Jon Stewart: "O humor pode surgir como forma de reclamarmos a nossa humanidade"

Em exclusivo nacional, o DN entrevistou o rei da sátira televisiva americana em Toronto, onde <em>Rosewater</em> teve honras de gala. Um filme duríssimo sobre liberdade de expressão.
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A primeira coisa que Jon Stewart dá ao jornalista português que recebe numa pequena sala de reuniões do Intercontinental de Toronto é um raspanete: "Vocês não tinham nada que marcar aquele golo no último minuto! Estivemos tão perto de ganhar!" Estamos em setembro e o maior satirista da televisão americana ainda tem na memória fresca o golo de Silvestre Varela apontado ao cair do pano no encontro do Mundial de Futebol do Brasil em que Portugal empatou com os EUA. O apresentador do Daily Show tem toda a razão, mas não foi ao festival de Toronto para falar de futebol.

O assunto para o qual nos deu alguns (muito poucos) minutos do seu tempo é coisa séria, muito séria: um filme duríssimo sobre liberdade de expressão: Rosewater - Um Sonho de Liberdade, a sua primeira realização. Muito mais do que apenas a história da prisão do jornalista Maziar Bahari na altura das eleições no Irão, em 2009, o filme é uma espécie de acerto de contas com a realidade. Maziar foi detido especialmente devido a uma entrevista que terá dado para um momento de humor do programa de Stewart, entrevista essa que as autoridades do Irão não terão percebido e, de forma absurda e disparatada (aqui o filme tem o humor sarcástico de Daily Show), pensaram que Maziar, iraniano de nascimento mas a viver em Inglaterra como correspondente da Newsweek, fosse um espião ao serviço dos americanos e toca de o prender sem direitos nem defesa.

Pior de tudo, foi torturado durante um longo período e atirado para uma cela solitária nas piores condições. Cinema de denúncia? Sem dúvida. Para Jon Stewart, era uma questão de obrigação humana fazer este filme a partir do livro que Maziar escreveu sobre a sua experiência, mesmo sem as chamadas "qualificações" de realizador. Às vezes, na vida, há uma altura em que não podemos delegar nos outros as histórias que temos de contar. Era este o caso de Stewart, que chegou mesmo a aceitar filmar com um orçamento reduzido e pouco tempo para a rodagem (era impossível estar ausente do seu talk show durante demasiado tempo).

As más-línguas, antes de o filme ter sido razoavelmente bem aceite no Festival de Toronto, sugeriam que todo este empreendimento seria um abuso de poder ou de vaidade de uma celebridade. Sobre isso do seu poder mediático, Stewart tem uma teoria: "Não sei qual é a tabela pela qual nos podemos orientar para avaliar o nosso poder. Há 16 anos que faço o Daily Show e o mundo que gostaria que tivesse mudado não mudou. Por muito poder que possa ter, não é suficiente, muitas vezes até joga contra mim..."

Está gravado, há qualquer coisa bonita na utopia de um comediante que quer mudar o mundo com humor de sátira liberal. Ele, que fez muito para que uma nova geração se assustasse com os comportamentos do ex-presidente George W. Bush. Com o seu sorriso meio diabólico cita o satirista britânico Peter Cook: "Uma vez disse algo muito interessante numa entrevista ao lembrar que a maior sátira de sempre foi o cabaret Folies em Berlim, nos anos 1930 e, mesmo assim, não evitaram o Hitler... A sátira, em minha opinião, pode ser um instrumento importante em países onde a liberdade de expressão não está garantida. Há sempre limites e a mudança não vem da sátira. A mudança chega com aqueles que estão no terreno! Às vezes, a sátira bem feita pode ter alguma influência - por vezes, positiva... noutras negativa. A mudança é dos ecossistemas mais complexos."

