Jorge Miranda: "Sou chamado pai da Constituição e é uma coisa que repudio"
"Eu passei os 80 anos e achei que devia dar um certo testemunho da minha experiência de vida, quer do tempo do regime ditatorial, quer depois do 25 de Abril", fundamentou ao DN o professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Jorge Miranda, a propósito da sua autobiografia, editada pela Almedina no mês passado sob o título Passos da Vida, Passos da Constituição.
As cerca de 180 páginas resumem vários percursos de uma vida marcada por uma admiração académica por Marcello Caetano, enquanto professor de Direito, e um distanciamento inevitável face ao mesmo homem na qualidade de político. "O melhor professor que eu tive, sem dúvida, mas como político foi um desastre", remata. Para reconstituir a sua proximidade com o governante que sucedeu a António de Oliveira Salazar como Presidente do Conselho, em 1968, Jorge Miranda fala do seu arguente na dissertação de licenciatura e conta uma história. "Um episódio, que julgo que está aí no livro, de [Marcello Caetano] me ter convidado para secretário. Eu tinha jantado fora, cheguei à casa dos meus pais e foi-me dito que Marcello telefonou. " Vai lá à casa dele às nove da manhã"", sugeriram a Jorge Miranda, que já previa que o chefe do Governo iria convidá-lo para um cargo de secretário. "Fui. E passei uma noite agitadíssima. Como é que eu ia justificar não aceitar? Não podia aceitar", afirmou. E não aceitou. "Realmente, eu tenho uma grande admiração por ele como professor", conclui, apesar do abismo ideológico que o separa do sucessor de Salazar.
A contracapa do livro revela a missiva consequente de quem se dedicou ao ensino e à democracia: "trata-se de uma espécie de autobiografia de alguém que enveredou pela vida académica e com os estudos centrados no campo de Direito Constitucional ainda antes de 1974, e com maior relevo na participação na Assembleia Constituinte, na Comissão Constitucional e em muitos encontros e obras doutrinais dentro e fora de Portugal". O livro conta a história de Jorge Miranda, até este momento, enquanto filho, aluno, pai, irmão, marido, avô, professor, colega, deputado, cidadão. Durante a entrevista, Jorge Miranda surpreendeu-se por não ter sido questionado sobre o epíteto que lhe é atribuído enquanto progenitor da lei fundamental que serve de enquadramento à democracia portuguesa. "Por vezes, eu sou chamado pai da Constituição e é uma coisa que eu repudio sempre", afirmou, vincando que o "pai da Constituição é a Assembleia Constituinte. Eu tive uma intervenção que acho que foi importante na Assembleia Constituinte, mas outras pessoas também tiveram uma intervenção importante", garante. "Posso citar Vital Moreira. Posso citar Carlos Laje, José Luís Nunes, António Barroso de Melo, Carlos Mota Pinto, Diogo Freitas do Amaral", elenca o professor.
"O CDS cometeu o grave erro de votar contra a Constituição", explica. "Sá Carneiro, no caso do PPD, ainda chegou a defender a abstenção, mas não fazia sentido. A Constituição tinha sido construída num momento difícil do país em que havia tendências radicais extremistas. Há outro livro meu, especificamente sobre a Constituinte que se chama Da Revolução Constitucional, em que eu falo no verão quente e no outono escaldante. Nessas condições extremamente difíceis é que a Assembleia Constituinte fez a Constituição", lembra o professor.
Para contextualizar, a Assembleia Constituinte foi o primeiro Parlamento eleito em Portugal por sufrágio universal e livre, no dia 25 de abril de 1975, um ano depois da Revolução dos Cravos. Só a 2 de junho de 1975 é que aconteceria a primeira sessão plenária e só 10 meses depois de arrancar a Assembleia Constituinte é que foi aprovada a Constituição da República Portuguesa, a 2 de abril de 1976. Entretanto, já sofreu sete revisões.
