Jornalismo do cidadão. "Estamos a arriscar as nossas vidas"
"O Estado Islâmico [ISIS] está a tentar separar a cidade de Raqqa do resto do mundo". "O ISIS organiza festas em mesquitas e praças públicas para fazer uma lavagem cerebral às crianças aí presentes". "A água na província de Raqqa não é potável". Estas são algumas das afirmações que se podem ler em notícias veiculadas por cidadãos sírios e publicadas online - num site e nas redes sociais - pela Raqqa is Being Slaughtered Silently? (Raqqa está a ser silenciosamente massacrada, em tradução livre).
O único objetivo desta organização é mostrar a realidade da cidade que o grupo jihadista decretou como sua capital em meados do ano passado. Mas, para isso, arriscam as suas próprias vidas e as daqueles que os rodeiam. Em declarações à BBC, um dos elementos da RBSS - galardoada, este mês em Nova Iorque, pelo Comitê para a Proteção dos Jornalistas (CPJ) com o prémio Internacional de Liberdade de Imprensa - deixou-se filmar e explicou como atuam e tentam passar informações. "Temos uma equipa de 18 repórteres que trabalham na cidade [de Raqqa] e mais dez pessoas em outras localidades. A equipa em Raqqa envia notícias, vídeos e fotografias, que são imediatamente apagadas dos seus aparelhos [telemóveis]. A equipa que está fora da Síria publica-as [online], faz entrevistas, escreve os artigos", começou por contar o jovem de 24 anos e um dos fundadores da RBSS.
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Sem nunca revelar o seu nome - mas mostrando a sua cara para a câmara da estação britânica de televisão -, este sírio contou que outra forma de fazer chegar notícias aos restantes cidadãos passa pela edição de uma revista em Raqqa cujo nome - Dabea - se assemelha ao da publicação mensal do Estado Islâmico - Dabiq, onde o grupo terrorista manifesta, em edições em inglês e em francês, as suas intenções e dá conta das suas ações na Síria e no resto do mundo. "As capas são iguais. Por isso, civis ou mesmo militantes do Estado Islâmico agarram a revista sem perceberem de qual se trata. Todos eles acabam por ver os nossos artigos, nos quais explicamos a situação que se vive na cidade, a verdadeira realidade", apontou.
Arriscar a vida pela verdade
"A Síria tornou-se um buraco negro de informação", afirmou o CPJ no verão passado. Já a organização Repórteres sem Fronteiras (RSF) colocou-a em 177.º lugar (em 180) na lista dos países com maior (ou menor) liberdade de expressão em 2015, apenas seguida do Turquemenistão, da Coreia do Norte e da Eritreia. Num país onde só neste ano já morreram seis jornalistas "apenas por causa desta atividade", avançam ainda a RSF, ser repórter representa um risco de vida.
O jovem sírio de 24 anos que falou com a BBC e contou alguns dos episódios por que a RBSS passou em nome da liberdade de expressão. "Um dos nossos fundadores viu o seu pai ser sequestrado pelos militantes do ISIS, que prometeram libertá-lo se em troca lhe entregássemos três dos nossos repórteres. Ele recusou-se e recebeu dois vídeos em que mostravam o pai a ser amarrado a uma árvore e a ser depois executado", contou. Cientes dos riscos mas determinados a combater o terrorismo através da informação, adiantam também que a RBSS não vai parar. "Decidimos continuar a trabalhar, apesar de o Estado Islâmico passar o tempo à procura dos nossos repórteres. Como não conseguiram encontrar ninguém, enviaram um militante para a Turquia, onde decapitaram dois dos nossos amigos. Um deles trabalhava connosco. Até na Turquia... Pensávamos que aqui estaríamos seguros, mas não estamos", prosseguiu, explicando que "o inimigo" da sua organização não é o ISIS. "Estamos a lutar contra a ideologia do extremismo. Se conseguíssemos derrotar o Estado Islâmico amanhã ou depois o problema voltaria a surgir com uma nova geração. Talvez passados dez anos surgisse um novo Estado Islâmico. Por isso é que estamos a lutar contra a ideologia. E como não temos armas combatemos online." Ao todo, a RBSS é seguida por quase 700 mil pessoas (entre Facebook, Twitter e YouTube), além das que acedem ao site raqqa-sl.com, onde as reportagens são disponibilizadas em árabe e inglês.
Os sírios não são todos ISIS
Ter nascido e sido criado na Síria, professar a fé muçulmana e simultaneamente contar o que se passa em Raqqa, a sexta maior cidade do país, não é bem-visto pelo Estado Islâmico. Mas, diz o fundador da RBSS, pelos europeus e norte--americanos também não. "Pensam que todos os sírios são do ISIS. Nós estamos a arriscar as nossas vidas para combater essa ideologia e depois pensam que todos somos do EI. O ISIS olha para nós como infiéis. Por isso, às vezes é divertido ouvir os dois lados", desabafou, terminando com uma mensagem sobre os refugiados: "Se querem acabar com essa crise, têm primeiro de acabar com a guerra na Síria. Se não fizerem isso, têm de abrir as fronteiras, porque nós somos seres humanos".