José de Abreu: "Lido muito mal com a crítica"
Joia Rara recebeu esta segunda-feira o Emmy de Melhor Telenovela. O que é que esta trama tem para conquistar o mundo?
É uma novela muito bonita. Tem uma luz, uma fotografia, uma cenografia estupendas. A história é muito interessante, uma mistura de uma realidade brasileira muito próxima da guerra, do nazismo. E fala do comunismo. A direita no Brasil sempre colocou os comunistas como aqueles que comiam crianças. E Joia Rara mostra os comunistas como seres humanos normais, com amores, desejos, fraquezas. E há também a história paralela de uma menina que é uma reencarnação de um buda, que na realidade aconteceu em Espanha.
Após uma vida no lixo, em Avenida Brasil, regressou às novelas rodeado de luxo. É mais fácil viver de que lado?
Para mim foi bom esta divisão de fazer uma coisa oposta, de vir do lixo para o luxo. Mas é mais agradável o luxo [risos].
O que é que o Ernest tem do José?
Muito pouco. Ele tem uma postura quase de uma cegueira, não consegue ver as tonalidades do cinza, o preto e o branco. É um ser humano muito fora de moda. Tenho amigos que brincam comigo e me dizem que talvez eu fosse um Ernest Hauser de esquerda. Mas jamais seria um ditador.
Esta é uma novela de época. É mais fácil ou mais difícil de fazer do que uma atual?
Uma novela de época exige-nos muita atenção. Não podemos usar um português corriqueiro, coloquial. É quase que um português escrito. E isso é difícil, porque em 1930 não acredito que se falasse daquela forma, mas para criarmos um distanciamento de hoje, as autoras já escrevem uma novela de época com um português mais castiço, mais elaborado. Acho que isso facilita. Quando fazemos uma novela atual, quase não representamos. A Globo inventou uma quase não representação. Sofri muito por isso. Pediam-me para ser menos teatral, mais cool, usar menos gestos. Em Avenida Brasil soltaram-me.
Apesar de já ter terminado há dois anos, ainda hoje se fala dessa novela. Porque é que foi um marco para a ficção?
O autor, João Emanuel Carneiro, conseguiu perceber a mudança que Lula [da Silva] fez no Brasil. A novela refletiu o Brasil pós Lula. A Globo não o irá dizer, mas ele realmente pegou na história. Antigamente um homem como o Tufão ganhava dinheiro, saía do seu bairro e ia morar para o Leblon, Copacabana. A cabeleireira que sai da classe baixa e passa para a classe média não quer ir para Copacabana, com todo o seu conforto, mas ficar no seu bairro. O autor é muito culto. Sabe escrever muito bem sobre o povo.
Há uma era pré e pós Avenida Brasil?
A verdade é que criou um problema sério à Globo, de conseguir fazer uma trama que mobilize tanto o povo como esta fez.
Acha que isso vai ser possível?
Espera-se que sim, principalmente na nova novela do João Emanuel, Favela Chique. Não sei de nada, mas vou participar. Sei que vou fazer um papel bom, porque me deram a opção de escolher se queria ser mau ou bom e eu escolhi o bom [gargalhada].
Quem vai participar nesta novela vai sempre sentir uma pressão de fazer melhor do que Avenida Brasil?
Não. O autor e a Amora Maunter [diretora de núcleo] estão a reunir-se há já muito tempo. Ela vem com muitas novidades. Já me disse para me preparar porque vamos fazer alguma coisa diferente.
O Nilo mudou a forma como o público olha para si?
Sem dúvida. Achava que não havia nada de novo para acontecer na minha vida, mas ele aumentou o meu status, colocou-me num panteão de atores em que nunca tinha pensado que poderia estar. O mais importante foi um diretor da Globo, meu amigo há 40 anos, dizer-me que eu era bom ator e que até se tinha esquecido disso [sorri].
Recentemente participou em O Rebu, uma novela curta.
A meu ver houve um erro estratégico de pôr O Rebu na mesma condição de O Astro, Gabriela. A linguagem é muito mais de série e ficou um pouco longa de mais.
Mas é um exemplo de como poderão ser as novelas no futuro?
Talvez. A verdade é que está tudo a mudar muito rapidamente. Já não se vê novelas apenas no televisor. Hoje em dia os autores têm um feedback através das redes sociais. É onde o público está, fala na primeira pessoa, enquanto está a ver a novela. É uma informação que os autores e atores têm e que nunca tiveram. As audiências são uma coisa completamente ultrapassada, que já não refletem a realidade. Sinto isso na rua.
Mas é difícil trabalhar sobre a pressão dos números?
