Joseph Ratzinger, o intelectual que dessacralizou o papado

O alemão que ficou conhecido como Bento XVI teve um percurso de intelectual e teólogo brilhante, mas a sua ortodoxia no Vaticano, primeiro como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, depois como pontífice, são objeto de discussão. A incapacidade para combater os escândalos acabou por ditar a sua abdicação.
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Em 11 de fevereiro de 2013, Bento XVI surpreendeu o mundo ao anunciar a abdicação ao cargo da chefia da Igreja Católica. Esse gesto rompeu com a tradição de séculos e acabou por ser um momento chave do papado do alemão que morreu este sábado, aos 95 anos, depois de o seu estado de saúde se ter agravado nos últimos dias.

Coube ao diretor do gabinete de imprensa da Santa Sé, Matteo Bruni, dar a nova: "Com pesar informo que o Papa emérito Bento XVI faleceu hoje às 09.34, no mosteiro Mater Ecclesiae, no Vaticano." Mais tarde soube-se que os fiéis vão poder despedir-se do 265.º pontífice da Igreja Católica a partir de amanhã, na basílica de São Pedro, onde estará o seu féretro, e que o funeral vai realizar-se na quinta-feira. A cerimónia vai ser presidida pelo Papa Francisco, que há pouco tempo apodou o antecessor de "santo".

O perfil e o legado do alemão vão decerto continuar a ser motivo de debate. Para a imprensa do Vaticano, Bento XVI foi o Papa que "uniu fé e razão, esperança e caridade". Para alguns dos seus críticos foi o "Rottweiler de Deus" pelo seu perfil tradicionalista e dogmático, em especial pelo seu papel enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, para outros o seu papel é criticável sobretudo por não ter lidado com o escândalo dos abusos sexuais cometidos ao longo de décadas por membros da Igreja Católica. No início de 2022, atingido por acusações de que teria acobertado quatro casos de pedofilia quando era arcebispo de Munique, entre 1977 e 1981, pediu "perdão" e manifestou a sua "profunda" vergonha.

Eleito Papa em abril de 2005, quando tinha 78 anos, tornando-o um dos mais velhos a assumirem a cátedra de São Pedro, não se mostrou muito confortável com a tarefa que tinha entre mãos. Mais tarde assumiu a relutância em assumir o papado, quando tinha no horizonte retirar-se para casa, numa aldeia bávara, com o seu irmão, o sacerdote Georg, e dedicar-se a escrever livros. "A certa altura, rezei a Deus, "Por favor, não me faça isto. Evidentemente, desta vez Ele não me ouviu"", disse a um grupo de peregrinos alemães pouco depois da sua eleição.

Além do gosto que tinha em exercer o seu intelecto através da reflexão e da escrita (deixou três encíclicas entre outros documentos, e uma série de livros, entre os quais a entrevista Luz do Mundo), tocava piano (com um fraquinho por Mozart) e no Vaticano há muitos anos era conhecido pelo seu carinho pelos gatos vadios. Nascido no povoado de Marktl am Inn, na Baviera, tinha cinco anos quando Adolf Hitler ascendeu ao poder. Na sua autobiografia evoca uma infância feliz.

Aos 14 anos foi inscrito na Juventude Hitleriana, porque era obrigatório, mas, segundo contou, o professor de Matemática poupou-o de assistir às reuniões. Mais tarde não teve como escapar ao serviço militar. Ao assistir aos horrores do regime (judeus a caminho de campos de concentração, um primo seu, com síndrome de Down, foi morto) não duvidou: "Só a fé cristã tinha a possibilidade de curar estas pessoas e dar um novo começo." Em 1945, diz ter desertado e, com a rendição alemã e a vitória dos aliados, foi encontrado no campo de prisioneiros de Bad Aibling e libertado a 19 de junho desse ano. Seis anos depois, ele e o irmão eram ordenados padres. Ratzinger cedo demonstrou ser um promissor teólogo, tendo lecionado em Bona, Munique, Tubinga e Ratisbona.

O padre Anselmo Borges, que travou conhecimento com Joseph Ratzinger quando este era cardeal, recorda uma pessoa "muito simpática, muito amável e tímida" que deixa dois grandes legados, o primeiro deles enquanto pensador. "Foi um grande teólogo, um grande intelectual reconhecido como tal fora da Igreja, tendo mantido sempre um diálogo entre a fé e a razão, inclusive com muitos ateus", diz o colunista do DN.

