José Soeiro: "Relatório da precariedade deixou de fora milhares de trabalhadores"

O Bloco de Esquerda exige ao governo que integre no relatório sobre a precariedade milhares" de pessoas que trabalham para o Estado através de empresas de trabalho temporário ou em prestação de serviços. "Seria uma falha grave que ficassem fora do processo de integração", diz José Soeiro, o deputado bloquista responsável pelas questões laborais.
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O relatório sobre a precariedade conclui que há 116 mil pessoas a trabalhar no Estado sem vínculo de trabalho efetivo. É um número expectável?

Não nos surpreende. A precariedade instalou-se na sociedade portuguesa e os vínculos atípicos também se instalaram no Estado, que é o maior empregador de precários. Tínhamos a perceção da dimensão do fenómeno e, sobretudo, da urgência de que seja o Estado a dar o exemplo de respeito pelos direitos laborais. Mas há um problema no diagnóstico que foi feito, que é o de não constarem os milhares de trabalhadores que preenchem necessidades permanentes do Estado que trabalham por via de empresas de trabalho temporário ou prestadoras de serviços. Isso significa que estes milhares de trabalhadores, que são intermediados por outras empresas, não foram considerados porque o seu vínculo não é com o Estado. Mas não podem ficar fora do diagnóstico. Seria uma falha grave que ficassem fora do processo de integração.

O número peca por escasso, então...

Sim, faltam todos os trabalhadores que preenchem necessidades efetivas do Estado por via de falsos outsourcings e empresas de trabalho temporário. É um truque que as empresas usam para escapar às suas responsabilidades com os trabalhadores. Não seria aceitável que o Estado usasse a mesma atitude.

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Mas o que é facto é que não estão lá...

Tem de se corrigir, passar a incluir estes trabalhadores.

Vai ser uma exigência do BE?

Sim. Queremos que ninguém seja deixado de fora neste processo. Todas as pessoas que trabalham para o Estado, que desempenham funções essenciais ao funcionamento dos serviços, devem ser incluídas. Um exemplo: no Centro Hospitalar do Oeste houve uma greve de pessoas que trabalham para uma empresa de trabalho temporário, que os aluga ao hospital. São trabalhadores que não têm vínculo ao hospital mas que são fundamentais para o funcionamento dos serviços. Não podem ficar de fora.

Tem ideia de quantas pessoas estão nessa situação?

É possível estimar que sejam alguns milhares, é difícil saber o número exato. É por isso que é preciso fazer esse levantamento, porque estas pessoas não estão contabilizadas nas estatísticas do emprego público como trabalhadores do Estado. Mas em cada serviço, quer os dirigentes quer os próprios trabalhadores, sabem quem está nesta situação. Temos insistido, e vamos insistir, para que os próprios trabalhadores tenham uma palavra a dizer neste processo.

Faz sentido que haja contratos a termo no Estado ou não?

Há situações dentro dos vínculos atípicos que são de verdadeira prestação de serviços. Serão muito minoritárias no contexto destes números, mas existem. É por isso que este diagnóstico não dá um retrato exato da precariedade no Estado. Por um lado, não distingue nos vínculos atípicos aqueles que estão a preencher necessidades permanentes, por outro, deixa de fora alguns milhares que estão nessa situação. Contudo, queria salientar a importância de estarem incluídos os contratos de emprego-inserção. Durante muitos anos, a estes trabalhadores, que são remunerados com o seu próprio subsídio de desemprego, recebem uma bolsa de 80 e poucos euros para um trabalho a tempo completo, quase sempre a preencherem necessidades permanentes, foi-lhes negado até o reconhecimento do estatuto de trabalhador.

De que forma estas pessoas devem ser integradas na administração pública?

O modo de vinculação deve partir da identificação das vagas que é preciso criar em cada serviço, ou seja, do número de trabalhadores que em cada serviço estão a preencher necessidades efetivas. Depois, no caso da administração pública, deve passar por um mecanismo de concurso que seja capaz de reconhecer a experiência, o trabalho que fizeram, atribuindo-lhes uma habilitação especial para preencherem o posto de trabalho aberto com esse concurso. Há uma questão importante: a identificação do número de trabalhadores e das pessoas que vão ser incluídas neste processo de integração não pode ser feita apenas pelos próprios serviços. Deve haver um mecanismo que inclua os trabalhadores. Uma das hipóteses são os tribunais arbitrais, com representação do Estado, dos trabalhadores e uma terceira pessoa, um presidente do júri de mútuo acordo. É preciso que haja esta instância independente que garanta que todas as situações em que um trabalhador está a preencher uma necessidade permanente são reconhecidas.

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O Orçamento já define três critérios de integração. Concorda com eles?

Há o critério de as pessoas preencherem uma necessidade permanente, que faz sentido. A existência de uma subordinação hierárquica também. O terceiro, o horário completo, é um critério indefensável e inaceitável. Não é pelo facto de alguém não ter um horário completo que não está a preencher necessidades permanentes. Um formador a trabalhar para o IEFP há 15 anos a recibos verdes, com um horário de 18 horas, obviamente que tem de ser vinculado. Estamos agora a dialogar com o governo para definir um processo de integração. A nossa proposta exclui o horário completo como critério.

O que significa esse "inaceitável" em termos práticos?

