tem 25 minutos. Mas havia outros, normalmente de faixa contínua.

E depois aconteceu a madrugada de 25 de Abril de 1974, em que o Rádio Clube Português desempenhou papel crucial...
É muito interessante porque mostra que cada um fica para a História como tem de ficar. Uns dias antes, o Joaquim Furtado, que estava no RCP mas também na informação da RTP, pediu-me para trocar o horário com ele porque tinha sido escalado para fazer o último noticiário da RTP. Em princípio, eu estaria da 1 às 7 da manhã, e ter-me-ia acontecido o que aconteceu a ele e ainda bem que assim foi porque é uma pessoa por quem tenho uma grande admiração. Eu saí à 1.15 e ainda fui a uma discoteca perto da Avenida Fontes Pereira de Melo, que era O Porão da Nau. Pertencia ao Ruy Castelar, que com grande sentido radiofónico, tinha montado junto à pista uma cabine de rádio e eu fiz inúmeras horas em direto a partir dali. Mas naquela noite, sentei-me a beber uma das bebidas da época (a ditadura não deixava que houvesse Coca-Cola ou Fanta) e depois saí e fui para casa dos meus pais, para onde voltara depois de me ter divorciado.

E não se apercebeu de qualquer movimentação estranha?
Nada, nada. Deitei-me para aí às 3 da manhã e, por volta das 5, a minha mãe bateu à porta do quarto e disse-me: Olha, eu tenho estado a ouvir rádio e estão a passar umas marchas militares, é melhor tu ouvires. Eu fui ouvir e, de repente, apareceu o Joaquim Furtado a ler o famoso comunicado. Como morava na Avenida João Crisóstomo, fui a correr por ali acima e, quando cheguei à esquina da Rua Sampaio e Pina, vi a rua cortada por duas chaimites, muitos militares, a maior parte da Força Aérea. Depois, li vários comunicados, ditados a partir da sede das operações na Pontinha, escritos à mão. A única máquina de escrever que havia na rádio estava avariada. Como sou um guardador, ainda tenho um desses comunicados em casa. Voltei a sair no dia seguinte à hora de jantar, tomei banho, dormi.

E como era o ambiente na rádio nos dias seguintes?
Houve emoções engraçadas. Posso dizer-lhe que no final do dia 25 de Abril, um coronel de transmissões que estava lá disse que um corpo da GNR se dirigia para a rádio, para pôr aquilo na ordem. Mas depois não se passou nada. Outra situação engraçada foi aparecer um senhor do PCP para ler um comunicado. Parece que o estou a ver: tinha um ar de Christopher Lee, alto, magro, com um ar grave. Fiquei muito impressionado: Pela primeira vez na minha vida ouvi alguém assumir que era militante do Partido Comunista.

Até se emocionou a contar-me isso, não foi?
Sim, porque tive a sensação de que havia algo que estava a mudar e eu estava a testemunhá-lo em primeira mão. Eu tenho uma posição política muito clara e, para mim, o 25 de Abril significa uma só coisa: Liberdade, que é a mais sagrada das palavras. Tudo o que me cheire a partido único, a eleições livremente obrigatórias cheira-me bastante mal. Tenho imenso respeito por toda a gente e tenho amigos nas mais diversas fações políticas.

Mas há uma linha vermelha para si?
Há. Não aceito totalitarismos. A esquerda e a direita são fundamentais para a Democracia, mas o que se posiciona fora desta não conta com a minha tolerância. É inaceitável.

E a televisão, como aconteceu?
Antes da rádio, o que é o percurso ao contrário da maior parte das pessoas. A televisão, quando surgiu em 1957, foi buscar o Artur Agostinho, o Fernando Pessa, o Jorge Alves, o Fernando Frazão e o Artur Ramos, todos profissionais muito experientes em rádio, quer como apresentadores, quer como locutores. Depois, abriram concurso para uma geração mais nova em que apareceram, entre outros, o Henrique Mendes ou o José Fialho Gouveia. No meu caso, comecei a trabalhar na RTP em janeiro de 1960 e na rádio só entrei em 1968. Na RTP ganhava 200 escudos por programa.

