José Eduardo Agualusa: "João Lourenço trouxe o fim do medo na sociedade civil"

José Eduardo Agualusa já não ia a Angola há mais de três anos. O escritor crítico regressou para lançar o livro <em>Sociedade dos Sonhadores Involuntários</em>. E deu uma entrevista ao <em>Jornal de Angola</em> em que fala das mudanças no seu país.
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Já não ia a Angola há mais de três anos, José Eduardo Agualusa. Regressou para lançar o livro Sociedade dos Sonhadores Involuntários e fazer workshops de escrita com Mia Couto - a convite do Instituto Goethe e do coletivo cultural Pés Descalços. O escritor angolano, que vive em Moçambique, ainda não tinha estado no seu país depois das eleições e fala agora, numa entrevista ao Jornal de Angola que o DN publica em exclusivo para Portugal, sobre o país diferente que encontrou.

Está a escrever em Angola? Ou está completamente dedicado à agenda oficial?
Estou a escrever. Temos de aproveitar todos os momentos para escrever. Estou a escrever um novo romance que me comprometi em entregar ao meu editor português até finais de maio. Não sei se será possível. Mas estou avançado.

É uma nova abordagem sobre a realidade atual de Angola?
É um romance muito particular, que decorre em sete dias na Ilha de Moçambique, onde estou a viver, mas durante um festival de literatura africana. As personagens são quase todas escritores africanos, vários deles são angolanos. É um romance sobre muitas coisas, sobretudo sobre literatura. Mas se tivesse de o definir diria que é um romance sobre o poder da imaginação.

No seu romance Estação das Chuvas pegou em personagens da história, da vida real, e pô-las a falar na primeira pessoa. Isso provocou muita polémica. E agora diz que vai romancear escritores reais...
São todas personagens, mas ficcionais. O Mia Couto aparece com o seu próprio nome e eu também apareço como personagem. É uma brincadeira divertida. Quanto às outras personagens, algumas são inspiradas em figuras reais, mas são ficcionais.

Mesmo sendo ficcionais, são facilmente referenciáveis na vida real?
Algumas talvez, outras não. O interessante na literatura é que você pega uma personagem baseada numa figura real mas se ela resulta adquire vida própria, vai-se transformando, vai-se tornando cada vez mais complexa e a partir de um certo momento já é difícil dizer que ela veio dessa ou daquela pessoa.

Chega a Angola num contexto em que a transição política vai bastante adiantada. Essa transição está a corresponder a tudo quanto imaginava?
Ninguém imaginava. A verdade é que há pouco tempo vivíamos um período de estagnação, sem grande esperança de mudança. O que o presidente João Lourenço trouxe foi uma nova esperança, acho que se abriu uma janela de esperança num quotidiano muito sombrio. Por exemplo, uma coisa que claramente para mim João Lourenço trouxe foi o fim do medo entre a sociedade civil. Hoje em Angola se respira muito melhor. O medo deslocalizou-se no sentido em que aqueles que tinham medo, que era o conjunto da sociedade civil, deixou de o ter. O medo passou para o partido no poder, quem hoje vive com medo são os militantes históricos, os que ainda não sabem bem o que vai acontecer. Mas essa presidência conseguiu apaziguar o conjunto da sociedade civil. Parece que estamos a caminho de uma democracia mais sólida, mais completa, mas ainda falta muito. Por exemplo o poder local. Não podemos falar em democracia sem o poder local. E hoje, finalmente, parece que estamos a avançar para o poder local, o que é um bom sinal. E há outros desafios: despartidarizar o aparelho do Estado, conseguir que a oposição se torne mais forte e credível. A democracia passa não só por um governo sólido, mas também por uma oposição sólida, qualquer que ela seja e qualquer que seja o governo.