Nós, atores, não ganhamos em medida com as audiências. O autor e o diretor é que ganham. Mas as audiências são uma massagem no ego. E acho que têm de mudar. Vão começar agora a incluir os resultados da internet. Veja o caso do Netflix, do streaming, em que se pode ver todos os episódios que quiser. A Globo já fez algo do género, o Gshow, que é um caminho para que comece a disponibilizar as coisas de uma forma diferente. A Globo pode vir a ser uma Netflix muito maior. Tem imensos trabalhos só produzidas por ela. Não sei como o poderão fazer. Hoje a faturação da Globo é enorme. E é uma grande produtora, muito mais do que uma emissora.
Tem se destacado ao longo dos últimos anos com personagens mais secundárias. Até que ponto o "tamanho" de uma personagem é importante para um ator?
Só a questão do ego. Avenida Brasil foi o exemplo claro de uma personagem secundária que era melhor do que as principais.
Mas um protagonista dá um gosto maior?
No início da carreira, sim. Hoje, com 30 anos de Globo, tanto me faz. Mas não encaro uma personagem como mais uma. Cada uma delas acrescenta-me muito.
Para Joia Rara, pela primeira vez em 34 anos de carreira, submeteu-se a um casting. Porque decidiu fazê-lo?
Achei que seria muito importante para mim fazer esta personagem.
Não teve receio de não passar no teste?
Não. Fui com a certeza absoluta de que ia dar vida a esta personagem. Terminei o teste e olhei para a diretora e disse que ia ficar com o papel. Ela disse-me que tinha de mostrar às autoras e ainda demorou uns quinze dias. E foi muito engraçado, porque uma delas, quando lhe ligaram e disseram que o José de Abreu queria fazer o teste, disse que não, porque não tinha nada que ver com o tipo físico que tinha idealizado para a personagem, mas depois disse-me que quando lhe falaram de mim pensou no José Mayer [risos], por isso é que tinha torcido o nariz.
Ainda tem algum a coisa a provar?
Não. Absolutamente. Nem nunca me preocupei com isso. Não é do meu feitio provar a alguém o que posso ou não posso.
Como lida com a crítica?
Mal, muito mal. O trabalho de um artista é um filho. E nenhum artista gosta de que se fale mal do seu filho. Podemos ignorar a crítica, mas aceitar... A verdade é que sempre foram muito bons comigo.
E mesmo assim lida mal com isso?
É uma contradição. É preciso pensar quantas vezes a crítica disse mal do meu trabalho. Quando fiz Desejos de Mulher, em 2002, disseram que a novela não podia ser um sucesso porque tinha o José de Abreu como protagonista. E isso acabou comigo. Esse jornalista não gostava de mim [risos].
Como descobriu que queria ser ator?
Andava na faculdade de Direito. Vinha do Interior, nunca tinha visto uma peça de teatro, e um amigo levou-me com ele a ver um ensaio e nunca mais parei. Comecei como produtor, um dia faltou um ator num exercício de expressão corporal, entrei só para fazer par e a professora percebeu que eu tinha jeito para a coisa.
Foi fácil para si triunfar?
Foi. Acho que Deus é meu amigo. Sempre fui muito "mão aberta", nunca consegui juntar dinheiro. Nunca tive um apartamento próprio. Sou talvez uma mistura de esquerdista com hippie. Como arroz integral desde 1972. Isto diz muito. Há 42 anos que faço uma alimentação consciente. Claro que chego a Portugal e caio em tentação. A vida sorriu-me de uma maneira muito bonita.
Mas ouviu muitos "nãos"?
Não. Talvez tenha sido uma sorte. Mas também não desisto. Não teria o menor pudor em pedir um papel a um diretor de televisão. E isso acontece também ao nível da produção de teatro. Se quero fazer uma peça corro atrás e faço-o. Um dia chateei-me com a Globo, saí, fui fazer teatro e fiquei um ano sem fazer nenhum projeto. Hoje seria impossível, porque o status do artista brasileiro mudou nos últimos dez anos.
De que forma?
O salário aumentou muito. Aumentou tudo. O Brasil mudou e a Globo também. Pensando no que eu e todos os meus colegas na Globo ganhávamos há dez anos, mudou muito, assim como o faturamento da empresa. E eles não são desonestos em relação a isso.
Hoje é mais fácil ser ator do que quando começou?
É completamente diferente. Na minha época, a carreira de ator era de sacrifício. Primeiro queríamos ser atores de teatro, televisão e cinema era uma possibilidade remota. Hoje os atores querem ser atores da Globo. Ao ponto de um ator dizer que não gosta de ler. A primeira coisa do trabalho de um ator é ler. Mas há muita gente com talento. Nunca tirei cursos de teatro. Sou ator pelo meu talento, pela educação ou pela cultura. Mas temos de aprender a ler. Se não sabemos ler, não sabemos falar. É verdade que ao início o instinto, a beleza funciona, mas a repetição... há uma altura em que se tem de ter técnica.