Isso era muito ou pouco?
Era muito. De tal maneira que, um ano depois, consegui ir de férias a França, sozinho, de comboio, em terceira classe porque não havia quarta.

A sua geração tinha muito esse fascínio pela cultura francesa...
Era, era. Também porque queria ver os filmes que estavam proibidos cá, sobretudo os da Brigitte Bardot, que eram tão cortados cá, que não passavam de resumos. Lembro-me de ver um deles no Ódeon, em Paris, em que ela aparecia praticamente nua à frente de uma lareira e foi um mundo que se me revelou. Também gostava muito de música francesa e, ao chegar a Paris, andava encantado com uma música cantada pelo Richard Anthony chamada J'Entends Siffler le Train (que, na verdade, era um tema popular norte-americano). Houve um dia em que optei entre almoçar ou comprar o disco. Fui pela segunda hipótese. Ainda o tenho.

Voltando à RTP, o que fez nos primeiros tempos?
Fiz o Programa Juvenil, chamava-se mesmo assim. Os três apresentadores iniciais eram: Júlio Isidro, Lídia Franco e João Lobo Antunes.

O neurocirugião?
Ele próprio, tínhamos uns 15 ou 16 anos. Depois entraria a atriz Maria Cabral, o António Atalaia, o Luís Laureano Santos. E havia um grupo musical, que era o quarteto de KKordas, assim mesmo com dois K"s, que era do Paulo Magalhães Ramalho, que depois viria a ser um pediatra conhecido. Foi nesse programa que se estreou a Maria João Pires, fui buscá-la na carrinha amarela da televisão. Creio que também se estreou lá o António Victorino de Almeida e, de certeza, o quarteto do Hot Clube de Portugal. Depois fiz ainda um programa chamado Juventude no Mundo, em colaboração com a União Europeia de Radiodifusão, em que realizei já algumas peças. Também relatava o famoso circo Billy Smart na altura do Natal e Ano Novo (aqui, o mais difícil era relatar os diálogos dos palhaços) e até fantochadas, no programa infantil, ao domingo, com a Maria João Metello, então considerada a noivinha de Portugal.

Já depois do 25 de Abril fez o Fungagá da Bicharada, com o José Barata-Moura, professor universitário de Filosofia e depois reitor da Universidade de Lisboa...
Foi uma ideia que eu apresentei ao escritor António Torrado, então na direção de programas da RTP e baseava-se em dar vida aos animais, em que eles desempenhavam uma atividade. Foi então que colaborei com o Zé Barata-Moura, que tinha uma criatividade genial. Depois, quando ele saiu por causa da sua atividade universitária, ainda fiz umas séries com o Carlos Alberto Moniz e a Maria do Amparo e, na última série, a Cândida Branca-Flor, Dina, e outros músicos em princípio de carreira.

O Júlio teve um papel essencial no mundo do espetáculo nos anos 80, nomeadamente na promoção do chamado rock português. Primeiro na rádio e depois na televisão. Como é que isto aconteceu?
O João David Nunes, já na Rádio Comercial que sucedera ao Rádio Clube Português, convidou-me a fazer uma proposta de programa e eu avancei com a Grafonola Ideal, que preenchia as manhãs das 10 às 1, de 2.ª a 6.ª feira.

Com a Margarida Mercês de Melo, que, na altura, era Margarida Andrade...
E também com a Helena Ramos, ambas da RTP. Foi um enorme sucesso porque todos os dias eu inventava uma coisa louca.

E tinha o chef Silva, não tinha?
Tinha uma rubrica semanal com ele, que era aquela em que nós comíamos a revista toda que ele fazia, a Teleculinária. Ele tinha um andar alugado na Amadora, onde cozinhava e era tudo fotografado para a revista. Curiosamente marcámos a rubrica para o dia em que ele fechava a revista. Saíamos à uma da tarde, da Sampaio e Pina, passávamos na Amadora e comíamos aquilo tudo. Havia também uma outra rubrica sobre coisas do Brasil, que era do Duda Guennes, outra de ginástica em que nós também praticávamos no estúdio, e outra com o Mário Viegas chamada "Palavras Ditas", em que ele dizia poesia. Começou por ter 10 minutos e acabou por ter 50, Era quase um programa dentro do programa. Eu sonorizava aquilo ao momento, em direto.