Stewart também pede para os telespetadores do seu programa não irem ao cinema procurar um prolongamento do que costumam ver na televisão. Por isso, quando o DN lhe pergunta se todo este projeto nasceu de um desejo de honrar alguém que perdeu a sua liberdade por ter aceitado entrar num sketch do seu programa, a resposta está na ponta da língua: "Para quem não se lembra, o nosso correspondente fazia de espião americano no Irão e dizia abertamente que era espião.

O que ele perguntou ao Mazir foi porque o Irão era tão cruel. Na altura, Bush incluía o Irão no eixo do mal, daí a piada... A ideia do sketch era explorar quão cruéis eram os iranianos e depois o repórter des cobria incrédulo que, afinal, tinham família e que comiam comida." Mas esse humor não comporta um nível de risco colateral? Perguntamos de seguida: "É difícil dizer e perceber até que ponto um regime está desesperado e quer tornar algo em arma de arremesso. Nunca se sabe o que eles podem escolher... Como mostro no filme, eles acusaram o Mazir de gostar de Tchékhov, o dramaturgo. Enfim, implicaram também com coisas que ele punha na sua página do facebook. O que estou a dizer é que a nossa brincadeira no Daily Show era banal, inofensiva. A maneira como eles deram uso a essa brincadeira é que foi o busílis: usaram um pedaço de doce e transformaram-no numa arma... se é que isto faz sentido... Podem acusar-me de ser responsável por ter feito o doce... Mas acho que não, recuso-me a admitir que fizemos alguma coisa de errado! Fizemos uma sátira sobre os extremos de como o governo americano estava a ser simplista com o Irão e eles usaram isso e inverteram tudo! A responsabilidade do que se passou com o Mazir é toda deles! Quem é que num mundo são poderia imaginar que uma coisa de humor como esta poderia pôr o Mazir em perigo?"

Tudo isto, durante o festival de Toronto, levou a uma dúvida: será que os extremistas poderiam ficar zangados com ele? "Nunca se sabe o que pode inflamar os extremistas. Não vou estar sempre preocupado com isso ao longo da minha vida." E ilustra: "Depois do 9/11, lembro-me de ter perguntado a um amigo meu especialista em temas de terrorismo o que poderia fazer para me manter seguro. Disse-me apenas para deixar de fumar e usar cinto de segurança."

Antes do programa Daily Show, Stewart era uma estrela de cinema, um ator que já tinha o seu nome no póster. O tempo passou e o mundo esqueceu-se disso. Muitos dos apresentadores de talk shows americanos são atores que ficaram presos à cadeira das perguntas. É então natural que o leitor não se lembre de o ver nos cinemas. Smoochy (2002), de Danny DeVito, e Entre Estranhos e Amantes (1998), comédia de Willard Carroll, também não foram propriamente casos de sucesso. Talvez os mais atentos se lembrem dele em Mistério na Faculdade (1998), de Robert Rodriguez, uma divertida comédia de terror.

O mais curioso é que Stewart tinha até um carisma nada de deitar fora, mas o apelo do humor liberal televisivo foi mais forte. "Quando é que descobri que era um comunicador?", atira para o ar quando lhe lembramos a carreira como ator de cinema e responde: "Há uma altura que tentamos descobrir na vida a nossa voz própria e arriscar naquilo que podem ser os nossos pontos fortes. Fazer sátira foi algo que se tornou muito confortável para mim. O Daily Show era aquilo que eu poderia aprender a fazer bem. Sabe uma coisa, mesmo quando fazia cinema, não me considerava ator. Sempre soube que aquilo era superficial. Nunca tive aquilo que o Gael Garcia Bernal tem: aquele jeito e habilidade para compor personagens." No final, na despedida, outra queixa para Portugal: "Em Portugal conhecem-me? O meu programa passa no seu país? Ninguém me diz nada, é uma tristeza." E pode haver motivo de humor para num dos seus monólogos se meter, por exemplo, com o tal golo lusitano perante os Estados Unidos a segundos do fim? "Há muitos pretextos para o humor... No meu filme mostro que o humor poder surgir como forma de reclamarmos a nossa humanidade..."

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