Em relação à oitava revisão constitucional, cujo processo foi iniciado em outubro de 2022, proposto pelo Chega, com a atual crise política, com a demissão do primeiro-ministro, António Costa, e com a Assembleia da República com uma dissolução marcada para depois de dia 29 de novembro - data da votação final global do Orçamento do Estado - terá de ser reiniciada na legislatura que sair das eleições marcadas pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para dia 10 de março de 2024.
É "um acontecimento de que as pessoas agora não se lembram", diz Jorge Miranda sobre todos os processos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974 até à aprovação da Constituição. "E também sem esquecer o 25 de Novembro", destaca o antigo deputado à Assembleia Constituinte, sobre o momento no ano de 1975 em que um movimento militar liderado por Ramalho Eanes pôs fim ao processo revolucionário em curso (PREC). "Há algo que eu não percebo: haver pessoas que não querem comemorar o 25 de Novembro, quando o 25 de Novembro foi decisivo para pôr fim a essa agitação toda, para deixar a Assembleia Constitucional calmamente acabar a obra constitucional", frisa Jorge Miranda. "Portanto, acho que a Assembleia Constituinte merece mais atenção do que aquela que por vezes lhe é dada. Faz muito bem festejar 50 anos do 25 de abril, mas 50 anos da Constituição vamos ver como vai ser", propõe o constitucionalista. "E não digo que a Constituição fosse perfeita. Não era. Tanto é que houve revisões constitucionais que a aperfeiçoaram. E ainda pode ser mais aperfeiçoada. Mas foi a base. Foi a base", insiste.
É de notar que a biografia de Jorge Miranda, que chegou há um mês aos escaparates, é dividida em duas partes: a primeira centrada na família, nos amigos, nas viagens, na academia, no ensino, nos desafios; a segunda, surge como uma homenagem à Constituição, que convoca por si só vários pilares da democracia portuguesa.
"Eu acho que a democracia portuguesa não está propriamente em risco", garante Jorge Miranda, notando porém, que "há, evidentemente, um partido que se situa na extrema-direita e que apresenta um projeto de revisão constitucional que, em vários pontos, briga com fundamentos básicos de um Estado de direito". Ainda assim, apesar de apontar "o grande risco de o Chega ter uma votação relativamente grande, superior à que teve nas outras eleições", Jorge Miranda vê como positivos os abanões que a democracia possa vir a sofrer. "A democracia também tem de correr riscos. Não se pode deixar de admitir qualquer partido, a não ser que seja um partido que seja militarista. Agora, não é o caso. Portanto, tem de haver tolerância, mas, ao mesmo tempo, coerência democrática. Tem de haver a conjugação das duas coisas, o que é difícil, mas é indispensável. Os democratas têm de ser coerentes, mas, sendo coerentes, têm de ser tolerantes", conclui.
Ainda que seja sólida, a democracia em Portugal enfrenta outros desafios que, de acordo com Jorge Miranda, têm uma origem externa. "Não é no plano político que poderá haver maiores riscos. Eventualmente, eles vêm de fora, da situação internacional, que está muito confusa. Guerra na Ucrânia, guerra na Palestina, uma paralisia quase total da União Europeia. Os Estados Unidos também em risco de ter novamente [Donald] Trump presidente", aponta o professor, preocupado. "Para os republicanos dos Estados Unidos, Trump continua a ser o mais estimado. E a situação internacional é que é um grave risco para a democracia portuguesa, tal como para a democracia de outros países", antevê.