E a Febre de Sábado de Manhã, como nasceu?
Um dia devo ter tido uma alucinação e propus ao João David Nunes fazermos um programa de rádio ao vivo, no Cinema Nimas, que então pertencia à Rádio Comercial. Ele disse-me que sim, embora acrescentando que não havia dinheiro e só me pagava três horas extraordinárias sobre o meu ordenado, que não era brilhante. E fiz durante 4 ou 5 anos este programa que parava o país e terminei com 50 mil pessoas no Estádio de Alvalade. Passaram por lá os grandes nomes da música pop/rock da época como os Duran Duran, os Fischer-Z, os Spandau Ballet, os Nazareth, Limalh, muitos, muitos. Eram as editoras que propunham e eles vinham à borla.

É na sequência disto que surge, na RTP, o Passeio dos Alegres?
Sim. Na senda deste sucesso, a Maria Elisa Domingues, que era diretora de programas, propôs-me fazer um programa para as tardes de domingo e assim aconteceu o Passeio dos Alegres. O primeiro foi para o ar semana e meia depois de ela propor.

Aí divulgou grandes nomes da Música Portuguesa, o que já fazia em rádio?
Na Febre tinham-se estreado os UHF, os Heróis do Mar, os Xutos e Pontapés, os Táxi, o António Variações...

Como é que tinha o feeling que valia a pena apostar naqueles jovens?
Em primeiro lugar, tinha a perceção de que não era dono dos programas que faço nem dono da antena, mas podia ser dono de boa vontade e de dar oportunidades aos outros. No caso do António Variações, conheci-o quando ele me cortou o cabelo, na Isabel Queiroz do Valle, no Centro Comercial Imaviz. Foi logo diferente porque cortou-me o cabelo com uma navalha de barba, mas o visual também era muito original, muito fora da caixa. Às tantas, ele diz-me: "Sabe eu escrevo umas canções" e eu disse-lhe que gostava de ouvir. Passados uns dias, estava eu a jantar sozinho no restaurante A Colina e entra pela porta dentro o Variações, de capa alentejana e um cajado na mão. Não sei como é que ele soube que eu estava ali, mas deu-me a cassete com duas canções que ele tinha gravado. Cheguei a casa, estive a ouvir aquilo - tinha sido gravado num estúdio em Campo de Ourique, em que se tinha de interromper a gravação quando as pessoas puxavam o autoclismo. Ouvi aquilo e nessa mesma noite convidei-o a ir ao Passeio dos Alegres. Quando ele chegou foi o espanto geral na equipa: ele vinha vestido meio à toureiro e eu disse-lhes que ele ia entrar no programa. No domingo lá estava ele com os seus músicos: um vestido de bailarina, com um tutu, e ele com umas calças aos quadrados amarelos e pretos, se não estou em erro, e começou a cantar Toma o comprimido e a atirar comprimidos que tinha nos bolsos, que, na verdade, eram smarties. Foi um sucesso extraordinário junto da malta nova e uma grande retração junto dos mais velhos. Passado pouco tempo, ele estava a gravar e veio mais algumas vezes ao programa. Fui uma vez ao Trumps fazer-lhe a entrega de um disco de ouro.

Nessa época era ousado ir ao Trumps, conotado com a comunidade gay...
Era, sim. Mais tarde quando ele gravou o último LP, combinámos imediatamente ele ir ao programa. Simplesmente, ele não apareceu, contra o seu costume, mas, na semana seguinte, foi e disse que estava engripado. Eu entrevistei-o e ele disse que ainda não ia cantar os temas novos, mas dois mais antigos. Assim fez e depois despediu-se. Curiosamente, o realizador levou a câmara até ao momento em que ele se despediu e disse adeus, já no ciclorama, que é translúcido. Passado pouco mais de um mês, morreu.

