José Mattoso, o medievalista que renovou a historiografia portuguesa

Filho do autor de um compêndio da História de Portugal típica do Estado Novo, o homem que trocou o mosteiro pela investigação elevou a historiografia a outro patamar.
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Filho de um professor de história e sobrinho-neto de um bispo, José Mattoso foi monge beneditino até se desentender com os superiores hierárquicos, mas com a História nunca se desentendeu. Especializado na Idade Média, tornou-se numa figura pública à qual lhe pediam autógrafos devido ao sucesso editorial da História de Portugal que dirigiu entre 1992 e 1994 para o Círculo de Leitores.

Morreu no sábado aos 90 anos, deixando "um legado humano indelével, como professor, mentor e orientador, que formou e inspirou gerações de historiadores, estimulando a paixão pela investigação e pela compreensão do passado", como realçou o ministro da Cultura Pedro Adão e Silva .Já o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, destacou-o como "um dos grandes sábios portugueses", enquanto o primeiro-ministro António Costa elogiou a "figura notável" que deu um "novo olhar sobre a nossa identidade".

Nascido em Leiria, em 22 de janeiro de 1933, era um entre oito irmãos, filhos de António Gonçalves Mattoso, professor e autor de compêndios de História. Apesar de serem manuais ao serviço do Estado Novo, o filho José via neles um trabalho "honesto e teoricamente bastante bem informado, mas um pouco ingénuo". Do pai que abominava a desordem e a falta de educação, contou em entrevista ao JN História, em 2016, recebeu valores como a tolerância e a influência para estudar História.

Citaçãocitacao"Nunca esquecerei a sua presença e a sua generosidade. Para José Mattoso, a dignidade humana, os direitos humanos, obrigavam à compreensão da espiritualidade." Guilherme D'Oliveira Martins

Antes de se formar em Lovaina pela Universidade Católica foi frade na Ordem de S. Bento, em Singeverga, Santo Tirso e naquela cidade belga esteve na abadia do Monte César com os beneditinos. A sua tese de doutoramento começou por ser a história do mosteiro de Pendorada até ao fim do século XII, mas por influência do seu orientador, o medievalista Léopold Genicot, acabou por se dedicar a todos os mosteiros beneditinos da diocese do Porto.

Convidado por Virgínia Rau, foi foi professor auxiliar da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1972 e, cinco anos mais tarde, tornar-se-ia professor catedrático da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Foi também diretor do Instituto Português de Arquivos e diretor da Torre do Tombo.

Entre as mais de 30 obras por si assinadas (algumas em colaboração), destaque para Portugal Medieval, em 1985, e no ano seguinte Identificação de um País, livro em dois volumes reconhecido com o Prémio Alfredo Pimenta e o Prémio Ensaio do P.E.N. Clube. Em 1987 foi o primeiro galardoado com o Prémio Pessoa.

Citaçãocitacao"Foi um grande medievalista, que teve um papel fundamental para a compreensão da nossa identidade e da nossa cultura no momento em que estas se começavam a definir." Pedro Adão e Silva

Dirigiu a História de Portugal para o Círculo de Leitores, uma coleção que juntou popularidade (cada volume terá vendido cem mil exemplares) e rigor científico. "Serviço público", comentou certa vez o também já falecido António Manuel Hespanha a propósito desta obra de referência e que, nas palavras de Mattoso, "contribuiu para a renovação da historiografia portuguesa".

Apesar de avesso a sair da sua especialidade - e ao lado de nomes como Georges Duby ou Régine Pernoud a ajudar a acabar com as mistificações sobre a Idade Média -, José Mattoso aceitou o convite de Xanana Gusmão para ordenar a documentação do guerrilheiro Konis Santana. Acabou por permanecer cinco anos em Timor-Leste e escreveu o livro A dignidade: Konis Santana e a Resistência Timorense.

Citaçãocitacao"José Mattoso foi um dos maiores historiadores portugueses e um dos grandes sábios portugueses." Marcelo Rebelo de Sousa

Para José Mattoso, "a História não é uma coisa pragmática. É um modo de compreensão do mundo. Há como que uma iluminação (isto é tudo muito metafórico) do historiador e do leitor, ou seja, do público, a quem ele comunica essa visão do mundo, e aí descobre afinidades e duplos sentidos, interpretações e significados, justificações de uma ou muitas atitudes para com a realidade".

Além disso, e como disse à agência Lusa o investigador Carlos Caetano, Mattoso ultrapassou o olhar positivista tradicional na historiografia portuguesa e "desideologizou" o olhar sobre o passado histórico português, ultrapassando quer a tradição nacionalista, quer "alguns radicalismos próprios da historiografia marxista" e os seus modelos.

cesar.avo@dn.pt

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