Começa nesta segunda-feira em Nova Iorque aquele que promete ser um dos julgamentos mais mediáticos do ano. Harvey Weinstein, durante décadas um dos homens mais poderosos da indústria cinematográfica de Hollywood, enfrenta cinco acusações por violação e agressão sexual. Se for considerado culpado, poderá passar o resto da vida na prisão..Apesar das dezenas de mulheres que, desde outubro de 2017 - quando rebentou o escândalo -, vieram acusar publicamente o produtor de assédio ou de agressão sexual, o julgamento contempla apenas a acusação de duas pessoas, dado que a maior parte dos crimes denunciados já prescreveu. Os crimes pelos quais Weinstein vai ser julgado terão sido cometidos contra Mimi Haleyi, antiga assistente do magnata, e uma segunda mulher cuja identidade é desconhecida. A primeira acusa Weinstein de ter praticado sexo oral não consentido, em 2006. A segunda acusação é de violação, em 2013..Weinstein chegou a estar acusado de agressão sexual à atriz Lucia Evans, numa situação que se reportava a 2004, mas a acusação acabou por cair devido a contradições no testemunho da queixosa..De acordo com a imprensa norte-americana, depois da sessão inicial de hoje, na terça-feira deverá iniciar-se o processo de escolha do júri, que previsivelmente se estenderá por duas semanas. Terminada esta fase, o julgamento deverá demorar seis semanas. Quando compareceu no tribunal de Manhattan, em Nova Iorque, a 9 de setembro último (uma sessão que determinou o adiamento do julgamento para janeiro), o ex-produtor cinematográfico declarou-se inocente, recusando ter mantido qualquer relação sexual não consentida..Harvey Weinstein: a queda de um todo-poderoso de Hollywood.Depois das primeiras denúncias, Harvey Weinstein foi afastado da empresa norte-americana Weinstein Company, que tinha cofundado com o irmão, e banido de várias associações, nomeadamente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, que atribui os Óscares..A 25 de maio de 2018, o produtor norte-americano entregou-se às autoridades em Nova Iorque, quando estava a ser investigado por agressões e abuso sexual, tendo saído em liberdade no dia seguinte com pulseira eletrónica, depois de entregar o passaporte e de pagar uma caução de um milhão de dólares (864 mil euros). Na altura, as acusações pendiam sobre casos envolvendo oficialmente duas mulheres. Em dezembro de 2019, a fiança subiu para cinco milhões de dólares, depois de os procuradores do caso terem acusado Weinstein de ter desligado o equipamento eletrónico de vigilância várias vezes..A dois meses de completar 68 anos, sabe-se que Weinstein vive nos subúrbios de Nova Iorque e pouco mais. Há meses foi notícia que terá entrado num bar que teve de deixar poucos minutos depois, por ter sido alvo de insultos e de tentativas de agressão por algumas das mulheres presentes. Numa das vezes que compareceu no tribunal surgiu de andarilho, segundo os advogados devido a um problema nas costas que terá sido causado por um acidente em agosto, e que o levou a ser operado em meados de dezembro..Foi precisamente no hospital que Weinstein deu uma rara entrevista ao The New York Post , dizendo que o mundo se esqueceu de como ele promoveu as mulheres na indústria cinematográfica. "Fiz mais filmes sobre mulheres e dirigidos por mulheres do que qualquer outro produtor de Hollywood", disse então, não manifestando qualquer arrependimento ou reserva quanto às suas ações. O jornal escreve que, durante a entrevista, Weinstein manteve um comportamento de bullying, ameaçando terminar a conversa de cada vez que lhe era colocada uma questão que lhe desagradava..Jodi Kantor e Megan Twohey: o trabalho que valeu um Pulitzer.A 5 de outubro de 2017, o The New York Times publicava a primeira notícia sobre os abusos de Harvey Weinstein, apresentando o testemunho de várias mulheres que diziam ter sido assediadas ou mesmo agredidas sexualmente pelo produtor. Uma dessas mulheres era a atriz Ashley Judd, outra era Emily Nestor, antiga funcionária do produtor. O jornal avançava também que Weinstein tinha pago cem mil dólares à atriz Rose McGowan para que esta mantivesse o silêncio sobre factos ocorridos em 1997 - que a própria veio dizer, mais tarde, ter sido uma violação.."Harvey Weinstein pagou para queixas de assédio sexual desaparecerem" era o título do trabalho das jornalistas Jodi Kantor e Megan Twohey. A notícia caiu como uma bomba, levando a revelações em catadupa de mulheres que foram assediadas, agredidas ou ameaçadas pelo criador do Estúdio Miramax, o que acabou por impulsionar a criação do movimento Me Too. Entre as mulheres