José Morais: "Já ganhei 300 euros no futebol, mas também já ganhei mais de 100 mil por mês"
Como chega o convite para ir treinar para a Coreia?
Foi através de agentes. O Jaime Bragança, que foi atleta do Sporting e que eu conheci quando o contratei para o Santa Clara, iniciou uma carreira de agenciamento e foi através dele e da empresa dele que me chegou o convite. Eles mostraram interesse no meu perfil, foram ter comigo à Ucrânia para conversar comigo e apresentaram-me logo uma proposta.
Mas não estava bem na Ucrânia ou a proposta da Coreia era mais interessante?
Eu estava bem na Ucrânia no sentido em que era um projeto a longo prazo, mas com recursos menores. Este projeto é de uma equipa ganhadora, com recursos e uma capacidade de organização muito superiores ao que existe na Ucrânia. É o campeão da Coreia, já ganhou a Champions asiática... e pareceu-me um projeto mais direcionado para aquilo que eu pretendo para a minha carreira.
O futebol coreano não é dos mais conhecidos a nível mundial... Como foram os primeiros contactos?
Assim como todos os futebóis que distam do nosso continente... A tendência é estar mais a par do que acontece na nossa esfera geográfica. Em termos de conseguir resultados e objetivos, a Coreia tem sido um dos países que têm mostrado alguma evolução e potencial, tem sido um país emergente nos mundiais. Eu lembro-me da Coreia desde os tempos de Humberto Coelho. De lá para cá evoluiu muito. É um povo entusiasta pelo jogo, em que a massa associativa adere ao jogo. O campeonato é muito interessante e tem uma boa média de espectadores. O jogador coreano começou a aparecer em mundiais, depois deu-se uma fuga dos principais valores para a Alemanha e mais tarde para Inglaterra. E jogadores com alguma qualidade. E vemos também pelos resultados da seleção. Não sendo um futebol muito conhecido por nós é um dos países onde a qualidade é mais forte na Ásia, onde o jogador coreano é o mais cotado a par do japonês. É um futebol interessante, tem qualidade, tem jogadores muito interessantes e que suscitam interesse dos grandes europeus.
Esta é a 13.ª experiência de José Morais no estrangeiro, depois José Morais vai trabalhar no 13.º país, depois de Portugal (Benfica B, Estoril, Académico de Viseu e Santa Clara), Alemanha (Westfalia Herne e Dresden SC), Suécia (Assyriska), Jordânia (Al-Faisaly), Arábia Saudita (Al-Shabab e Al-Hazm), Tunísia (Stade Tunisien e Espérance de Tunis), Iémen (seleção), Itália (adjunto de Mourinho no Inter), Espanha (adjunto de Mourinho no Real Madrid), Inglaterra (adjunto de Mourinho no Chelsea e Barnsley), Turquia (Antalyaspor) e Grécia (AEK). O futebol português não gosta de si ou é o José Morais que prefere o estrangeiro...
Eu olho as coisas na perspetiva da oportunidade e do momento em que ela surge. O que acontece é que nunca estive muito tempo livre para poder beneficiar de alguma oportunidade no mercado português, porque andei sempre fora e felizmente tenho tido sempre um mercado interessante fora do país que paga um bocadinho mais do que aquilo que o mercado português pode pagar nas mesmas circunstâncias. Confesso que é um dos objetivos e que um dia gostaria de treinar no futebol português. Há de haver um dia em que estar mais perto de casa pode prevalecer sobre uma vida de emigrante.
E gosta dessa vida de saltimbanco?
Gosto dos desafios, de experimentar coisas novas, estou talhado para conhecer outras coisas, aberto a horizontes diferentes. Sou uma pessoa agregadora, integradora e conciliadora e gosto da universalidade. E como gosto disto tudo e sou um indivíduo que fala sete línguas, entendo que a comunicação não se deve resumir ao bom-dia e boa-tarde. Gosto desta vida de saltimbanco dos treinadores, sempre de malas feitas e cheio de curiosidade para ver o que há para além do que me rodeia.
Mas adapta-se rapidamente às culturas ou nem dá tempo para isso...
