Juiz anula sentenças e Carandiru continua impune 24 anos depois
Em outubro de 1992, uma rebelião de presos no Pavilhão 9 da Casa de Detenção de Carandiru, estabelecimento penitenciário na cidade de São Paulo, motivou uma ação da Polícia Militar da qual resultou a morte de 111 detidos. Dias antes de se cumprirem 24 anos sobre a tragédia que passou à história como "Massacre de Carandiru" e teve repercussão internacional à época, um juiz desembargador decidiu anular as condenações dos 74 agentes da polícia militar envolvidos. Nenhum deles, à exceção de um condenado noutro caso pelo assassinato de seis travestis, esteve alguma vez preso. O assunto levou a uma reação formal da ONU e à indignação de parte da população brasileira. De outra parte, nem tanto.
"Não houve massacre, houve sim uma contenção necessária à imposição da ordem e da disciplina, tratou-se de legítima defesa", disse o juiz Ivan Sartori para justificar, a pedido da defesa, a anulação da decisão de júris populares que condenaram em 2013 os agentes a penas entre os 48 e os 624 anos de prisão.
Enquanto a defesa se congratulou com a decisão e o Ministério Público prometeu recurso a instância superior, uma das vítimas, ouvida pela Folha de S. Paulo, ficou estarrecida com o argumento de "legítima defesa". "Como assim? Aquilo foi um extermínio, como em Auschwitz [campo de concentração nazi] ou no Camboja [massacre do regime Khmer Vermelho]", disse o sobrevivente de Carandiru Sidney Sales.
Fernanda Silva, filha de Antônio da Silva, morto naquele dia com um tiro na nunca, decidiu processar o Estado por causa do argumento da "legítima defesa".
A ONU, através da porta-voz do alto comissariado para os Direitos Humanos Cécile Pouilly, "deplorou" a decisão e alertou para "a mensagem preocupante de impunidade".
Na imprensa, o colunista Bernardo Mello Franco, também no jornal Folha de S. Paulo, contrariou a tese da legítima defesa na medida em que, por um lado, "as vítimas estavam todas desarmadas e todos os polícias saíram vivos" e, por outro, "a perícia contou uma média de cinco tiros por corpo, muitos disparados pelas costas e na cabeça".
O jornal O Estado de S. Paulo recuperou uma decisão, de julho, do mesmo juiz Ivan Sartori em que havia condenado a seis meses de prisão um homem acusado de roubar cinco chouriços de um supermercado. O desempregado Edson Affonso confessou o crime, afirmou que estava com muita fome mas não comoveu Sartori, que lembrou outras passagens do réu pela esquadra por causa da mesma infração, sendo por isso, nas suas palavras, "um infrator contumaz, que faz do crime meio de vida".
Na sequência, através do Facebook, o juiz sugeriu que a imprensa é paga pelo crime organizado. "Diante da cobertura tendenciosa deste caso, fico me perguntando se não há dinheiro do crime organizado financiando parte dela, assim como boa parte das autodenominadas organizações de direitos humanos".
Na mesma rede social, Ivan Sartori foi alvo de muitas críticas pela decisão sobre Carandiru mas também de elogios: "Parabéns pela coragem de fazer justiça com os valorosos polícias que diuturnamente defendem a nossa sociedade; o mal do Brasil nestes últimos anos foi valorizar o errado, o criminoso, o ilegal, a bandidagem, por isso chegamos a essa situação calamitosa", defendeu uma cidadã. Outros lançaram a hashtag #bandidobomébandidomorto e houve quem lembrasse as palavras de ordem "menos direitos humanos e mais humanos direitos".
A intervenção da polícia militar de 2 de outubro de 1992 foi comandada pelo coronel Ubiratan Guimarães após receber autorização do secretário de segurança pública de São Paulo Pedro Franco de Campos. Guimarães foi condenado a 632 anos de prisão, recorreu, nesse período concorreu e ganhou um lugar como deputado estadual, acabou absolvido e mais tarde assassinado. Campos demitiu-se da secretaria de segurança pública na sequência do episódio e foi substituído no cargo por Michel Temer, hoje presidente da República e militante do Partido do Movimento da Democracia Brasileira (PMDB), que disse à época que "os militares envolvidos na operação merecem repousar e ser submetidos a tratamento psicológico e meditação".
Luiz Antonio Fleury, o governador de São Paulo em 1992, não foi informado da intervenção na altura mas disse durante o julgamento dos polícias, já em 2013, que "se tivesse sido, teria dado ordem de entrada na prisão". Afastado da política ativa, Fleury faz no entanto parte da direção executiva estadual do PMDB.
O "Massacre de Carandiru" é abordado no filme Carandiru, de Hector Babenco, de 2003, num documentário de Paulo Sacramento, chamado Prisioneiro da Grade de Ferro, também de 2003, numa série da Rede Globo intitulada Carandiru, Outras Histórias exibida em 2005, e é tema direto ou indireto de seis livros, além de ter inspirado dezenas de músicas, entre as quais Haiti, dos compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Em São Paulo