Jorge Lacão: "Quero acreditar que o PS saberá fugir ao risco do autoritarismo"
Como é que foi parar ao PS?
Foi uma adesão precoce, logo imediatamente a seguir ao 25 de Abril de 1974. Estava no primeiro ano da Faculdade de Direito, em Coimbra, mas as minhas ligações já eram profundamente feitas com Abrantes, de onde tinha vindo. Tinha, na época, a ambição de seguir a carreira universitária. Aliás, comecei o curso de Direito com a melhor média do curso, mas a atividade política representou um apelo mais forte. Esse apelo intensificou-se e passei a militar no PS, primeiro em Abrantes e também em Coimbra e depois a nível distrital, em Santarém. Houve, lembro-me, um comício no concelho da Barquinha em que participou Mário Soares e Olof Palme e tive a oportunidade de intervir nesse comício em representação dos jovens. Digamos que a partir daí fiquei debaixo de olho e, depois de algum tempo, acabei por ser convidado para vir chefiar o gabinete de imprensa do PS em Lisboa.
Quanto tempo é que lá esteve?
Alguns anos. Entrei precisamente na altura em que ocorria uma experiência efémera de governo entre o PS e o CDS, já tudo aconteceu na vida democrática portuguesa [risos]. Mas algum tempo depois fui chamado para cumprir um ano e meio de serviço militar obrigatório, que cumpri. Não tinha sido recrutado para a guerra porque estava em adiamento militar por força da carreira universitária.
E depois regressa à vida política.
As circunstâncias levaram-me a ser candidato a deputado pelo PS, o que ocorreu em 1983, data a partir da qual passei, ininterruptamente até agora, a exercer funções políticas. A maior parte do tempo como deputado da Assembleia da República e durante cerca de seis ou sete anos como membro do governo. Primeiro, como secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e depois como ministro dos Assuntos Parlamentares.
E como é que foi essa entrada em 1983?
Foi uma experiência exaltante, tinha 29 anos na altura. Como disse na minha intervenção de despedida no plenário da Assembleia, transportando comigo todos os sonhos do mundo e profundamente empenhado em contribuir para a mudança das condições de vida da nossa sociedade.
E como foi ser chefe de gabinete de Mário Soares?
Foi uma experiência de vida, como pode imaginar. Mário Soares nunca se deixou contaminar pela sedução do poder e conseguiu sempre manter um grande distanciamento relativamente a esse apelo, que transforma muitas vezes a natureza das pessoas. E essa foi uma das grandes aprendizagens que tive com ele: nunca me deixar seduzir pelo lado faustoso que o poder muitas vezes implica. Tive com ele uma relação muito estreita. Foi a figura mais transcendente da vida política portuguesa desde o 25 de Abril.
Lembra-se do seu primeiro dia como deputado?
Já tinha entrado aqui no exercício de outras funções. Existiam, à época, umas instituições chamadas conselhos de informação, que procuravam manter um acompanhamento das garantias de independência e pluralismo dos órgãos de comunicação social. Para lhe dar uma ideia, que é hoje uma visão caricatural daquilo que acontecia, a lógica partidária na relação com os meios de comunicação social era ainda de tal ordem que, por exemplo, a transmissão televisiva de debates na Assembleia da República implicava que os representantes dos partidos esgrimissem entre si a seleção dos conteúdos que deveriam ser emitidos, de acordo com a distribuição de tempo a que cada um tinha direito, de acordo com uma certa lógica de proporcionalidade. Estas formas de exprimir o pluralismo democrático, que são hoje em dia completamente inaceitáveis, revelam como tivemos de fazer um trajeto muito grande para chegar a uma democracia estável e madura como aquela que, felizmente, vamos tendo agora.
E lembra-se da sua primeira intervenção no plenário?
Não sei se sou capaz de dizer, mas há algumas que são eivadas de alguma caricatura. Em certo momento acontecia uma interpelação a um membro do governo que era o ministro da Educação. Era, na altura, o José Augusto Seabra, do PSD, porque estávamos em coligação de bloco central. E as coisas não estavam a correr bem na lógica do ministro, porque estava a ser objeto de algumas críticas significativas, até da própria bancada do PS. E o ministro teve um momento de crise e informa o primeiro-ministro, a partir do Parlamento, que se ia demitir por falta de solidariedade no interior da coligação. Eu nessa altura nem sequer estava a acompanhar o plenário, mas recebo um telefonema do primeiro-ministro, Mário Soares, bastante incomodado com o que se estava a passar e a dizer-me que resolvêssemos o problema. Soares não queria que o homem se demitisse numa circunstância daquelas. Então lá tive de ir fazer um discurso de improviso para recompor um clima de coesão no interior do entendimento PS-PSD. Não me devo ter desenvencilhado mal nesse momento, porque aquilo de que me recordo é de ter acabado a intervenção e ver o ministro a sair da bancada do governo e, enquanto eu descia as escadas da tribuna, ele subia as escadas de braços no ar a dizer: "O senhor deputado é um patriota, acabou de salvar o governo."
