Há uma diferença substancial entre fazer política no Parlamento em Lisboa ou no Parlamento Europeu? A perceção que as pessoas têm sobre o trabalho que se faz no Parlamento Europeu varia e isso torna muito evidente a importância do Parlamento Europeu e do seu impacto na vida das pessoas. Às vezes por boas razões, às vezes por más, mas nos tempos mais recentes tivemos exemplos das duas. Acho que uma coisa que qualquer eurodeputado tem de trabalhar mais do que os deputados nacionais são os seus próprios mecanismos de comunicação..Porquê? Hoje em dia, passa muito pelas redes sociais e materiais produzidos para as redes. Já fui deputado nacional, mas hoje invisto muito mais nos meus próprios instrumentos de comunicação e também nos do Bloco. A ligação com a comunicação social no Parlamento Europeu é muito mais esporádica, embora isso tenha melhorado. O jornalismo é um pilar da democracia e é algo de que dependemos muito para fazer chegar a informação às pessoas. Acho que há muitas coisas a mudar na forma como o Parlamento comunica..Por exemplo? O site do Parlamento e da Comissão são muito maus, são muito difíceis de navegar por um cidadão que não conheça os cantos à casa, digamos assim. Acho que há uma opção na comunicação institucional do Parlamento por transmitir uma visão muito unificada do mesmo. Uma visão que praticamente projeta a ideia de que aqui estamos todos de acordo. É muito centrada nas decisões do Parlamento Europeu e não tanto nos debates, nos conflitos e nas controvérsias..Se alguém lhe perguntar o que fez que tenha tido impacto direto na vida das pessoas, o que responde? Aí falo de todo o meu trabalho na Comissão do Emprego e Assuntos Sociais e os relatórios mais importantes em que trabalhei foram o da estratégia para a deficiência e o relatório do semestre europeu para as políticas de emprego, que incidia em coisas que estão muito na berlinda em Portugal. Por exemplo, a questão da contratação coletiva, a questão da precariedade, inclusive, é muito interessante que nesse relatório sobre as políticas de emprego - aprovado por larga maioria -, onde constavam muitas das prioridades que levaram ao nosso desentendimento com o PS. Nomeadamente, a questão da contratação coletiva: penso que as orientações que acabaram por estar no relatório, mesmo depois da aprovação no Conselho, são orientações muito diferentes do que foi, a determinada altura, o paradigma da União Europeia para o trabalho..Paradigma? Há um consenso um pouco diferente sobre o que deve ser a legislação sobre o trabalho atualmente, do que existia há uns anos. Aliás, nessa altura, a Comissão e o próprio Parlamento pressionaram muito os estados-membros para desregularem os seus mercados de trabalho. Isso teve consequências muito negativas, que estamos agora a observar, particularmente na capacidade de resposta ao surto de inflação a que estamos a assistir. E depois há questão da política para os cuidados na União Europeia, porque estamos a ser confrontados com um envelhecimento da população, o que coloca uma enorme pressão do ponto de vista dos cuidados..E o debate é sobre? Há uma grande escolha política entre se queremos criar um pilar do Estado Social e serviços públicos robustos que respondam e tornem universal o acesso a cuidados para toda a gente, independentemente da sua carteira, ou se queremos construir uma indústria dos cuidados, que necessariamente irá dar qualidade de cuidados muito diferentes às pessoas em função dos seus rendimentos. A questão é se os cuidados vão ser entendidos como um serviço público universal ou se vão ser entendidos como um negócio..Tal como o mau negócio, digamos assim, da governação económica? Na Comissão de Assuntos Económicos e Monetários tenho trabalhado essas questões da governação económica. Ou seja, a questão das regras do défice e da dívida e se são, ou não, alteradas. Por exemplo, Portugal está hoje com níveis mínimos históricos de investimento público por causa das regras orçamentais existentes. Não só por causa disso, mas também por opções de governação nacional. Ninguém obriga o governo português a ter níveis tão baixos de investimento, porque as regras estão suspensas, portanto, é uma opção política do nosso governo. Precisamos de ter regras diferentes que protejam a capacidade dos países de desenvolverem estratégias de desenvolvimento económico..Com outras regras fiscais? Na Comissão de Assuntos Fiscais estão a ser debatidos uma série de temas relacionados com a justiça fiscal, muito em particular com o combate à fraude e evasão fiscal, nomeadamente nas grandes empresas. Outra votação que acabámos de fazer foi para uma resolução sobre os vetos oportunistas que estão a ser impostos sobre a ratificação pela União Europeia do acordo da OCDE para a tributação das empresas multinacionais. Esta é uma questão decisiva para o comum dos cidadãos, porque o que tem acontecido, há várias décadas, é que há uma tendência para a redução do nível de tributação para as empresas multinacionais e das empresas em geral. Estabeleceu-se um regime em que os Estados competem para atrair as sedes das empresas e para obterem a receita fiscal relativa à atividade dessas empresas, mesmo que essa atividade tenha lugar noutras economias. Esta competição, que classifico como uma forma de roubo de receita fiscal de uns Estados a outros, tem