Há quem acredite que o combate à corrupção até às últimas consequências, doa a quem doer, carrega consigo um enorme potencial de implodir o MPLA e com isso pôr em risco a estabilidade de todo o sistema político...
Por isso é que eu disse que o medo se deslocalizou. Hoje quem tem medo não é a sociedade civil. Quem tem medo é o MPLA, o partido no poder. Dentro desse partido há muita gente que esteve ligada a práticas ilícitas de enriquecimento rápido. Essas pessoas estão assustadas. Agora, esse combate à corrupção é dentro do MPLA que tem de começar, porque foi aí que houve mais enriquecimento rápido. Toda a sociedade, no seu conjunto, tem o dever de apoiar o presidente João Lourenço, neste momento, no que diz respeito ao combate à corrupção. Aquilo que sustenta o presidente é o apoio da sociedade civil. A maior parte dos inimigos de João Lourenço não estão fora, estão dentro do seu próprio partido. É preciso apoiá-lo neste combate.

Há algum tempo deu uma entrevista em que dizia que João Lourenço como presidente de transição não teria "força para dirigir um partido tão complexo como é o MPLA". Hoje tem mais fé?
Não me lembro de ter dito isso. Mas, de qualquer forma, estamos a assistir a esse combate e João Lourenço tem revelado uma coragem política e uma capacidade de articulação que têm surpreendido. Parece-me que sim, que está a conseguir avanços e algumas situações que parecem ser um recuo, como a recente libertação de Zenu (filho de José Eduardo dos Santos), que tem estado a provocar algum debate, e a saída do país de Jean-Claude [Bastos de Morais] (o gestor do Fundo Soberano). Quando cheguei estava a ouvir a Procuradoria-Geral da República... Nem quero falar muito sobre isso porque, realmente, tenho a sensação de que não conhecemos tudo e custa-me falar de um assunto de que não temos o domínio absoluto. Em termos de perceção, houve ali um recuo. No mínimo, esta pessoa não devia ter sido autorizada a abandonar o país até que tudo ficasse devidamente esclarecido, ainda que, de um ponto de vista estritamente legal, a ação dele estivesse sustentada por contratos, evidentemente equivocados, alguém terá de responder por eles. Até acredito que ele possa não ser responsabilizado, mas...

De tudo o que foi dito sobre isso sobressai a ideia de que a sua libertação e autorização de saída do país foi o preço pago pela recuperação dos ativos do Fundo Soberano...
Até posso compreender que a primeira intenção era reaver o dinheiro. Mas onde fica a justiça aos olhos de um povo tão martirizado, a quem essa ação concretamente prejudicou, porque foram milhões de dólares retirados do país quando poderiam ser utilizados para amenizar a situação da população, que é má? Onde fica a justiça nesse processo? Esse homem sai livremente e não lhe vai acontecer nada? Como é que explicamos aos nossos filhos que há uma justiça?

Alguma vez se imaginou no papel de um agente político?
Não.

Mesmo fora do quadro partidário?
Todo o escritor, em qualquer um dos nossos países, tem a obrigação de participar em debates que têm que ver com a melhoria da sociedade. É uma obrigação, um dever de escritor. Mas também acho que um escritor que se entrega à política ativa, pior ainda partidária, acaba por diminuir a sua voz. O Mario Vargas Llosa, quando se envolveu na política ativa concorrendo à presidência do seu país, o Peru, a voz dele diminuiu. A credibilidade dele diminuiu. Em primeiro lugar sou escritor, é o que gosto de fazer, é aquilo que sei fazer. Em segundo lugar a minha voz pode ter mais influência fora do que dentro da política. O escritor pode usar os seus livros para suscitar debate e depois pode aproveitar o facto de ter voz (dar entrevistas, etc...) para participar nas grandes discussões. Quando o escritor se envolve diretamente na política a sua voz, em vez de ser ampliada, reduz-se. Você para ser político, por exemplo, tem de saber submeter-se a uma disciplina partidária. Eu não sei fazer isso, toda a minha vida fui independente. Só de me imaginar a participar em reuniões... não tenho o menor talento para isso.

Tem sido muito associado a polémicas. Pelos vistos gosta de uma boa polémica, de estar contra a corrente...
Gosto do pensamento. A democracia para mim é o confronto de ideias. E não é assumir que a minha ideia é a melhor. É assumir que de todo o confronto de ideias pode emergir uma ideia melhor.

