Cantora, instrumentista e autora de uma obra singular no contexto da contracultura, Joni Mitchell (7-11-1943) manteve-se afastada dos palcos durante um longo período, devido a problemas graves de saúde que a deixaram incapacitada aos 71 anos. Na verdade praticamente já não cantava, uma vez que o tabaco que fumou compulsivamente durante décadas - à razão de quatro maços por dia, segundo vários biógrafos - tinha relegado drasticamente o seu cristalino timbre de soprano para as profundezas da gama vocal. Em 2015 tinha sido noticiado que estava a reaprender a falar e a andar, depois de um aneurisma e subsequente cirurgia a terem deixado amplamente limitada..Quando em 2022 apareceu de surpresa no histórico Festival de Música Folk de Newport, como convidada da cantora Brandi Carlile (n. 1981), teve uma estrondosa receção não só do público presente, mas da comunicação social em geral, como um fenómeno que jamais se pudesse ter imaginado. Um milagre, uma verdadeira ressurreição..Pelo caudal noticioso e entrevistas subsequentes ficou a saber-se que Joni mantinha, desde há uns tempos, encontros na sua própria casa - uma mansão em Bel Air, L.A., Califórnia, onde reside há décadas - com inúmeros músicos de diversas gerações, alguns muito, muito famosos. Nestas sessões, identificadas entre os participantes como Joni jams, sob o mutismo jurado dos telemóveis, todos tocavam, cantavam e improvisavam juntos, recriando o repertório de que mais gostavam e estimulando assim a recuperação da artista. Ela mesma o confirmou, esclarecendo também que tinha reaprendido a tocar as suas próprias músicas online, com vídeos do Youtube. Enfim, como muitos principiantes em todo o mundo..Nascida numa zona rural do Canadá, desde criança a pequena Roberta Joan era notada como tendo sensibilidade e talento artístico: não para a música, inicialmente, mas em especial para a pintura, atividade que tem mantido ao longo de toda a vida. Acabado o liceu foi estudar Belas Artes para outra cidade, onde a sua angélica voz se fazia ouvir aos fins de semana nos clubes locais, cantando baladas folk e acompanhando-se à guitarra. Aqui iniciou uma relação com um colega, de quem engravidou acidentalmente, o que possivelmente acabou por definir o rumo da sua vida e carreira..Filha única de pais muito conservadores, Joni não quis assumir perante eles a gravidez extraconjugal e sujeitá-los ao escândalo, decidindo então abandonar os estudos e mudar-se para a grande cidade de Toronto. A ideia era trabalhar como cantora folk num local com mais oportunidades e onde seria mais fácil manter um certo anonimato..Terminada a anterior relação, Joni conheceu um americano que cantava num dos clubes que ela frequentava, tendo começado um namoro que chegou a noivado. Se ele prometeu ou não que perfilharia o bebé dela depois do casamento, não é consensual. A verdade é que surgiu o projeto de irem para os Estados Unidos fazer carreira como duo - sendo ela, provavelmente, a atração principal - pelo que a artista enfrentou o terrível drama de deixar a criança numa instituição para adoção..Mas Joni sempre foi determinada. Possivelmente culpabilizada pelo abandono de Kelly Dale, nascida no início de 1965 - a que aludiriam canções enigmáticas como Little green (1966) ou River (1971) - a artista não parou de lutar pela carreira que a levaria ao estrelato, paulatinamente, num percurso singular e notável em todos os aspetos. O casamento com Chuck Mitchell não durou muito - subsistindo apenas o apelido - e Joni uma vez mais fez as malas e procurou orientar-se sozinha, rumando agora a Nova Iorque, onde a cena folk era intensa..Em 1967 conheceu David Crosby, ex membro da banda The Byrds, que ficou deslumbrado ao ouvi-la cantar e lhe propôs que fossem juntos para a Califórnia, onde ele tinha contactos que poderiam ajudá-la. Assim foi. Joni acabou por conhecer e relacionar-se com muitos músicos da sua geração que moravam próximos uns dos outros, no famoso Laurel Canyon, Los Angeles, onde a própria se fixou durante uns tempos. Crosby conseguiu-lhe o contrato para o primeiro álbum, de que foi produtor, a partir do que tudo aconteceu de forma mais ou menos expectável: seguiram-se mais discos, sucesso e fama, concertos e digressões, e a crescente maturidade musical..Joni Mitchell tinha a preocupação da originalidade nas suas criações, não sucumbindo ao pop fácil e comercial. Usava uma linguagem poética e filosófica - detestava ser referida como boa letrista em vez de poeta - evitava a banalidade nas