Nessa época, o Júlio tinha vida, saía, conseguia ir ao cinema...?
Era um solteirão, não ia de férias, mas ia ao cinema, ao teatro, até para estar atualizado. O programa também fazia férias (estava parado de julho a setembro) e lembro-me que, uma vez, ia eu a caminho de Vilamoura (ainda não havia auto-estrada para o Algarve) e fui abastecer o meu Citroen Visa. Quando o empregado me trouxe o troco, disse-me assim à alentejana: "Então agora vai-se embora a alegria dos pobres". E eu respondi: "Vai-se embora mas já volta".

Essas pessoas, que o Júlio lançou ou a quem deu um impulso decisivo, foram-lhe todas gratas?
Não. Eu só falo dos gratos. Os Táxi têm uma grande amizade por mim, os UHF (o António Manuel Ribeiro é um amigo para sempre), o Dany Silva também. Eu diria que a maior parte, sim. Há outros que me tiraram do currículo.

É também no Passeio dos Alegres que surge a famosa aventura do Mini. Quantas pessoas chegaram a entrar naquele Mini, mesmo?
Vinte e sete. Não era uma coisa completamente original porque eu sabia que, em Inglaterra, já tinham feito uma prova para saber quantas pessoas cabiam numa cabine telefónica. Nessa época, eu tinha um Mini, não era sequer o 1000, mas o 850, comprado em segunda ou terceira mão. Eu tive essa ideia, a British Leyland forneceu o Mini, foi reforçada a suspensão do carro na oficina e todas as semanas apareciam grupos a dizer que tinham treinado.

Nunca houve acidentes? Nem sustos?
Não. Eu era acompanhado pelo professor de ginástica Oliveira Duarte e verificávamos sempre que as portas tinham de fechar, incluindo a do porta-bagagens. Tinha de estar só no trinco para não haver problemas.

Nos anos 90, esteve nos Estados Unidos durante uma temporada. Porquê?
Senti que em Portugal não iria progredir muito mais. Tinha sido instrutor de cinema e fotografia nos serviços cartográficos do Exército, quando cumpri o serviço militar, mas agora tinha de dar um salto qualitativo. Inscrevi-me na UCLA - Universidade da Califórnia, onde aliás tinham estudado Spielberg e Scorsese, e outros. Fiz três vezes três meses e fui trainee em vários projetos, mas não podia trabalhar, sendo estrangeiro e sem autorização de trabalho (os sindicatos deles são muito rigorosos nisso). Fiz o Master grade em produção e realização de televisão e cinema, de pós-produção no American Film Institute.

E correspondeu às suas expectativas?
Sim, percebi que o mundo era outro. Uma selva.

Aqui não era uma selva?
Eu diria que em Portugal temos uma selva de salamaleque, a deles é assumida. Eles estavam sistematicamente a perguntar se eu ia ficar e eram implacáveis com os atrasos porque é o tempo de toda a gente que está envolvido. Aprendi essa lição e tornei-me obcecado com essa questão. Mas em Portugal temos muita a ideia de que o tempo dos outros não importa. Eu tenho um arquivo imenso de propostas de programas que enviei a várias pessoas, em momentos diversos da minha vida, e que nunca responderam.

Em rádio e televisão?
Sobretudo em televisão.

Depois de uma longa vida de solteirão, como lhe chama, o Júlio casou e teve duas filhas (já tinha uma, de um casamento anterior). Quer-me falar do que lhe trouxe a vida familiar?
Eu costumo dizer que a Sandra, a minha mulher, não se tornou produtora de televisão porque casou comigo, é ao contrário: casámos porque ela já era a minha produtora. Em determinada altura da minha vida, senti que gostava muito dela e pedi-a em casamento. Nós temos uma diferença de idade muito grande, mas achei que ela tinha o direito de ser mãe. Eu já tinha uma filha do primeiro casamento, a Inês, mas vieram depois, com a Sandra, a Mariana e a Francisca, com três anos de diferença. A Mariana é médica dentista, anda de clínica em clínica, mas faz serviço nacional de saúde em Rio Maior e eu tenho o maior orgulho nisso. A Francisca acabou a licenciatura em Arte e Multimédia e, também empurrada pelo pai, concorreu agora ao Festival de Curtas-Metragens organizado pela Casa do Artista, com um júri exigente e ganhou. Agora vai para Barcelona estudar durante nove meses. Pergunta-me o que significou esta opção de vida? Eu diria que já não me imagino sem este apoio familiar.