levado a um decréscimo cada vez maior da tributação sobre as empresas..Roubo? Sim, porque a implicação disto é que a carga fiscal necessária para assegurar os serviços públicos e o investimento público vai recaindo mais sobre os rendimentos do trabalho, para compensar esta diminuição da tributação sobre as empresas. Mas será que as pessoas conseguem perceber que são dois modelos diferentes e que não se pode comparar o Parlamento Europeu com o Parlamento nacional? Há aspetos em que as regras são diferentes e preferia que fossem iguais. Por exemplo, esta é uma questão com que sou confrontado com frequência por pessoas que se dirigem a mim preocupadas com determinado assunto..E dizem? As pessoas dizem-me, por exemplo, que nós temos de propor isto ou aquilo, o que seria absolutamente normal em Lisboa. Mas no Parlamento Europeu, como não tem iniciativa legislativa, não temos essa capacidade. Quando explicamos isso às pessoas, debatemo-nos com uma certa perplexidade. Há uma certa perceção de que o Parlamento tem poder para bloquear coisas, mas não necessariamente para fazer coisas acontecer. Acho que isto está melhor, mas mais pela prática do que propriamente pelos formalismos..Mas vai havendo compromissos. Atualmente, a Comissão Europeia não tem nenhuma obrigação de corresponder a esses pedidos do Parlamento. Na prática, o que tem acontecido é que a Comissão Europeia assumiu um compromisso de corresponder sempre. Ou seja, de assumir propostas que não têm de seguir a proposta do Parlamento, mas têm de responder ao objetivo de legislação..Isso não esvazia o sentido do papel dos eurodeputados aqui? Não, porque o Parlamento Europeu continua a ter poderes em relação às propostas que vêm da Comissão. Acho que, muitas vezes, há aspetos da atuação do Parlamento em que é limitado nas suas ações e não falo apenas na iniciativa legislativa. O Parlamento Europeu deveria escrutinar as recomendações que a Comissão Europeia está a enviar aos países e que, em muitos casos, são contraditórias com o mandato democrático dos governos democraticamente eleitos desses países. Mais, por vezes, são até contraditórios com os relatórios temáticos que são aprovados pelo Parlamento e pelo Conselho sobre essas matérias. Quando falo da Comissão, falo também do Banco Central Europeu. Porque o BCE goza de um estatuto de independência que, do meu ponto de vista, não deveria ter..Por que razão? O BCE não pode ser, em nenhuma circunstância, uma instituição que atua de forma independente em relação ao poder democrático da União Europeia. Aliás, é uma posição que temos também em relação aos bancos centrais nacionais. A política monetária é um domínio fundamental da política económica e não faz sentido que esteja completamente fora de deveres de fiscalização muito básicos e que esteja completamente fora do âmbito do escrutínio democrático. Quanto mais não seja porque o próprio Banco Central Europeu se pode arrogar de ir além das suas competências como fez nas troikas..Ou seja? O BCE não tem nada de andar a desenhar programas de governo dos estados-membros, não está nas suas competências, não está no seu mandato. No entanto, fê-lo à mesma, e as troikas foram completamente ilegais à luz do Direito Comunitário. Aliás, mais tarde houve relatórios do Parlamento Europeu que reconheceram que não foi uma solução particularmente católica, embora não tenham sido estes os termos utilizados..Ficam então os eurodeputados imunes à responsabilização? Não é bem assim. Os cidadãos podem responsabilizar-me pelo que fiz em todas as propostas em que o Parlamento se pronuncia e não apenas nas propostas das comissões onde estou....Mas... Mas é verdade que se isso pode ser muito frustrante, quando falo com um cidadão que me diz que deveria propor isto ou aquilo, mas tenho de lhe explicar que não tenho esse poder. Também há um certo conforto para deputados que não queiram assumir a responsabilidade sobre a sua falta de iniciativa numa série de domínios. Ou seja, acho que o poder de iniciativa legislativa para o Parlamento, seria um poder adicional e, com esse poder, viria uma responsabilização adicional que acho altamente desejável..E há coerência entre as posições defendidas em Lisboa e as que são defendidas aqui? Há é uma incoerência que deve ser assinalada, quer quando estamos a falar de matérias de competência nacional, quer quando estamos a falar de matérias de competência europeia. Por exemplo, se o PS diz, em Portugal que as regras de governação económica devem ser alteradas, e isso é uma competência europeia, é importante saber que depois vota aqui um relatório de revisão das regras de governação económica que não tem nenhuma transformação relevante, que deixa tudo na mesma e que a única coisa que muda é atribuir ainda mais discricionariedade à atuação da Comissão Europeia na fiscalização da atuação dos Estados. E não precisamos de mais discricionariedade, precisamos de regras diferentes que não sejam suspensas de cada vez que há uma crise..E o governo? Sei que o governo está preocupado com aquilo que vem aí, do ponto de vista do aumento das taxas de juro e da retoma das regras de governação económica, e a combinação dessas duas alterações, para uma economia sobre-endividada como a portuguesa, é gravíssima. O que aí vem para a economia portuguesa é gravíssimo..artur.cassiano@dn.pt