E houve algum momento em que se arrependeu?
Porventura momentos de calor parlamentar em que há sempre algum momento em que pode haver um excesso. Mas tenho a consciência de ter sido sempre suficientemente cordato no debate parlamentar. Sempre evitei ter argumentos de invetiva natureza pessoal em relação aos meus adversários. Acho que não tenho nenhum momento em que tenha motivos para me arrepender ou envergonhar.
O que é que mudou no Parlamento e lhe desagrada?
Tínhamos, nos anos 80, provavelmente um excesso que alimentava a retórica parlamentar às vezes até ao limite dos limites, sessões intermináveis. Em períodos de debate orçamental, saímos daqui às sete ou às oito da manhã muitas vezes. Para os mais variados temas era impossível esgotar os debates num dia, às vezes nem numa semana, e isso tinha o seu lado excessivo. Em contrapartida, hoje temos uma situação que se alterou em 180 graus. Ou seja, passou-se a restringir de tal maneira os tempos de intervenção parlamentar em plenário que, em boa parte dos casos, aquilo a que assistimos são intervenções sucessivas dos vários grupos parlamentares para cada ponto que está na agenda, com manifesto prejuízo do contraditório e do esclarecimento popular sobre o mérito - maior ou menor - das matérias que estão em apreciação. Cada grupo parlamentar tem a oportunidade para exprimir a sua bandeira, arvorar a sua razão, para passar depois à bandeira do outro e à razão do outro, sem que pelo intermédio se possa fazer um verdadeiro debate sobre os temas. E muitos dos temas que nos últimos anos têm vindo à agenda parlamentar são, muitas vezes, irrisórios e estão longe de corresponder às prioridades e necessidades do país.
Fala do governar a partir do Parlamento?
É uma pretensão que nos últimos anos se procurou instalar, criar um sistema de governo de Assembleia. Falo das resoluções, das quais o Diário da República está cheio, que não têm efeito vinculativo e, por isso mesmo, não passavam de simples recomendações. Mas, muitas vezes, eram noticiadas de forma acrítica pelos meios de comunicação social como "a Assembleia da República aprovou isto ou aquilo", criando muitas vezes na opinião pública a expectativa de que essas modalidades de aprovação tivessem natureza vinculativa e, portanto, viessem a ser concretizadas. Nada disso é realmente assim e, não sendo, a Assembleia da República, no meu critério - e fui chamando ao longo dos anos várias vezes à atenção sobre esse lado crítico da situação -, malbaratava, e de que maneira, os seus próprios tempos.
As maiorias absolutas travam essa disputa?
Também é consequência de não haver uma maioria estabilizada no Parlamento. O novo ciclo vai trazer-nos uma maioria absoluta, que é muito criticada pelos seus riscos de autoritarismo, mas quero acreditar que o PS saberá fugir ao risco do autoritarismo. E tanto no plenário como nas comissões, porque não escondo nesta minha apreciação mais crítica de alguns aspetos que funcionam menos bem: a qualidade do processo legislativo tem vindo a deixar muito a desejar.
Porque é que disse "quero acreditar" e não disse "eu acredito"?
Quero acreditar porque isto depende da vontade de muitos. Depende da vontade do partido que vai tornar-se maioritário na próxima legislatura, mas depende também da compreensão que os outros partidos tenham para o modo como selecionam as matérias que devem ser objeto de apreciação parlamentar. É, portanto, e mais uma vez, a conjugação de um sentido de maior exigência política que está em causa.
E já viveu momentos que o fizeram quase perder a cabeça.
Estive algumas vezes perto disso. Talvez, e para ser totalmente honesto, o sentido de derrota política mais sério que posso guardar foi o que esteve ligado ao processo de regionalização que culminou, como sabemos, no referendo em que o modelo e proposta de regionalização foram rejeitadas. Muitas vezes interrogo-me se o processo [caiu a proposta da decisão ser parlamentar] poderia ter sido conduzido de outra maneira e, se o resultado pudesse ter sido outro, se hoje não teríamos um país mais coeso entre o litoral e o interior, se a sustentabilidade e desenvolvimento de todo o território nacional não estariam mais assegurados. Acredito que sim, acredito que estaria, mas as coisas são como são. Creio que foi uma oportunidade perdida.