Usa muito a história como material para os seus romances. Isso não implica alguns riscos, sobretudo quando se trata da história recente, que ainda não está sedimentada?
Uma coisa que convém esclarecer logo: o território da ficção não é o território real. A Luanda dos meus livros não é a Luanda real. O objetivo da literatura não é replicar o real, é construir outro universo. Cada escritor cria o seu próprio universo. O escritor que tem sucesso é o que consegue criar o seu próprio universo. E, se tiver muito sucesso, consegue que o seu universo se sobreponha à realidade. Por exemplo, Ilhéus e Salvador da Bahia, de Jorge Amado, não eram reais. Mas ele teve tanto sucesso com os seus livros, que essas cidades foram-se adaptando aos livros dele. É um processo inverso.

É o caso dos musseques de Luanda, que para muita gente estarão para sempre associados ao imaginário de Luandino Vieira?
O Luandino Vieira infelizmente merecia muito mais sucesso do que aquele que teve até agora. Mesmo aqui em Angola o Luandino não é tão lido. Ultimamente estava a ler o último livro dele, O Livro dos Rios, que já não é tão recente e é um livro excecional. Infelizmente ele é pouco lido, dentro e fora do país. Para você conseguir que a sua ficção se sobreponha à realidade é preciso um grande sucesso. Um bom exemplo disso é o Gabriel García Márquez. Você sabe onde existia a única Macondo antes de García Márquez escrever Cem Anos de Solidão?

Não.
Aqui em Angola, no leste. Há anos que tenho dito "um dia vou a Macondo, no leste".

Gabriel García Márquez chegou a saber da Macondo angolana?
Aparentemente não. Mas depois de escrever o seu livro Macondo ficou tão conhecida que na Colômbia criaram uma cidade chamada Macondo para responder à demanda dos leitores. É o que queria dizer: quando a sua ficção alcança um sucesso muito grande, ela passa a ser real.

O sucesso literário ocorre necessariamente em função da qualidade ou mais da máquina promocional por detrás da obra?
Acho que tem muito que ver com a própria obra. Às vezes, por muita promoção que você tenha, não alcança o sucesso. Há escritores com uma obra de grande qualidade, mas essa obra é mais difícil. Em Portugal tem o caso do António Lobo Antunes, que é um grande escritor, que nos seus primeiros livros chegou a vender cem mil exemplares. Hoje é muito difícil, os seus livros alcançam os dez mil exemplares vendidos. Como é que se explica? Acho que tem que ver com a própria dificuldade da obra do Lobo Antunes, que se foi tornando cada vez mais difícil de ler. A obra dele exige leitores muito sofisticados. A mesma coisa acontece com o Luandino Vieira, não é qualquer leitor que tem acesso à sua obra, tem de ser uma pessoa com muita leitura. A obra do Luandino no início era muito simples. Mas aqui em Angola há outras razões. A começar pelo preço do livro, que no tempo de partido único era muito barato e as pessoas compravam livros. Se calhar não os liam, mas compravam. Tudo isso tem que ver com a formação de leitores, precisamos de formar leitores.

Como é que se forma leitores?
Fazendo que as pessoas tenham acesso ao livro. Isso deve começar no ensino básico, não só formando professores mas permitindo que a escola tenha a sua biblioteca. No Brasil, antes desse descalabro absoluto com o senhor Bolsonaro, o governo Lula, que terá cometido muitos erros mas também teve muitos acertos, começou a instalar bibliotecas públicas e bibliotecas em escolas. A dada altura, o governo brasileiro era o maior comprador de livros no mundo, depois da China. Comprava livros exatamente para instalar bibliotecas em comunidades carentes, nas escolas, etc. Este é um exemplo que devemos copiar. Não se pode desenvolver um país sem a leitura, sem livros. O essencial é levar o livro às pessoas. Em Angola os livros estão caríssimos. Estão a dizer-me que o livro que vou lançar agora vai custar dez mil kwanzas (à volta de 25 euros). Quem é que vai comprar esse livro? Eu não comprava. Há uma ligação direta entre a leitura e o desenvolvimento.