que ao longo dos meses seguintes vieram denunciar situações de assédio, agressão ou coação de Weinstein estão vários nomes de primeira linha do mundo do cinema..Em abril do ano passado, Jodi Kantor e Megan Twohey foram distinguidas - ex aequo com Ronan Farrow, da The New Yorker - com o mais prestigiado prémio de jornalismo nos Estados Unidos, o Pulitzer, na categoria de jornalismo de serviço público..Já neste ano, as duas jornalistas editaram She Said (Ela Disse), livro em que revelam os bastidores da investigação àquele que era, até então, um dos nomes mais poderosos de Hollywood..As denúncias contra Weinstein avançadas pelo The New York Times tiveram um segundo capítulo. Apenas cinco dias depois do trabalho do jornal, a revista The New Yorker publicou um artigo de fundo sobre o mesmo tema, assinado pelo jornalista Ronan Farrow, somando 13 novos testemunhos contra o produtor. Um deles era o da atriz Asia Argento, que dizia ter sido violada por Weinstein em 1997. Ronan Farrow seria também distinguido com o Pulitzer..Tarana Burke. O Me Too é uma criação dela.Dez dias depois do The New York Times ter publicado o trabalho que trouxe à luz do dia um comportamento abusivo de décadas do produtor de cinema, a atriz Alyssa Milano publicou no Twitter uma mensagem de incentivo a que as mulheres assumissem publicamente que foram vítimas de assédio ou de agressão sexual. "Sugerido por uma amiga: se todas as mulheres que foram sexualmente assediadas escreverem ´Me Too' no seu estado, talvez as pessoas tenham a noção da magnitude do problema." "Se foste sexualmente assediada ou agredida, escreve 'me too' em resposta a este tweet", escrevia ainda a atriz. E foi ela própria a primeira a responder "me too", iniciando o que viria a revelar-se uma avalanche de denúncias..Mas como Alyssa Milano escreve no seu tweet, a expressão que viria a simbolizar o movimento não é da sua autoria. Vários anos antes de o caso Weinstein chegar aos escaparates, o "Me Too" tinha sido cunhado pela ativista Tarana Burke, que há mais de uma década tinha criado um grupo destinado a ajudar pessoas vítimas de agressão sexual, sobretudo jovens mulheres negras..Nas semanas seguintes ao tweet de Alyssa Milano, a hashtag Me Too seria usada mais de 12 milhões de vezes, de acordo com o jornal britânico The Guardian . Tarana Burke, ela própria vítima de violação durante a adolescência, saiu do trabalho anónimo para as páginas dos jornais. Em 2017, foi uma das ativistas eleitas pela revista Time como personalidade do ano, como rosto do movimento Me Too. "Aquelas que quebraram o silêncio" foi o título escolhido pela revista..Tarana Burke continua na associação que criou, a fazer o trabalho de sempre. Agora, soma-lhe as entrevistas e as palestras por todo o país como voz fundadora do Me Too..De Kevin Spacey a Louis C.K. O efeito dominó do caso Weinstein.Depois do caso Weinstein nada ficou como dantes, na indústria cinematográfica e não só. Dezenas de nomes consagrados em várias áreas, do cinema à política, passando pela fotografia ou pela televisão, viram-se denunciados na praça pública e envolvidos pelo furacão Me Too. Apenas dois exemplos. Kevin Spacey foi um dos primeiros nomes a cair, visado por denúncias de agressão sexual, nomeadamente do ator Anthony Rapp, que terá acontecido em 1986, quando este tinha 14 anos. Foi a primeira de cerca de 30 acusações, entre os Estados Unidos e o Reino Unido..Na sequência, Spacey perdeu o lugar de protagonista na aclamada série House of Cards, da Netflix, foi retirado por Ridley Scott do filme em que participara (o realizador regravou as cenas de Spacey com outro ator) e ainda viu o público virar-lhe as costas: a última película em que surge no grande ecrã foi um desastre de bilheteira. Spacey afastou-se do cinema e da esfera pública..Outro nome que sobrevive a custo à reprovação social lançada pelo Me Too contra aproximações de natureza sexual não consentidas é o humorista Louis C.K., que estava prestes a estrear um filme e a iniciar um programa televisivo em nome próprio quando várias acusações de comportamento inapropriado se abateram sobre ele..Louis C.K. admitiu que se masturbou em frente a cinco mulheres sem o consentimento delas e toda uma carreira firmada e ainda em franca ascensão entrou em abrupto declínio - o filme não estreou, o contrato foi cancelado. O comediante tem, entretanto, tentado um regresso aos palcos, até com uma digressão internacional, mas muito longe do fulgor que a sua carreira prometia até 9 de novembro de 2017, quando um trabalho do The New York Times revelou as acusações de assédio sexual.