Hoje há menos sacrifícios e mais charme em torno desta profissão?
Sem dúvida. Não sei se charme pela essência da indústria televisiva. A televisão tira mais do que dá, em termos artísticos. O teatro é onde carregamos as baterias. Mas algo que estou a aprender é que podemos dar a volta, é possível fazer televisão e recarregar a bateria. Sentia-me inseguro no início da carreira a fazer teatro. A mesma insegurança, o mesmo desejo de chegar ao objetivo, mas muito inseguro, o que é bom para um ator.
Nunca se sentiu seguro?
Muitas vezes, mas não faço um bom trabalho. A insegurança dá-nos a dúvida. Nada em arte é certo.
Hoje há muitos atores deslumbrados com esta profissão?
Entram para ser atores de televisão, mas não são deslumbrados. Existe muita competição. É muito difícil para um ator jovem manter-se se não for bom. Pense no Cauã Reymond, no Bruno Gagliasso... São atores muito bons. Estudam muito. Vi o Cauã a chorar porque não conseguiu fazer bem uma cena e o diretor não quis repetir por falta de tempo.
Diz-se que um ator não se reforma. Quer sê-lo até ao fim dos seus dias?
Claro. Quero morrer num palco.
É muito ligado à política. De que forma é que isso o influenciou enquanto ator?
O grupo de teatro em que me iniciei era um grupo de teatro político. Foi feito para arrecadar dinheiro, para combater a ditadura. O meu início foi misturar arte com política. A política está comigo desde que comecei.
Consegue separar a sua vida da política?
Consigo. Já separei durante muitos anos.
Alguma vez sentiu que manifestar as suas opiniões políticas o prejudicou?
Nunca. A Globo não liga a isso.
Adora novas tecnologias. De onde vem esse fascínio?
Quando era criança desmontava relógios, brinquedos eletrónicos. Aos 50 anos percebi que ia acontecer uma revolução tecnológica com o computador pessoal. Comprei um portátil. Cheguei a recuperar computadores de amigos. O José Mayer chamava-me de José Windows em História de Amor.
De que forma é que a perda do seu pai aos nove anos moldou a sua personalidade?
No me dei conta do que era a morte. Não tinha noção. Fui criado por três mulheres, uma mãe e duas irmãs e sei da importância que isso teve para mim. Mas no momento, não pensei nisso.
Não fez o seu luto.
Era muito novo. Não realizei a morte do meu pai. Foi algo que fui resolvendo ao longo do tempo.
Foi fácil para si crescer sem essa figura?
Ele já trabalhava fora quando nasci. Não era uma figura muito presente na minha vida. E um pai naquela época não fazia nada a um filho. No máximo dava um beijo de boa-noite. A mãe é que tratava de tudo.
Passou por dificuldades ao longo da sua infância?
Após a morte do meu pai, a minha mãe ficou sem dinheiro. Não sabia onde é que ele tinha as contas. Alugou um apartamento grande e fez uma pensão. E foi muito difícil. Dormia com quatro amigos num beliche e a minha mãe era muito rígida.
Mas foi uma infância feliz?
Foi. Morava praticamente na quinta do meu avô. Andava a cavalo, subia árvores. Foi tudo importante para ser quem sou hoje.
No ano passado deu que falar ao assumir ser bissexual no Twitter.
Não podia dizer que era negro, nem pobre, nem prostituto, nem índio, que ninguém ia acreditar. A única coisa em que podiam acreditar é que era gay, para sentirem a pressão de fazer parte de uma minoria.
Por que o fez?
Para criar um facto novo para discutir de uma forma diferente a homossexualidade. Imagine eu, pai de cinco filhos, com quatro netos... Tudo isto criou uma polémica absurda no Brasil. Mas para mim foi ótimo. A minha mulher não gostou muito, mas os meus filhos não se chatearam. Se fosse verdade, não haveria problema nenhum.
Tem 68 anos. O que ainda lhe falta fazer?
Gostava de dar a volta ao mundo [sorri].
É fácil ser o José de Abreu?
Para mim, é. Para os outros deve ser difícil. Tenho muita sorte na vida. Consigo, por vezes, não sempre, vibrar com o universo. E o universo conspira a favor de quem vibra com ele. Acho que sou um cara bom. Acredito na lei do retorno. Acho que se fizer mal vou pagar por isso, se fizer o bem vou ter uma vantagem. Sinto-me bem a fazer o bem. Dá-me um retorno imediato. O mal não me dá retorno nenhum.