Jovens e mobilização antiarmas surgem como novo fator político nos EUA

Onda de ativismo após massacre de Parkland tem um objetivo concreto: levar a nova geração de eleitores a votar contra lóbi das armas.
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Se os millennials tivessem aparecido em bloco nas urnas das eleições intercalares de 2014, Barack Obama não teria passado os últimos dois anos da sua presidência acossado por uma esmagadora maioria republicana na Câmara dos Representantes e no Senado. Mas essas eleições aprofundaram um problema grave da democracia americana: a abstenção nos eleitores entre os 18 e os 29 anos atingiu o valor mais elevado de sempre, com apenas 19,9% a aparecerem nas cabines de voto. Enquanto isso, os eleitores mais velhos pesaram 60% no total de votos. Foi um massacre dos democratas que deu aos republicanos controlo total.

Quatro anos depois, há um esforço sem precedentes para virar o tabuleiro do jogo. Os 14 meses de administração Trump já tinham levado à rua mulheres, cientistas, imigrantes e minorias, nalgumas das maiores manifestações alguma vez vistas nos Estados Unidos. Agora, o tiroteio que matou 17 pessoas numa escola secundária em Parkland, Florida, trouxe para a linha da frente um grupo normalmente ignorado por ambos os partidos: adolescentes que ainda nem sequer podem votar.

"Os estudantes disseram o que toda a gente sentia, não debitaram discursos batidos", diz ao DN Laura Mannino, cofundadora da organização Drain the NRA, cujo objetivo é estancar os rios de dinheiro que a National Rifle Association (NRA) recebe para fazer lóbi pró-armas. "As armas tinham sido um pouco esquecidas durante este ano da resistência, tudo foi para a rua menos o ativismo antiarmas", refere. Parkland mudou isso. Alguns dos sobreviventes do massacre, perpetrado pelo também adolescente Nikolas Cruz, tornaram-se ativistas instantâneos: apareceram na capa da Time, lideraram a Marcha pelas Nossas Vidas no fim de semana passado, e estão empenhados em não desaparecer do discurso público como aconteceu com todas as outras vítimas de tiroteios.

David Hogg e Emma González são as duas caras mais conhecidas deste grupo de sobreviventes e têm sido particularmente atingidos por alguns setores da direita, que tentaram desacreditá-los. A diferença em relação a outros ativistas no passado é que estes jovens são ainda vistos como crianças e esses ataques estão a fazer ricochete. O momento criado pelos adolescentes está a dar novo fôlego às organizações anti-armas, que nas últimas duas décadas pouco ou nada conseguiram. "Tem sido uma luta muito difícil, com pouca mudança", reconhece Deborah Gitell, diretora da organização Women against Gun Violence, que está no terreno há 25 anos. "Nunca vimos um esforço consolidado de jovens que estão a partilhar as suas histórias e a dizer que não vão desaparecer", refere, apesar de reconhecer que nada mudará do dia para a noite. "Sabemos que não é um sprint, é uma maratona. É um processo muito lento, mas estou a sentir-me muito inspirada. Temos uma excelente geração a surgir."

Impacto nas eleições

O principal foco das organizações envolvidas na luta antiarmas é registar os jovens para poderem votar. Nas centenas de marchas que aconteceram por todo o país, milhares de voluntários terão conseguido registar em torno de 50 mil pessoas. Esse esforço vai continuar até às eleições, marcadas para 6 de novembro. Nesse dia, estarão em jogo todos os 435 assentos da Câmara dos Representantes, sendo que os democratas precisam de conquistar 24 para assumirem o controlo. No Senado, serão 33 dos cem, e os democratas precisam de virar dois assentos de vermelho para azul.

"Se os democratas querem navegar esta onda em direção ao sucesso, dizerem que, pelo menos, não são republicanos já não chega em termos de política de armas. Têm de trazer mais qualquer coisa à mesa de discussão", advoga Laura Mannino. A esperança do partido é que este novo ativismo antiarmas galvanize os jovens em faixas críticas, como a dos 18-20 anos, cuja participação é sempre muito baixa (15% em 2014). "Se as pessoas não votarem, vamos continuar na mesma situação", reflete Mannino.

Calcula-se que cerca de quatro milhões de cidadãos americanos façam 18 anos em 2018, o que é um número significativo de potenciais novos eleitores, aliado ao facto de as gerações mais jovens tenderem a votar mais democrata do que republicano nos últimos ciclos eleitorais.

Ainda assim, a mensagem dos jovens que estão a liderar este ativismo não é partidária, é política: a ideia é correr com os governantes que não fizeram nada após sucessivos massacres e eleger candidatos que se posicionem a favor de maior controlo de armamento. "Os jovens sentem agora algo que nós não sentimos antes, de que votar é uma obrigação moral", explica Laura Mannino. "É uma geração que se sente perseguida nas suas próprias escolas, porque ambos os partidos falharam."

David Hogg, Emma González, Cameron Kasky, Alex Wind e Jaclyn Corin, os sobreviventes de Parkland que estão a dar a cara pelo movimento, simbolizam uma nova geração que cresceu rodeada de tecnologia e num ambiente progressista.