Lembro-me do romance O Ano em Que Zumbi Tomou o Rio, ambientado em grande parte no Brasil. É esse livro que o fez ganhar fama nesse país?
Não sei. Essa obra é muito particular. Quando foi publicada, a sua receção no Brasil foi muito fria, porque é um livro que trata do racismo, denuncia o Brasil como um país submetido, podemos dizer assim, a um regime racista. O brasileiro não gosta disso, que venha alguém de fora dizer-lhe isso. O que aconteceu é que fui convidado para a Flip (Festival Literário de Paraty), em que tive a sorte de partilhar uma mesa com o Caetano Veloso, que tinha lido o livro, gostou muito e passou uma hora e meia a fazer grandes elogios ao livro, a declamar pedaços inteiros do livro. Quando acabou a sessão, fiquei conhecido em todo o Brasil, porque vão àquele festival jornalistas, escritores, editores, toda a gente que trabalha com o livro no Brasil. Sem o Caetano Veloso isso não teria acontecido. Mas esse não é sequer o meu livro mais vendido no Brasil. O que vendeu mais foi As Mulheres do Meu Pai, que chegou aos dez mil exemplares. Mas há livros, como O Vendedor de Passados, que têm tido edições sucessivas.

No seu caso pessoal, os brasileiros reclamam a sua obra como sendo brasileira?
Não.

E os portugueses reclamam a sua obra como sendo portuguesa?
Isso já aconteceu. Lembro-me de que o Vasco Graça Moura, num jantar em casa do Miguel Sousa Tavares, fez um grande elogio aos meus livros e dizia: "Mas você tem de se deixar disso de ser angolano, você é um autor português." Eu disse-lhe: "Sou angolano, não consigo ser outra coisa já, todos os meus livros são angolanos." A afirmação dele pode ser vista como um elogio.

Teve uma infância, adolescência e parte da juventude vividas no Huambo. Mas é curioso que isso não se projeta na sua obra...
Tem razão. Nunca usei muito diretamente a minha biografia. Mas no livro Sociedade dos Sonhadores Involuntários uma das personagens principais é do Huambo e muitas memórias dela da juventude no Huambo realmente são as minhas. Este livro tem muita coisa ligada ao Huambo.

Não li este livro.
Aliás, o livro tem dois narradores que são do Huambo, têm memórias do Huambo. É engraçado que ao Mia Couto fazem-lhe a mesma pergunta relativamente à Beira, porque ele é da Beira. Agora ele está a escrever um romance sobre a Beira, num momento em que aconteceu este desastre horrível, a Beira de que ele fala no livro não existe mais, desapareceu nas inundações.

Continua a ser jornalista?
Quando você é jornalista, continua a ser jornalista a vida inteira. Tenho saudades de exercer jornalismo. O melhor do jornalismo é descobrir pessoas. De uma certa maneira, o jornalismo ensinou-me a aproximar das pessoas, a descobrir histórias, porque sou uma pessoa tímida.

Torna-se jornalista a partir da literatura ou torna-se escritor a partir do jornalismo?
É uma boa pergunta. Acho que as duas coisas. Comecei a fazer jornalismo no jornal África, com o falecido João van Dunem, que era o meu chefe de redação, uma pessoa da qual tenho muitas saudades. Curiosamente, comecei a escrever sobre ambiente, porque eu era estudante de Silvicultura. E depois passei a escrever crítica literária. Só mais tarde comecei a fazer reportagens.

Qual é a leitura que tem do jornalismo que se vai fazendo em Angola?
O jornalismo em papel em quase todo o mundo decaiu muito. Regra geral, os jornais hoje têm menos qualidade. Nos EUA, de alguma forma, com estas coisas das notícias falsas e as novas tecnologias que ajudam a disseminar notícias falsas, uma parte do público retornou à imprensa escrita, que assegura uma certa credibilidade. No caso de Angola melhorou e isso tem que ver com as mudanças no regime. Temos em Angola jornalistas muito bons, mas também temos os muito maus, como em todo o lado.

Veja o resto da entrevista aqui

*Exclusivo Jornal de Angola/DN

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