Sentiu-se pessoalmente enganado durante esse processo?
Senti que vários fatores que poderiam ter sido incrementados na sociedade portuguesa na década de 90 foram prejudicados pela impossibilidade de um entendimento entre as duas forças maioritárias [PS e PSD], e dei-lhe o exemplo da regionalização. Mas poderia dar outros: a possibilidade da reforma do sistema eleitoral para a Assembleia da República, a possibilidade de reforma do sistema de governo das autarquias locais, a possibilidade da disponibilização da intervenção voluntária da gravidez mais cedo, a possibilidade de ter a introdução, mais cedo, de regras de paridade para uma intervenção mais igualitária das mulheres na vida pública. E vemos sempre a mesma linha de orientação: a forma reativa e conservadora com que o PSD se comportou perante todas elas, transformando-se num fator que nalguns casos foi de obstáculo e noutros foi de retardamento.
E em alguns desses processos o seu partido deixou-o descalço.
Suponho que se estará a referir àquele que, para mim, foi o momento mais crítico, que foi o processo da revisão constitucional de 1997. Era na altura presidente do grupo parlamentar e pude conduzir esse processo até à sua concretização final em condições políticas muito adversas. Quando o PS ganhou as eleições em 1995, assumi a liderança do grupo parlamentar, e, como tínhamos já anunciado, avançámos com um processo de revisão constitucional. Pouco tempo depois da entrada em funções da maioria relativa do PS, o PSD mudou a sua liderança, que foi ganha pelo professor Marcelo Rebelo de Sousa. E o Marcelo entrou na liderança do PSD com uma exigência: para viabilizar os Orçamentos do Estado ao governo do PS, o PS deveria ceder-lhe de imediato uma revisão da Constituição segundo o seu próprio critério. E isto para que ele pudesse ter uma afirmação de liderança, era essa a moeda de troca. Enquanto presidente do grupo parlamentar, opus-me firmemente a esta metodologia. Depois, na fase final, houve um outro episódio significativo. O PSD tinha uma reivindicação, e fazia depender todo o acordo disso, que era a diminuição do número de deputados. Para o PSD essa era a questão considerada fundamental. O PS sempre disse que queríamos criar condições para criar um sistema de maior responsabilização dos eleitos perante os eleitores e que a questão da diminuição do número de deputados não era questão que devesse prejudicar este objetivo fundamental da modernização do sistema político. Como o PSD se recusava a subscrever o acordo de entendimento por causa disso, no último momento estabeleceu-se um compromisso que está patente no texto constitucional hoje em dia: a Assembleia da República pode ter um mínimo de 180 e um máximo de 230 deputados. E isto quer dizer que o PS não prescindiu de manter uma válvula de segurança quanto à diminuição do número de deputados, mas, para ajudar o PS a lavar a sua face sobre a sua reivindicação fundamental, aceitou esta margem possível de negociação futura, sem, todavia, se ter comprometido com a tal redução do número de deputados. E a prova está feita hoje. Tantos anos volvidos e essa diminuição não ocorreu. No exato momento em que esta solução foi encontrada, nesse exato momento, o PSD e o seu líder faziam constar na imprensa que o PSD tinha tido um grande ganho de causa porque tinha exigido e conseguido a diminuição do número de deputados para 180. Nada de menos verdadeiro, como se viu e a história fez provar. E foi essa notícia falaciosa a que hoje chamaríamos todos fake news que criou um ambiente de turbulência no meu próprio grupo parlamentar, o que me levou a ter de tomar uma atitude. E não me arrependo das atitudes que tomei.
O que é que achou insuportável que o levou a demitir-se?
Senti que tinha havido uma quebra de confiança entre o valor da minha afirmação de que não havia qualquer compromisso para a diminuição do número de deputados e a suspeita de que as coisas poderiam não ter ocorrido dessa maneira. E quando se lidera uma equipa, não se pode admitir que haja uma relação baseada numa quebra de confiança. E como, naturalmente, isto também implicou uma controvérsia com alguns camaradas meus com funções de responsabilidade política, entendi que não tinha as mesmas condições que tinha até aí para a liderança do grupo parlamentar.
