Joshua e Klitschko enchem Wembley e devolvem o foco aos pesos-pesados
Deixemos de parte, por momentos, o folclore mediático em torno de um possível duelo entre Floyd Mayweather e Conor McGregor e concentremo-nos no cartaz que anuncia um real candidato a combate do ano. Um cartaz que este sábado vai levar 90 mil pessoas a encher o Estádio de Wembley, o mais emblemático dos palcos desportivos em Londres, para ver, a partir das 22.00, o ansiado duelo entre dois monstros dos pesos-pesados do boxe: o britânico Anthony Joshua e o ucraniano Wladimir Klitschko.
A luta, que vai colocar em jogo os títulos mundiais da categoria em duas das entidades que regem a modalidade, IBF e WBA, começou a desenhar-se à boleia dos traumas de Tyson Fury, o excêntrico britânico descendente de ciganos irlandeses que deixou cair os cinturões de campeão conquistados de forma espetacular perante este mesmo Wladimir Klitschko, em novembro de 2015. Na altura, Fury acabou com um longo reinado de 11 anos do ucraniano sem conhecer a derrota e arrebatou os títulos de três das quatro principais organizações mundiais do boxe: a IBF, WBA e WBO (a outra é a WBC, que tem como campeão de pesos-pesados o norte-americano Deontay Wilder).
O interesse em redor de um previsto rematch entre Fury e Klitschko manteve os holofotes virados para a categoria, mas o britânico não aguentou as luzes. Herói frágil em conflito com demónios antigos (drogas, álcool, depressão), Fury cedeu à cocaína e perdeu os títulos. Um deles, o da IBF, já o tinha perdido pouco depois de o conquistar, em dezembro de 2015, ao recusar um combate para a defesa do cinturão. E essa foi a primeira porta aberta para o combate que hoje se realiza em Wembley.
Então, Anthony Joshua, uma jovem promessa faminta por desafiar os campeões depois do título olímpico conquistado em 2012 ainda como amador, era já campeão britânico e da Commonwealth e espreitava a oportunidade de uma primeira luta por um título mundial. A oportunidade chegaria em abril de 2016, perante o norte-americano Charles Martin, que tinha ficado com o título da IBF que Fury recusara defender. Martin não durou dois assaltos às mãos de Joshua, que arrebatou de forma fulgurante o seu primeiro título mundial, com a 16.ª vitória por knock out (KO) em 16 combates como profissional.
De então para cá, o britânico nascido em Watford há 27 anos já defendeu por duas vezes com sucesso o cinturão da IBF (Federação Internacional de Boxe), aumentando o rol de vitórias por KO para 18, num currículo impressionante que ainda não conheceu qualquer derrota ou empate. Esse é um dos títulos que hoje vão a jogo. O outro é o da WBA (Associação Mundial de Boxe), que se encontra vago desde outubro de 2016, quando Tyson Fury foi desapossado.
Passado e futuro frente a frente
Sem Fury em cena, Wladimir Klitschko tenta reconquistar o trono que ocupou durante tanto tempo (o segundo mais longo reinado da história, só atrás do norte-americano Joe Louis nos anos 40 do século passado), perante o mais entusiasmante dos novos boxeurs. Um duelo entre juventude e veterania, entre passado e futuro, que rapidamente apaixonou os aficionados da modalidade e fez esgotar os 90 mil lugares disponíveis em Wembley - um recorde britânico de assistência no pós-Guerra.
Anthony Joshua, filho de nigerianos, só começou no boxe aos 18 anos, para fugir às lutas de rua que já começavam a torná-lo um "cliente" conhecido para a polícia de Watford. Mas a ascensão foi meteórica e em três anos apenas chegou ao ouro olímpico que o lançou definitivamente para o palco mediático do desporto britânico. Como profissional, não tem abrandado o ritmo. Pelo contrário. Em 18 combates, só dois adversários o fizeram suar durante mais de três assaltos.
Ágil, forte e rápido no ringue, simpático e extrovertido (mas não "bazófias", ao contrário de Fury) fora dele, gosta de se autointitular como "um campeão do povo". "Tal como o Rocky", disse ao jornal inglês Guardian, revelando a sua admiração pela personagem de Rocky Balboa, a quem Sylvester Stallone deu vida no cinema. E não esconde que se focou no boxe porque viu aí a sua chance de "vir a ser milionário".
Klitschko é toda a antítese do jovem britânico. Na idade (41 anos), na forma de lutar (defensiva e calculista) e na personalidade, avessa à máquina mediática, o que fez dele talvez o menos popular dos grandes campeões de pesos-pesados das últimas décadas.
O mais novo de dois irmãos que resgataram esta categoria do domínio britânico e norte-americano - Vitali, o irmão mais velho, também foi campeão da WBO e da WBC, mas retirou-se em 2013 para se dedicar à política e é atualmente presidente da câmara de Kiev -, Wladimir Klitshcko promete ser mais ofensivo no combate de hoje contra Joshua. "Quando uma pessoa ganha tudo, o desporto torna-se aborrecido, eu percebo isso. Com títulos para defender tornas-te mais defensivo, corres menos riscos. Mas agora já não não tenho essa pressão. Agora sou eu o predador", diz.
Ao contrário do que aconteceu na antecâmara da luta com Tyson Fury, que incluiu muito trash-talk (a maior parte da responsabilidade do britânico, que chegou a vestir-se de Batman para uma conferência), entre Anthony Joshua e Wladimir Klitschko a preparação do combate ficou marcada por poucos sound--bytes e muito respeito mútuo. "Acho que passámos uma excelente mensagem em favor do boxe", resume o ucraniano, que não se coibiu sequer de elogiar o poderio de Joshua. "É o adversário mais difícil que já defrontei na carreira, seguramente. Já viram bem aqueles músculos?" O britânico devolveu a simpatia. "Se é difícil para mim, que sou mais novo, imagino o que o manterá motivado aos 41 anos. Tem de ser mentalmente muito forte."
As "agressões" ficam reservadas para o ringue, esta noite, em Wembley, onde se perspetiva um combate de gala que vai render cerca de 15 milhões de libras (17,5 milhões de euros) a cada um dos pugilistas, independentemente do resultado.