É difícil dizer que se tem boa capacidade de adaptação a tudo, mas de facto eu tenho uma boa capacidade de adaptação e isso permite-me tirar partido das situações. Já tive dificuldades, claro. Na Arábia foi difícil fazer-me entender, eu não falo árabe e quase ninguém falava inglês, mas aí funciona o desenrascanço português. Quando comecei ainda não havia os tradutores, então ia ao tradutor do Google muitas vezes, metia o texto em português e traduzia... mas por vezes saía errado e passava por situações caricatas. Mas ao longo destas aventuras todas sempre consegui dar a volta às situações... Na Tunísia achavam que eu era tunisino e começavam a falar comigo na língua local, na Arábia julgavam-me árabe... No Japão não corro esse risco (risos). Para já vou sozinho, a minha filha que tem oito anos está na escola e não vai interromper até junho. Depois vão visitar-me e ver as condições e só depois vamos avaliar se se mudam para ao pé de mim.
Disse há pouco que não têm faltado oportunidades, mas essas oportunidades têm surgido para o José Morais ou para o ex-adjunto de José Mourinho...
Nunca parei para pensar e olhar a questão por essa perspetiva. Eu diria que eu beneficio daquilo que sou, e das experiências porque passo e o facto de ter sido da equipa técnica do Mourinho todos estes anos deram-me possibilidades diferentes. É uma experiência que é valorizada pelo mercado internacional e de uma forma muito natural acreditam que isso me torna mais capaz.
Ter deixado a equipa técnica de Mourinho foi uma opção? Seria mais confortável deixar-se estar como adjunto de Mourinho a embarcar numa carreira a solo...
Acredito que seria mais confortável deixar-me estar como adjunto de Mourinho... isso se eu fosse alguém que olhasse para a vida pelo lado do conforto. Ser adjunto do Moutinho é optar por uma carreira estável embora turbulenta... mas faz parte do jogo. Trabalhar com um técnico do nível dele exige muito, mas não há ninguém como ele... Eu sempre fui de desafios e saí da equipa técnica com a bênção dele, digamos assim. Apareceu uma proposta irrecusável num altura em que tínhamos saído do Chelsea e já sabíamos para onde iríamos a seguir. Entretanto, chegou-me uma proposta irrecusável da Arábia Saudita. A proposta financeira era muito boa. Fui ter com ele e contei-lhe, ele respondeu "isso não é mau... e tu queres ir? Bem, fazes assim, pedes isto, isto e mais isto e se te derem eu deixo-te ir e depois tu voltas". E eu longe de pensar que eles iam dizer que sim a tudo o que eu pedia. Foi um bocado assim. Isto mostra como ele é com quem trabalha com ele, nunca corta as pernas, olha ao bem-estar dos que o rodeiam.
Nessa altura em que era adjunto dele, não havia olho gordo...
Inveja sempre há, assim como há sempre quem te tente desvalorizar, mas eu não olho para as coisas por esse lado, não valorizo quem pensa assim. Havia tantos candidatos e ele escolheu-me a mim. Tive a felicidade de o conhecer e de em determinado momento ter recebido a confiança dele para trabalhar com ele. As oportunidades não são dadas a todos, muito menos naquela altura com ele no topo do mundo. Na altura estava longe de pensar que ia trabalhar com ele, mas quando ele me ligou a perguntar se queria ir e me disse que tinha umas duas mil pessoas a querem trabalhar com ele, mas que tinha escolhido a mim, eu respondi, "já tenho ali a mala preparada, quando é que queres que eu vá". Confesso que sou muito agradecido na vida e nunca me esqueço das pessoas que, em determinado momento, me proporcionaram coisas positivas e ele foi, sem dúvida, uma dessas pessoas. Espero um dia retribuir, não sei como nem estou preocupado com isso, mas sei que a vida me vai dar momentos para retribuir.
Como conheceu o Mourinho e como surgiu a oportunidade de trabalhar com ele?
No Benfica. Ele treinava o Benfica e eu o Benfica B, depois ele saiu e havia um convite do Sporting e ele convida-me a ir com ele. Mas eu pensava que não estava preparado para o auxiliar e disse-lhe isso. Então ele virou-se para mim e disse: "Um dia ainda vamos trabalhar juntos. Foste homem suficiente para admitir que não estavas preparado." E aconteceu.
Entretanto, passou por um grande susto na vida...
No fundo eu nunca vi nem senti que tivesse alguma coisa grave, embora a situação fosse grave. Eu estava a dar uma palestra, íamos jogar com o Fenerbahçe essa semana, bati com o punho na parede, um sinal de confiança e motivação, mas senti um estalido na parte de trás da cabeça, seguido de dor de cabeça muito forte. Ainda dei o treino, mas o som do apito fazia-me muita confusão. Entreguei o treino ao adjunto, fui falar com o médico e ele pediu para ir para casa e descansar, mas eu não me sentia bem e insisti em ir ao hospital. Depois recordo-me de toda a gente à minha volta estar preocupada e eu a falar e a explicar o que tinha acontecido. As pessoas não me queriam dizer que eu estava a correr risco de vida. Os médicos só me pediam calma, para estar sossegado, queriam que eu me calasse e eu sempre a explicar coisas e a falar. Até que um deles me disse que podia acontecer alguma coisa muito grave a qualquer momento...