Sentiu-se enganado ou posto à margem durante esse período?
Não, não. Tomei a atitude que entendi que devia tomar, com todas as consequências políticas e pessoais que isso teria para mim. Tinha alcançado o meu objetivo fundamental e era isso que me importava. E como lhe disse, até hoje sinto-me muito compensado por não ter nunca claudicado naquilo que era a linha principal do objetivo que era preciso alcançar e foi alcançado. Uma coisa posso lamentar, mas essa já não tem a ver diretamente comigo: é que as propostas de reforma para a requalificação do sistema político que foram abertas com essa revisão constitucional ainda hoje não estejam concretizadas.
Qual foi o líder do seu partido que mais o marcou?
Não posso deixar de sublinhar que foi o líder fundador e histórico do partido, Mário Soares.
E os restantes?
Em relação aos restantes tiro relações de cordialidade e de admiração. Tive as melhores relações de camaradagem com outros líderes do PS. Recordo, por exemplo, o momento em que o Dr. Jorge Sampaio assumiu a posição de secretário-geral, quando decidiu candidatar-se à Câmara Municipal de Lisboa, e me foi pedido para assumir a responsabilidade de condução do departamento autárquico nacional do PS. Aceitei essa incumbência e, no seu desempenho, coordenei duas vezes as eleições autárquicas em Portugal durante as maiorias de Cavaco Silva. E dessas duas vezes o PS ganhou as eleições autárquicas e ganhou a presidência da Associação Nacional de Municípios. Foi também um contributo que me orgulho de ter conseguido dar. As minhas relações de cordialidade com os outros líderes do partido foram normais. Foi assim com o Dr. Ferro Rodrigues, com António José Seguro, foi assim com qualquer deles. Antes disso, naturalmente, com José Sócrates, e foi assim também com António Costa. Mas é importantíssimo nunca perdermos a nossa autonomia e independência de espírito.
É exagero meu, olhando para os tempos em que o PS foi governo, dizer que afundado durante os governos de Guterres e recuperado pelos governos de Sócrates?
Não, porque durante esse percurso do tempo de governação de António Guterres ainda desempenhei funções como presidente do grupo parlamentar, como presidente, na segunda fase, da revisão constitucional de 1997, como presidente da primeira comissão, como presidente da comissão de ética mais tarde e, portanto, não se pode dizer que daqui tivesse decorrido uma descida a qualquer tipo de inferno, longe disso.
Ser presidente de uma comissão não é o mesmo que ter a braçadeira de capitão.
Aceito que o preço que tive de pagar pela independência da minha atitude poderá ter implicado que o meu percurso político, podendo ser de outra maneira, não o tenha sido.
E quando olha para o período de Sócrates?
Se um dia o tempo, a saúde e a disposição me conduzirem a escrever algumas memórias, não deixarei de fazer algumas coleções sobre alguns desses tempos mais conturbados. Durante esses anos de legislatura, significativamente longos, em que desempenhei funções como secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, mergulhei sobre muitos pontos de vista numa quase invisibilidade política, mas o meu trabalho foi incomensurável do ponto de vista da abnegação para que todo o processo decisório e todo o processo legislativo pudessem ser consistentes.
Porque é que o seu partido não o quis mais?
Talvez essa pergunta não me possa ser feita a mim, porque as funções que me foram pedidas para desempenhar, sempre que vi que as podia desempenhar com dignidade para mim próprio e para as condições que lhes eram inerentes, as minhas respostas foram sempre positivas.
Quais foram as qualidades que acham que perdeu para já não o deixarem sentar no banco, nem tão-pouco na equipa B?
Não posso aceitar os pressupostos da sua pergunta, como compreende. Era muito estranho que, para um parlamentar eleito, se viesse a dizer que as funções que desempenhei na Assembleia da República eram, do ponto de vista da ação parlamentar, funções de uma qualquer equipa B.
Sentia que ainda tinha condições para dar mais ao PS?
Sempre pensei que, como às vezes se diz dos artistas: é muito mais fácil entrar no palco do que sair dele nas condições em que se entrou. Sempre disse para mim próprio que deveria saber sair pelo meu próprio pé, antes que alguém tivesse de considerar ter de me dar qualquer tipo de encosto para que viesse a sair noutras condições. Decidi ir-me embora antes que alguém abrisse a porta do gabinete e me dissesse que já não tinha idade para estar aqui.
Como olha para os deputados de gerações mais recentes?