Com um olhar sobre "a primeira-ministra da extrema-direita" italiana, Georgia Meloni, Jorge Miranda diz que em "Itália as coisas são diferentes de outros países. A Itália tem uma mentalidade que não se pode comparar à mentalidade de outros países. Não é a mesma coisa a Itália ou a Hungria. Tem havido movimentos populistas, movimentos radicais, que põem em causa os princípios da democracia, mas não julgo que seja isso o mais grave", acrescenta. "O mais grave é a paralisia internacional, a situação de conflito em que agora nos encontramos. A China também a intervir, ou a querer intervir. Portanto, aí é que a situação me parece mais grave. Não propriamente a nível interno português, onde o que pode ser mais grave é a situação económica. Mas, também, não foi por acaso que o Presidente da República, muito bem, deixou aprovar o orçamento. Deixou fazer a dissolução só da Assembleia da República depois da aprovação do orçamento", explica, classificando a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa como "um gesto patriótico, tendo em conta o risco enorme que seria entrarmos em 2024 sem orçamento. Ou então aplicando o orçamento de 2023 por duodécimos", observa o professor.
Foi aluno de Marcello Caetano e sempre defendeu a democracia, por influência do pai e pelo "ambiente da faculdade", lembra. Com o 25 de Abril, sublinha, "uma das coisas de que nos podemos orgulhar é termos restabelecido ou estabelecido, com os novos Estados africanos, relações cordiais de amizade e de cooperação. Ninguém esperaria isso", refere o professor sobre os países que configuraram aquilo que ficou conhecido como colónias ultramarinas. "Nós temos melhores relações com Angola e Cabo Verde do que têm os ingleses com as antigas colónias britânicas ou os franceses", considera. Sobre o facto de ter havido territórios considerados colónias, Jorge Miranda adianta "que desde muito jovem" se convenceu "de que não era possível manter o chamado ultramar. O caminho natural era a independência da Guiné, Angola, Moçambique. Quanto a Cabo Verde, poder-se-ia encontrar uma solução semelhante à que os Estados Unidos têm com Porto Rico ou até eventualmente uma situação de região autónoma. Cabo Verde poderia ser uma região autónoma se não tivesse havido as guerras", propõe. "Mas de todo modo, a independência do Cabo Verde também foi conseguida em paz. Tenho ido várias vezes ao Cabo Verde e uma das coisas que me impressionou foi a visita ao campo de concentração do Tarrafal, para onde eram enviados opositores ao regime de Salazar e era uma coisa absolutamente horrível. Horrível. Portanto, muitas pessoas não têm consciência do que era aquele regime", vinca.
Questionado sobre se a educação, em sentido lato, é determinante para a democracia, o constitucionalista não tem dúvidas. "É evidente", diz. "Mas há outro fenómeno que eu tenho criticado há muito tempo, que é o domínio do futebol, que ocupa agora um espaço terrível nas televisões. Ainda ontem [no dia anterior a esta entrevista], no dia em que o Presidente da República tomou uma decisão importantíssima [a dissolução da Assembleia da República], os canais de televisão não deixaram de também meter o futebol. Quais são os canais de televisão que no horário nobre falam em educação, em cultura, em ambiente", questiona, apontando que "muitas vezes o que fazem é transmitir jogos de futebol em Portugal e até às vezes no estrangeiro. Isso é que é anti-educativo. As televisões deveriam contribuir para a educação cívica das pessoas, com programas culturais. E não transmitem. Só a Antena 2 é que tem aí preocupações. No resto, não. No resto domina o futebol", critica.
O preâmbulo da Constituição diz que "a Assembleia Constituinte afirma a decisão do povo português [...] de assegurar o primado do Estado de Direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista". Para Jorge Miranda, "quando uma norma não tem qualquer aplicação, quando ninguém a invoca, quando as pessoas sentem que a situação mudou, pode dizer-se que caducou. Eu acho que, de resto, nunca deveria ter constado do preâmbulo da Constituição, porque o preâmbulo da Constituição deve ser aberto a todas as correntes políticas. E falar em sociedade socialista é já estabelecer uma meta que se quer alcançar e que não pode ser definida, a priori, através de um texto constitucional. Tem de ser definida através da vontade do povo", conclui.
Passos da Vida, Passos da Constituição - Uma Autobiografia
Jorge Miranda
Almedina
175 páginas
20,61 €