"Pouca gente sabe disso, mas fica também o impulso que deu ao Concílio Vaticano II." Ratzinger tinha então 35 anos e fora escolhido pelo cardeal Josef Frings para o acompanhar a Roma na conferência eclesiástica que traria uma abertura da Igreja Católica. Reza a história que então escreveu o discurso de Frings na defesa da abertura do Vaticano aos bispos de todo o mundo. "Foi um dos teólogos que mais se bateram pelo Concílio Vaticano II. E, na altura, era muito amigo de Hans Küng, mas depois separaram-se", nota Borges, referindo-se ao teólogo suíço que foi conselheiro de João XXIII e que acabou por ser afastado do ensino católico durante o consulado de Karol Wojtyla, que adotou o nome de João Paulo II.

O Papa polaco, que conhecera Ratzinger durante o conclave que elegeu João Paulo I, convidou o alemão para prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Um cargo em que não terá tido pruridos em usar dos seus poderes, fosse para se mostrar um advogado da ortodoxia, ao censurar a homossexualidade, o divórcio e segundo casamento, e qualquer "contraceção artificial", bem como a defesa acérrima do celibato e do sacerdócio masculino. Enquanto órgão herdeiro da Santa Inquisição, a congregação perseguiu teólogos como Küng, mas principalmente os partidários da teologia da libertação, que o então cardeal e o Papa viam como um perigoso caminho para o marxismo. Foram condenados ao silêncio uma dúzia de teólogos e outros 80 foram investigados. "Esse é um dos pecados que ele, juntamente com o Papa João Paulo II, cometeu", comenta Anselmo Borges.

O outro grande legado para o teólogo é a histórica renúncia. "Depois das intrigas na cúria do Vaticano e de escândalos, como os do lobby gay e os financeiros, e do famoso Vatileaks, disse que já não podia mais e abdicou. Renunciou e dessacralizou o papado, e este é um legado histórico." Bento XVI, ao renunciar, "abriu espaço para o grande Papa Francisco e para a renovação que tem operado dentro da Igreja", continua.

Para Anselmo Borges, o Papa Francisco tem agora "o caminho mais aberto para uma possível renúncia". Em entrevista recente ao jornal espanhol ABC, Francisco revelou que no início do papado entregou uma carta ao secretário de Estado Tarcisio Bertone no qual declarava renunciar no caso de impedimentos graves e permanentes ligados à saúde. "Abre-se um caminho mais fácil para a renúncia do Papa Francisco."

No entanto, para Anselmo Borges, o argentino não quererá abdicar antes de completar a sua reforma. "O Papa Francisco abriu um caminho na Igreja que é o da sinodalidade. O que é que isto quer dizer? Quer dizer que a Igreja somos todos nós, são todos os cristãos, todos os batizados e em vez de uma Igreja piramidal, com o poder centralizado, ele quer uma Igreja circular, em que todos devem participar na condução da Igreja. Penso que ainda quereria, ainda quererá estar presente em [outubro de] 2023 no Sínodo em Roma precisamente sobre a sinodalidade e assim abrir caminho para questões fundamentais com que a Igreja se confronta." Questões como o lugar da mulher na Igreja, o fim do celibato obrigatório e assegurar a continuidade do diálogo ecuménico.

"O lamentável mal-entendido"

Bento XVI irrita os muçulmanos de todo o mundo ao citar, em 2006, um imperador bizantino, ligando o Islão à violência. A leitura provocou dias de protestos, por vezes violentos, em países muçulmanos, levando o pontífice a dizer que "lamentava profundamente" qualquer ofensa.

O dia histórico

Em 2008 adota uma atitude de defesa das vítimas de abuso sexual por parte do clero, ao emitir um pedido de desculpas histórico, durante uma visita à Austrália, em que se encontrou com quatro vítimas.

A irritação de Merkel

Em 2009 levanta a excomunhão a bispos tradicionalistas radicais, incluindo Richard Williamson, que alegaram nunca terem existido câmaras de gás nazis e que os nazis mataram mais de 300 000 judeus - não seis milhões. Críticas de grupos judeus, de Angela Merkel, e de forças no interior da própria Igreja, levaram o Vaticano a exigir que Williamson mudasse os seus pontos de vista antes de poder ser readmitido.

A vergonha da pedofilia

Bento XVI, em 2010, escreve uma carta dirigida aos católicos irlandeses, expressando "vergonha" e "remorso" pela pedofilia de padres na Igreja Irlandesa. Um mês depois, a caminho de Fátima, fala da pedofilia envolvendo membros do clero, dizendo que "a maior perseguição à Igreja" não vem de "inimigos de fora, mas nasce do pecado da Igreja". À crise da Igreja Católica na Irlanda, em 2009, seguiu-se uma avalancha de escândalos similares na Europa e nos Estados Unidos.

Os pecados do mordomo

O caso ficou conhecido como "Vatileaks". O Papa perdoa e liberta o seu ex-mordomo, mas expulsa-o do Vaticano, 12 meses (2012) depois de Paolo Gabriele revelar segredos papais e documentos com fraudes no Vaticano.

cesar.avo@dn.pt

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