A RTP Memória é um projeto em que participa com grande entusiasmo e dinamismo. O que representa para si?
A ideia, que se tentou fazer passar, de que a RTP Memória é um repositório bolorento do nosso arquivo é errada. O programa Inesquecível é criado de raíz: Sou eu que escrevo o guião, que penso nas pessoas que devo convidar. A Sandra faz a pesquisa de arquivo e põe-me nas mãos uns quilos de material. Na sequência disto, estou lá todos os dias a editar os clips que contam a história do meu convidado (ainda agora gravei um programa fantástico com a atriz Manuela Maria).

Conseguiria escolher entre rádio e televisão?
Nesta fase da vida, escolheria a rádio. O Inesquecível vai, neste momento, no programa 466 e eu já disse ao Gonçalo Madaíl que gostaria de fazer 500, embora ele tenha dito que ainda faríamos mais uns tantos. Mas enquanto eu tiver o timbre de voz que tenho, o discurso fluente e a perceção da música que devo usar para contar uma história apelativa, ficarei pela rádio. É o que faço no Hotel Califórnia, com o Paulino Coelho, na Rádio Renascença, aos sábados de manhã. Em televisão, olho para trás e vejo que tenho mais de 300 entrevistas internacionais guardadas, desde a Julia Roberts ao Harrison Ford duas vezes, Scorsese, Spielberg, Paul McCartney, alguns italianos e franceses.

Dessas personalidades todas, qual foi a que lhe deu mais trabalho?
O Harrison Ford e o Mel Gibson, que foram muito antipáticos. Na primeira vez que entrevistei o Ford, correu muito mal e dei-lhe uma chazada. Na segunda, ele lembrava-se da minha cara e correu bastante melhor.

E quem é que o surpreendeu pela positiva?
Muitos, mas posso referir o Scorsese que não se calava, o Dustin Hoffman, que foi muito divertido, ou a Meryl Streep, que me convidou para tomar chá e scones com ela. E também gostei muito de entrevistar o sapo Cocas, com o próprio Jim Henson atrás do sofá a fazer a voz.

Tem um hobby a que se dedica desde criança, que é o aeromodelismo. O que é que lhe proporciona esta atividade?
A grande lição que eu tirei do aeromodelismo é que quem vai para o ar, avia-se em terra. Se as corridas obedecerem às leis da Física, da aerodinâmica, até da Química, é bem possível que as coisas corram bem. Essa é a primeira lição: Devemos preparar tudo, que é o que eu faço em Rádio e Televisão. Se não correr bem, a primeira coisa que tenho de fazer é um diagnóstico, levar os cacos para casa e reconstruir. Como a minha vida já teve vários acidentes desses em termos profissionais, eu fui sempre buscar os cacos e tentar recompor-me. Outro aspeto importante é que é mesmo muito relaxante. Sempre que tenho um bocadinho (e tento criar os meus bocadinhos porque, nesta fase da minha vida, sinto que o meu único inimigo é mesmo o tempo) desço a escada, vou para a cave e estou entretido a construir para participar em campeonatos em Inglaterra ou em Itália. Em setembro irei a mais um. Vou, mas não com um espírito competitivo, embora até ganhe algumas vezes. Mas se for à final, onde só vão três, fico muito contente. Enquanto estou a fazer aquilo não penso em duas coisas: No trabalho e numa coisa que me incomoda muito, que é a finitude da vida.

O DN agradece ao Hotel Palácio Estoril as facilidades concedidas.

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