As gerações mais antigas foram, muitas delas, forjadas na luta contra as dificuldades, na luta contra a ditadura, na luta pela implementação da genuinidade do nosso regime democrático, de uma enorme autenticidade por referência aos ideais em que acreditavam. Hoje em dia, as novas gerações estão tão bem ou mais bem preparadas, do ponto vista intelectual e da sua formação pessoal, do que as gerações anteriores. O problema é que a cultura institucional não se tem colocado da mesma maneira. Quando se perde o sentido da cultura institucional, corre-se o risco de entrar por uma via de excesso de pragmatismo, às vezes até de forma inconsciente, numa via de menorização do valor das instituições. E isto pode ser, a prazo, um fator de decadência da qualidade da vida democrática. Se há algo que desejo ardentemente, num momento de encruzilhada como este, é que o valor da importância das instituições, do rigor com que as tratamos e do respeito pelo âmbito das suas competências se mantenha como uma constante em todas as gerações.
Se lhes pudesse dar um conselho ou orientação, qual seria?
Às vezes tenho conversado com eles sobre isso e uma das coisas de que lhes falo é da humildade, fugir do pecado da arrogância. Se me é permitido dizer, quando cheguei à vida política, e justamente em relação às gerações mais antigas que a minha, a atitude da minha geração era de admiração profunda pelos mais velhos. Hoje em dia a tendência dos mais novos é dizerem com rapidez quase imediata que querem suplantar aquilo que os outros fizeram antes deles. Enquanto na minha geração se admirava os mais velhos, agora tende-se - às vezes quase por razões de psicologia coletiva - a menosprezar as referências.
E agora o que vai fazer?
Pode parecer um bocadinho de egoísmo, mas ao fim quase 39 anos de vida parlamentar, de mais de 40 anos de vida política partidária ativa, é natural que agora deseje ter tempo para mim próprio e poder revisitar muitas das dimensões da minha própria experiência. Por exemplo, o número de arquivos e de cadernos de apontamentos que tenho de todo este percurso histórico precisava quase de uma outra vida para poder revisitar tudo isso.
O que é que vai fazer com esse acervo?
Eventualmente, poder valorizar alguns testemunhos de história que eu próprio vivi e que possam ter aproveitamento como ilustração daquilo que foram momentos políticos da sociedade portuguesa.
Fixar tudo isso em livro?
É uma das minhas perspetivas possíveis de futuro.
Trouxe consigo umas folhas com anotações.
Nada de relevante. Escrevo de forma ilegível, portanto, se lhe mostrar as minhas notas, não vai perceber nada, mas identifiquei aqui um ponto ou outro de momentos que me marcaram extraordinariamente como deputado. Numa ocasião, num debate parlamentar, um deputado do PCP invetivou o então líder do CDS lembrando a circunstância de o professor Adriano Moreira ter sido ministro do antigamente, invetivou como sendo uma presença viva da herança fascista. E nesse momento há um deputado da bancada do PS, já idoso e que já tinha sido presidente da Assembleia da República, o Dr. Teófilo Carvalho dos Santos, que perante aquela invetiva se levantou para pedir a palavra e dar testemunho sobre o papel que o professor Adriano Moreira tinha tido na defesa de vários republicanos perseguidos pelo antigo regime, incluindo ele próprio, que graças ao professor Adriano Moreira tinha sido várias vezes defendido das perseguições da PIDE e das autoridades do antigo regime. Nessa altura, o Adriano Moreira levantou-se da bancada do CDS e foi à bancada do PS, aqueles homens deram um abraço que nos fez a nós tocar até às lágrimas. Manifestaram como era possível superar divergências e assumir o respeito pelas pessoas quando elas evoluem nas suas próprias posições, sem deixar também de relevar as atitudes de dignidade que elas tiveram ao longo do tempo.
O que é que lhe deu mais gozo: estar como deputado ou como governante?
Talvez isto lhe possa parecer um clichê, mas ter estado como governante deu-me um sentido de ter concretizado o dever, não me deu gozo nenhum. Foi de tal maneira intenso e ocupante da atividade - algo que provavelmente nunca disse em público -, que havia dias seguidos em que ia a casa para tomar duche e voltar sem dormir, dada a intensidade do trabalho que coordenava. Esta opção da minha parte de alcançar um resultado perfeito ou próximo da perfeição levou-me a uma tal exaustão no esforço das funções governativas que as consequências que isso veio a ter para a minha saúde também foram, depois, bastante significativas.