Ou seja...
Eu vivi o momento como se nada de grave se passasse, mas estava numa maca, num hospital e ligado a máquinas e só quando o médico-cirurgião se chegou ao pé de mim e me falou da possibilidade de ser operado é que me apercebi da gravidade da situação. Perguntei-lhe o que se passava e foi quando ele me disse que tinha sofrido um derrame cerebral de dois centímetros. E eu perguntei "e agora"? Disse-me que tinha de ser operado. Eu voltei-me para ele e disse-lhe "OK, amanhã estou vivo ou amanhã estou morto" e ria-me e dizia que no dia a seguir ia ter um jogo importante e queria ir para o banco...
A recuperação foi lenta? Teve medo de não voltar a treinar?
Nunca tive esse medo, porque a minha sensação foi sempre de que estava bem, mas que por precaução precisava estar no hospital. Depois quando saí, os médicos aconselharam precaução. Disseram que tive muito sorte porque o derrame foi venoso e não arterial, se fosse arterial podíamos não estar a conversar hoje. Felizmente voltei a treinar.
E o futebol sempre foi uma paixão?
O futebol é a minha profissão e a minha paixão. Eu não fui para o futebol porque isso me ia dar dinheiro. Fui às escuras e sem saber se ia dar jogador ou treinador. Eu já ganhei 300 euros no futebol, mas também já ganhei mais de 100 mil euros por mês. O futebol é o que eu gosto de fazer. Vejo o jogo, gosto do treino, do ambiente, do movimento, da animação, da alegria dos adeptos no estádio. Gosto de muita coisa que o jogo de futebol me dá. O futebol é que me alimenta este entusiasmo. Estar agradecido ao futebol? Não. Eu sou agradecido à vida.
Quando era jogador já se imaginava treinador?
Curiosamente tive sempre essa ideia. No final da carreira de jogador eu estava na faculdade, comecei a desenhar a minha vida dentro do desporto, era aquilo que eu queria e gostava. Quando apareceu a oportunidade de fazer um estágio nas camadas jovens do Benfica eu dei por mim a pensar que um dia queria ser treinador de equipas profissionais e aquele era o caminho. O Benfica foi uma oportunidade que agarrei. Enquanto jogador cheguei a ir fazer testes ao Benfica e não fiquei... depois a vida proporcionou-me ir para o Benfica de outra forma.
Não ficou no Benfica porquê?
Pela data de nascimento, 27 de julho. Na altura, os escalões eram definidos de 1 de agosto a 31 de julho do ano seguinte. Fui fazer testes como juvenil mas quando me chamaram para assinar repararam que na temporada seguinte já seria júnior, por quatro dias não fiquei. Ainda lá voltei para testes nos juniores, mas fisicamente era muito mais pequeno do que os outros e não fiquei.
Onde começou a jogar à bola?
Comecei a jogar à bola na rua ainda em Angola, com uns 4/5 anos. Depois vim para Portugal com uma família emprestada e comecei a jogar em Vieira de Leiria, quando tinha uns 12 anos. O campo de futebol era próximo da casa onde eu morava e a bola acabou por ser uma amiga e ajudar a matar as saudades de Angola. Depois começaram a pedir para participar nos jogos entre os peixeiros e os retornados e a seguir convidaram-me para ir jogar para o Grupo Desportivo da Praia da Vieira...
Veio para Portugal com uma família emprestada. O que é que isso quer dizer? Como foi isso?
Com a intensificação da tensão em Angola, as famílias de portugueses começaram a ser alvos de atentados e houve muitos assassínios, pelo que os meus pais decidiram enviar-me para Luanda à guarda de uma família amiga. Com o 25 de Abril, essa família foi obrigada a retornar a Portugal e eu vim junto.
Como foi a adaptação a Portugal e viver na Praia da Vieira?
Foi muito fácil, era uma criança pequena. Mas foi em Vieira de Leira que percebi o que era ser preto. Foi lá que os outros miúdos me chamaram preto pela primeira vez. Eu que em Angola era visto como branco, por ser filho de um português... Mas adaptei-me rapidamente a Portugal.