Quem são estes jovens?

"O último presidente de que me lembro é o Obama, e durante essa administração não me senti ameaçada pelas suas políticas", explica ao DN Gabriela Becher, uma estudante que pretende registar-se como eleitora assim que completar 18 anos, em agosto. Becher liderou na escola de Marlborough o primeiro protesto a ser feito após Parkland - uma saída concertada das aulas a 14 de março. Tornou-se ativista no último ano, trabalhou na Marcha pelas Nossas Vidas em Los Angeles e está envolvida em iniciativas para pressionar políticos que recebem dinheiro da NRA e pedir aos eleitores que escolham candidatos anti-armas. Está pronta para votar em 2020, nas próximas presidenciais.

"No passado, as pessoas não acreditaram que o seu voto tivesse impacto", afirma. "As marchas deram às pessoas um sentido comum, uma forma de perceberem que só votando é que há mudança real."

Falando de forma articulada, Becher explica que a sua escola fomenta as discussões desconfortáveis e procura que os alunos tenham informação e pensamento crítico. Esta face de uma geração que ainda não chegou à maioridade surpreendeu muita gente, mas Deborah Gitell tem uma explicação. "É um espírito muito diferente do que tenho visto, e em parte isso tem que ver com o quão progressistas foram os oito anos de Barack Obama", considera. "Se eles têm 17 ou 18 anos e ele foi presidente por oito, apanhou os anos formativos destes jovens. Viram um presidente birracial muito progressista e compassivo. Foi assim que eles cresceram."

Por outro lado, salienta, é uma geração que cresceu com smartphones e sabe usar bem as redes sociais para partilhar histórias e envolver outros. "É uma tempestade perfeita", resume. E isso viu-se nas intervenções dos adolescentes durante a Marcha pelas Nossas Vidas. Falando perante milhares de pessoas, a voz pode-lhes ter tremido, mas as mensagens foram inequívocas. "Devíamos ir estudar para preparar o nosso futuro e não, ao invés disso, temer que não tenhamos um futuro", disse Mia Freeman, que falou na marcha em Los Angeles. Ema Espinoza referiu que há sempre uma tentativa de olhar para outros assuntos, como a saúde mental, e isso não resolve nada. "Nós sabemos que as armas não disparam sozinhas", declarou. Gabriela Becher tem posição semelhante: diz que o foco na saúde mental é falacioso, porque o verdadeiro problema é a facilidade de adquirir uma arma. "Os nossos políticos decidiram que os donativos importam mais do que as vidas. Isso não acaba hoje", refletiu o estudante Philippe Germaine. "O trabalho árduo começa quando as câmaras são desligadas. Temos de votar para correr com eles."

Um alvo comum

O otimismo relativo à "onda azul" que os democratas esperam que aconteça não os deixa esquecer, no entanto, que até às eleições faltam quase oito meses. Por outro lado, têm de jogar com um equilíbrio que lhes permita conquistar eleitores nos Estados mais vermelhos, onde a posse de arma é importante. "Penso que isto deve ser um assunto não partidário, é sobre a vida das pessoas", afirma Gabriela Becher. "A violência armada é algo que a maioria das pessoas acredita poder ser resolvida com maior controlo sobre as armas, até mesmo quem esteja do outro lado político." Este é um ponto repetido pelas várias organizações antiarmas, embora Becher admita que "a maioria dos democratas não é apoiada pela NRA e a maioria dos republicanos é." Quem quiser ver legislação efetiva ser aprovada, terá de votar em candidatos que se posicionem contra a NRA, e isso é menos provável do lado republicano. De acordo com o Center for Responsive Politics, a NRA gastou 50,2 milhões de dólares em sete eleições- -chave no ciclo de 2016, apoiando exclusivamente candidatos republicanos.

O orçamento generoso da organização, que tem cinco milhões de membros pagantes, é gasto em contribuições de campanha e em anúncios contra a oposição ou pró-Segunda Emenda (que consagra o direito de porte de arma). É por isso que a Drain the NRA está focada em atingir a associação na sua capacidade de receber fundos. "O nosso foco é tirar o dinheiro corporativo da NRA, boicotar as empresas que a apoiam", explica Mannino. "Olhámos para o site da NRA e vimos que havia muitas empresas a oferecerem benefícios aos membros. Tratam a NRA como se fosse o Automóvel Clube, e não é, é uma organização de lóbi que financia terrorismo doméstico", acusa. "Nenhuma vida importa a estas empresas até que comecem a custar-lhes dinheiro." As campanhas têm funcionado, já que várias grandes empresas cancelaram parcerias com a associação.

No entanto, a perspetiva de restrições levou também ao efeito contrário: as contribuições individuais à associação triplicaram após Parkland. A venda de armas e a NRA costumam beneficiar financeiramente após um massacre, devido ao receio de que haja legislação restritiva.

A Drain the NRA e outras organizações similares estão a tentar mudar esse paradigma, aproveitando a boleia de líderes improváveis. "Tornar a América grande outra vez?", pergunta Deborah Gitell, referindo-se ao slogan do presidente Trump. "Vamos só tentar tornar a América segura outra vez."

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