As reuniões para desenhar o modelo de integração estão agora a começar. Não vamos desistir de nenhuma das nossas propostas. Este processo tem de ser transparente e justo.

Como vai decorrer este processo?

Os prazos estão definidos. A seguir à divulgação do diagnóstico...

Que já leva uns meses de atraso...

Atrasou-se e isso não é um indicador positivo. Em todo o caso, o diagnóstico, que era uma peça essencial, está cá fora, com as limitações que identifiquei. Até ao final do primeiro trimestre tem de estar desenhado o modelo de integração, é nesse trabalho que estamos envolvidos, e em outubro têm de estar a iniciar-se os processos de vinculação.

Este processo não vai representar um encargo financeiro muito pesado?

Estamos a falar de funcionários públicos que já existem, que já são pagos pelo Estado. No caso, por exemplo, do Centro Hospitalar do Oeste, o que o Estado paga à empresa de trabalho temporário para intermediar esses trabalhadores é um custo acrescido que só tem como efeito alimentar o lucro de uma empresa cujo negócio é alugar pessoas. E que está a sorver para si uma parte do dinheiro que deveria ir para o trabalhador. Esse tipo de intermediação deve acabar. Aliás, a questão do trabalho temporário é essencial, não apenas no público, mas no privado. Neste aspeto, há algumas matérias sobre as quais fizemos avanços importantes, mas que precisam de ser concretizadas.

Por exemplo?

O reforço dos meios e das competências da Autoridade para as Condições do Trabalho. Uma das vias da precarização em Portugal tem sido a transgressão à lei, uma espécie de fraude laboral em grande escala - os falsos recibos verdes são um bom exemplo. Para combater isso é preciso que haja uma fiscalização muito mais eficaz e muito mais consequente. Outro aspeto é o alargamento da lei contra a precariedade, com o Estado, o Ministério Público, a responsabilizar-se pelas ações de reconhecimento do contrato de trabalho, deixando de colocar essa responsabilidade nos ombros do trabalhador precário. Essa alteração já foi acordada, é preciso que seja concretizada. Há matérias sobre as quais não foi possível chegar a acordo, mas não desistimos. Um exemplo é o trabalho temporário. É um dos setores que mais tem crescido em Portugal, que tem milhões de euros de lucros, e que é uma forma de precarização extrema que tem sido galopante.

Qual é a proposta do BE? Proibir?

Em muitos casos, sim, é proibir o recurso à intermediação laboral para preencher funções que são permanentes e que devem passar por um vínculo entre um trabalhador e a empresa em que ele trabalha. A situação é tão chocante que nós temos uma legislação sobre o trabalho temporário que permite que um trabalhador tenha 740 contratos de trabalho temporário sucessivos. Isto é possível legalmente. Esta ausência de regras tem de ser combatida.

Mas não houve acordo com o PS...

Não chegámos a acordo, sabemos que há no PS quem tenha uma ligação orgânica a estes interesses - nomeadamente um provedor do trabalho temporário que é deputado do PS [Vitalino Canas] -, sabemos que há muitos interesses, mas não pode ficar de fora o combate a esta forma extrema de precarização.

São conhecidas várias divergências com o PS em matéria laboral. Esta não é, potencialmente, uma área de grande conflito entre a maioria que suporta o governo? Já tivemos o exemplo da TSU.

Vai ser uma das áreas de grande negociação, sobre a qual insistiremos mais. A lição que podemos retirar do processo da TSU, em primeiro lugar, é que esta maioria fez-se para a recuperação de rendimentos e, portanto, deve ser sempre fiel a soluções que sejam coerentes com esse princípio. Em segundo lugar que o governo não deve ficar dependente da direita para aprovar medidas contra as propostas e os princípios que acordou com a esquerda. E em terceiro lugar que, quando existe o compromisso e o esforço de negociação à esquerda se conseguem soluções melhores para o país. Portanto, sim, há divergências muito importantes com o PS, sobre o trabalho temporário, sobre a contratação coletiva... Pela nossa parte, não pretendemos desistir de nenhuma proposta. E, já vimos no passado que, partindo de posições muito diferentes, é possível chegar a soluções.

Ainda recentemente, PS, PSD e CDS chumbaram as propostas da esquerda para o aumento dos dias de férias. Parece haver matérias em que o PS se entende melhor à direita do que à esquerda.

Na questão das férias o PS ficou do lado dos que defenderam as alterações que o anterior governo fez à legislação laboral.

O PS já invocou muitas vezes o impacto orçamental das medidas...

O impacto orçamental não é uma desculpa para não ser reverter a desvalorização do trabalho que foi introduzida no Código do Trabalho. A reconstrução e o relançamento da contratação coletiva em Portugal não são matéria orçamental; a limitação do trabalho temporário não é matéria orçamental; a reversão do corte feito no trabalho suplementar, no valor das horas extraordinárias, também não. A devolução aos trabalhadores dos dias de trabalho não pago que lhes foram retirados não é matéria orçamental. Sobre cada uma destas matérias temos de fazer caminho e fazemos disso uma prioridade para este período.

O PCP também. Há aqui uma competição?

Não, há muitas matérias, nomeadamente neste âmbito, em que existe uma convergência com o PCP que, aliás, não é de agora. E nós valorizamos todas as convergências nesta área.

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