O que é que todas essas horas de trabalho provocam na vida familiar?
Foi muito complicado, na medida em que, durante muitos anos, fui deputado eleito por um círculo fora de Lisboa, o de Santarém, do qual também fui cabeça de lista durante várias legislaturas. Ao mesmo tempo, fui presidente da Assembleia Municipal em Abrantes durante 16 anos consecutivos, desempenhei funções na liderança partidária ou na coordenação nacional das autarquias do Partido Socialista, com aquelas duas eleições autárquicas que o PS ganhou. Isto leva a que as consequências no equilíbrio da vida familiar tivessem repercussões. Por vezes, os meus filhos, em momentos mais significativos da relação filial e paterna, não deixam de me dizer que nem sempre estive disponível para os ver crescer.
Vai ficar a viver em Lisboa ou regressa às origens?
Vivo em Lisboa, numa periferia, em Alfragide. Vivo lá há muitos anos e vou continuar a viver, a minha base familiar está centrada em Lisboa. A minha zona de contacto com a província é Abrantes, onde continuo a ter laços, quer os que resultam do meu percurso juvenil em Abrantes, quer dos amigos que lá deixei e com os quais prezo relações de contacto e amizade.
Aí estão as suas raízes?
Várias das minhas raízes significativas. Não nasci em Abrantes. Fui para a cidade com 10 anos de idade. Nasci numa aldeia chamada Alagoa, no concelho de Portalegre, mas ainda criança fui para o Gavião, que era o local onde o meu pai trabalhava. Faço parte da geração que nasceu em casa. E quando, em alguma circunstância, alguém me acompanha, faço questão de dizer onde é a casa onde nasci, na Rua das Laranjeiras. Eu fiz a escola primária no Gavião e quando acabei foi tirar o curso de comércio e depois então é que fiz a equivalência ao liceu. Só depois passei para a antiga escola comercial e industrial de Abrantes.
O que faziam os seus pais?
O meu pai era padeiro, a minha mãe ajudava o meu pai no ofício de padeiro, os meus avós eram agricultores, e foi assim que me temperei desde jovem para respeitar o mundo do trabalho. É de lá que sou oriundo, e sempre que invoco a memória do meu pai é sempre neste sentido de um trabalhador abnegado, sentido que eu tentei respeitar ao longo de toda a vida.
Para os seus pais deve ter sido um orgulho ter um filho a ir para a universidade.
Sim, acabei o liceu em Abrantes, deixei o curso comercial e depois fui para a Universidade de Coimbra. A fase do liceu de Abrantes ocorreu antes do 25 de Abril e já nessa altura as minhas atividades estavam profundamente ligadas aos movimentos de contestação juvenil da época a um regime de ditadura. Fui, aliás, correspondente do jornal República.
E encenador de teatro...
Teria nessa altura os meus 16/17 anos. Estava no sétimo ano do liceu quando o presidente da comissão de finalistas me incumbe de organizar as atividades dos finalistas. Tivemos uma representação teatral que organizei na qualidade de encenador, era um conjunto de rábulas visando fazer uma crítica à sociedade da época sob vários planos. Uma delas, não podia deixar de ser, à guerra colonial. E recordo-me de ter feito essa encenação depois de ter ido ao quartel de Abrantes pedir para me deixarem gravar rajadas de metralhadora a disparar. Deixaram-me fazer a gravação, que utilizei depois no espetáculo para a crítica à guerra colonial, misturando isso com uma representação ao estilo de coro grego. Enquanto se ouviam as rajadas de metralhadora, o coro dizia: "Metade do mundo está morta e vai morrer a outra metade." Algum tempo depois, a PIDE, então chamada de DGS na fase do marcelismo, foi ao liceu de Abrantes e queriam levar-me para investigação. Foi o reitor que me disse o que se tinha passado: "Saiu daqui há pouco uma brigada da PIDE. Veio cá porque queria levar-te para seres investigado, mas eu não deixei. Eles não te levaram porque lhes disse que tudo o que tinhas andado a fazer tinha tido o meu conhecimento e consentimento e que se te quisessem levar também tinham que levar-me a mim." E disse-lhes mais, contou-me: "Como estamos em vésperas de exames, se te levarem têm que me levar a mim, fecho a porta do liceu e este ano não há exames para ninguém." Isto dito por um reitor antes do 25 de Abril é uma coisa extraordinária. Hoje, aqui no Diário de Notícias, apresento uma homenagem ao reitor de Abrantes, o Dr. João Petito, já falecido.