melodias, dando-lhes um contorno rebuscado e imprevisível, e acompanhava-se com harmonias densas, resultantes das afinações invulgares que usava na guitarra. Isto criava, é claro, uma certa tensão com a poderosa e exclusivamente masculina indústria discográfica..Ao chegar aos malfadados anos 80, com quarenta de idade - dois obstáculos consideráveis - a artista teve que fazer um esforço de adaptação e algumas concessões. Numa época de viragem radical no gosto musical, em que o som e a imagem começavam a pesar mais do que a própria música e a qualidade artística, Joni conjugava recursos do folk, rock, pop e jazz nos seus trabalhos, criando assim uma linguagem própria e uma identidade distintiva..Entre as suas canções encontram-se muitas alusivas aos seus incontáveis amores - monogâmicos, como faz questão de afirmar - tanto na exuberância de cada nova paixão como no rescaldo das separações. Numa fase de juventude ficaram célebres as relações com músicos famosos que, tal como ela, escreviam canções, tocavam guitarra e cantavam, dedicando-lhe também a ela algumas composições. Entre eles, o já referido David Crosby, também Leonard Cohen, de quem admirava a linguagem poética e com quem procurou melhorar a sua, Graham Nash, o gentleman de quem se afastou por amor, para não se deixar prender num casamento que afetaria a sua carreira promissora, ou James Taylor, com quem partilhou o palco e o estúdio. Com todos manteve relações de amizade ao longo de décadas..Quando começou a fazer discos e concertos com instrumentistas - trabalhou com grandes nomes do jazz como Charles Mingus, Wayne Shorter, Herbie Hancock ou Jaco Pastorius, entre outros - o deslumbramento levou Joni a apaixonar-se consecutivamente por vários colegas. Entre eles, John Guerin, baterista com quem esteve cinco anos, Don Alias, percussionista negro, com uma relação tempestuosa de mais de três anos que acabou em violência doméstica, Larry Klein, baixista e produtor com quem fez vários álbuns e um casamento que durou mais de uma década..Joni continuava a gravar e a criar novidade com cada novo disco, nomeadamente no Turbulent Indigo (1995), com o regresso ao formato mais intimista que a tinha celebrizado, que viria a conquistar dois prémios Grammy, de melhor álbum e melhor capa, onde figurava o seu autorretrato imitando o de Van Gogh (depois de cortar a orelha), pintor que ela tanto admirava..Mas a década de 90 ficou indelevelmente marcada pela procura da sua filha que, por coincidência, no Canadá fazia também diligências para identificar a mãe biológica. Com a publicação do grande segredo de Joni Mitchell num tabloide - vendido por um "amigo" de juventude sem escrúpulos - a artista não o negou e toda a história acabou por ficar bem documentada daí para a frente. Em 1996 Joni conhece finalmente a sua filha, agora Kilauren Gibb, e o neto Marlin (cuja irmã, Daisy, nasceria.em 1999), estando todas as peripécias relatadas nas excelentes biografias Girls Like Us (Sheila Weller, 2009) e Reckless Daughter (David Yaffe, 2017)..Se esta nova família teve um profundo impacto na vida de Joni e a ocupou emocionalmente nos anos subsequentes, isso não significa que a carreira tivesse então terminado. Entrou no novo milénio gravando dois discos em que cantava com orquestra sinfónica, uma experiência nova e prestigiante para a cantora. Em 2007, livre de compromissos contratuais com qualquer editora, lançou o que seria o seu último álbum de estúdio, Shine, num esquema comercial que assegurava a sua venda em todas as lojas Starbucks! (Quem diria?) Pela mesma época recebeu um convite irrecusável da Companhia de Ballet de Alberta, Canadá, para a criação de um bailado com música sua, o qual viria a intitular-se The Fiddle and the Drum..Foi também nas últimas duas décadas que Joni Mitchell recebeu maior reconhecimento e mais homenagens pela sua distinta carreira musical, quer nos Estados Unidos quer no Canadá, de cuja nacionalidade nunca abdicou. A mais recente, este ano, foi o prémio Gershwin da Biblioteca do Congresso, Washington, que entre as diversas celebrações incluiu uma entrevista perante uma plateia. Quando lhe perguntaram se não se tinha deixado desencorajar quando tinha más críticas ao seu trabalho, ela respondeu espontaneamente, rindo: "Não! Sou difícil de desencorajar. E difícil de matar" - "I"m hard to discourage. And hard to kill."*.Joni Mitchell aos 80 (que faz amanhã) - renascida para a música e finalmente senhora do reconhecimento que sempre soube que merecia..Flautista