Jon Fosse, o Nobel que prefere a Humanidade às personagens
Ano após ano, autores e editoras de todo o mundo aguardam com frenesim o momento em que a Academia sueca anuncia o mais mediático dos seus prémios: o Nobel da Literatura. Mas esta quinta-feira, ao contrário do que aconteceu em edições anteriores, a surpresa não parece ter sido grande, quando foi anunciado o nome do dramaturgo e romancista norueguês Jon Fosse, "distinguido pela sua prosa inovadora que dá voz ao indizível", segundo o comunicado oficial.
Jon Fosse nasceu em 1959 em Haugesund, no Oeste da Noruega, bem perto do segundo maior fiorde do país, o Hardangerfjord, onde ainda vive a sua mãe e onde também está instalada a Fundação que tem o seu nome. Estudou Literatura Comparada na Universidade de Bergen, onde também começou a escrever. Estreou-se na literatura em 1983, tendo publicado romances, poesia, ensaios, novelas e livros para crianças, mas seriam os textos para teatro a dar-lhe projeção internacional.
A partir da década de 1990, Fosse foi representado na Noruega e no estrangeiro, levado à cena por encenadores como Gunnel Lindblom, Claude Régy, Jacques Lassale, Thomas Ostermeier, Barbara Frey, Katie Mitchell ou Patrice Chéreau que, em 2011, dirigiu Sonho de Outono e Sou O Vento. Foi vencedor dos prémios Nynorsk (1988 e de novo em 2003); Aschehoug (1997); Dobloug (1999); Norsk Kulturads (2003); Nynorsk Literature Prize (2003); Breage (2005) e em 2010, foi-lhe concedido o prestigiado Prémio Ibsen. Nesta área, é autor de E Nunca nos Separarão (1994), O Nome (1995), Vai Vir Alguém (1996), A Criança (1997), Mãe e Criança (1997), O Filho (1997), A Noite Canta os Seus Cantos (1998), Um Dia de Verão (1998), Sonho de Outono (1999), Quando a Luz Baixa e Fica Escuro (1999), Dorme, Meu Menino (1999), Visitas (2000), Inverno (2000), Variações Sobre a Morte (2001), A Rapariga no Sofá (2002), Lilás (2002), Os Cães Mortos (2003), Suzannah (2004)), Sa ka la (2004), Warm (2005), Sono (2005), Rambuku (2006), Sombras (2006), Sou o Vento (2007), Morte em Tebas (2008). Foi nessa qualidade de autor teatral que Jon Fosse esteve em Portugal, em março de 2000, aquando da estreia de Vai Vir Alguém e, um ano depois para assistir a Sonho de Outono. Voltou em 2009, por ocasião da visita oficial dos Reis da Noruega, para acompanhar a leitura de Sou O Vento, pelos atores Manuel Wiborg e o malogrado ator Pedro Lima.
Unanimemente reconhecido como um dos grandes no seu país natal (vive atualmente numa residência honorária situada nas propriedades do Palácio Real de Oslo), em igualdade de circunstâncias com Jo Nesbø e Karl Ove Knausgård, a sua obra está traduzida em mais de 40 idiomas, e em 2007 recebeu a Ordem Nacional do Mérito de França. Todos os anos, a sua terra natal acolhe um festival sobre a sua obra (sobretudo, a teatral) que recebe visitantes e leitores de várias partes do mundo.
Numa entrevista concedida, no final do ano passado, à Los Angeles Review of Books, Fosse explicava o lado metafísico da sua escrita, para teatro ou não: "Já fui rotulado como muitas coisas - um pós-modernista, um minimalista - e classifiquei-me a mim próprio como escritor de prosa lenta .Não me quero chamar nada. Chamo-me cristão, mas é difícil para mim. É tão redutor. De certa forma, sou um minimalista, claro, e de outra forma sou um pós-modernista - fui influenciado pelo filósofo francês Jacques Derrida. Por isso , não é necessariamente errado, mas nunca usaria tal conceito para a minha escrita, como que a dizer "é assim"."
Senhor de uma linguagem muito própria, tem um ritmo diferenciado, que abdica da pontuação mais convencional bem como do uso de maiúsculas. Numa entrevista ao jornal espanhol El País referia-se desta maneira ao seu modo de trabalhar o texto: "Pode ser que transponha para a página a minha bagagem de mau músico. Para mim escrever é ouvir, é um ato mais musical do que intelectual. Num texto a forma deve ser extremamente exata, cada vírgula, cada mudança deve ser medida para que ao ler possas sentir as ondas, um latido, e a mudança de ritmo conforme avança a trama. Esta unidade entre forma e conteúdo é necessária. Com a escrita ocorre o mesmo que com um ser humano: não se pode separar a alma do corpo, um cadáver não é uma pessoa."
Este cuidado e rigor são reconhecidos por muitos dos seus leitores. Num post da sua conta de Facebook, a escritora portuguesa Julieta Monginho manifesta assim o seu júbilo por este prémio: "O que mais me fascina em Fosse é a capacidade de deixar o tempo acompanhar a vida das personagens, como se entre ambos, tempo e vida, com os seus sobressaltos, houvesse uma concordância em que qualquer artifício é não só inexistente como inconcebível. Antes e depois de Trilogia houve livros de que gostei mais e ainda não acabei a Septologia." E continua: "Um prémio, incluindo o Nobel, é sempre uma escolha circunstancial, seja ou não permeável a fatores alheios à qualidade. Raramente pode afirmar-se que é justo ou injusto, dado o universo de possibilidades sobre o qual recai. Gostei desta escolha. Espero por outras, igualmente acertadas."
Num perfil seu escrito por Merve Emre, na revista The New Yorker (em novembro do ano passado), Jon Fosse descrevia-se como: "Um rapaz estranho da zona ocidental da Noruega, a mais rural de todas." E continuava ela: "Cresceu como um misto de comunista e anarquista, um hippie que amava tocar violino e ler no campo." Fosse cresceu numa família que seguia o pietismo, a forma mais austera de luteranismo. Mas mais determinante para o desenvolvimento da sua espiritualidade terá sido, nas palavras do próprio, o facto de, aos 7 anos, ter sofrido um acidente quase fatal: "Sem isso, duvido que tivesse vindo a ser um escritor. É fundamental para mim. Esta experiência abriu-me os olhos à dimensão espiritual da vida, mas, sendo um marxista, tentei negar isso tanto quanto pude", disse, na já citada entrevista à Los Angeles Review of Books. Ateu durante a juventude, em 2013 converteu-se ao catolicismo, no qual, disse na mesma entrevista, encontrou uma certa forma de paz.
Em Portugal, estão publicadas várias das suas obras, em teatro e prosa. Em comunicado enviado às redações, a Penguin Random House, que inclui a chancela Cavalo de Ferro, considerou este Nobel da Literatura "o reconhecimento do percurso de um autor ímpar na literatura europeia e mundial, criador de um universo próprio e coerente em várias áreas da literatura." E aproveita para anunciar o lançamento, no princípio de novembro, de O eu é um outro, III e IV tomos de Septologia. A Cavalo de Ferro já publicara os tomos I e II desta obra, mas também outros títulos de Fosse como Trilogia ou Manhã e Noite.
Mais antiga é a relação da companhia de teatro Artistas Unidos com a obra do agora Nobel, já que, desde 2020, encena peças suas, começando com Vai Vir Alguém, encenada por Solveig Nordlund. Na coleção Livrinhos de Teatro, parceria dos Artistas Unidos e da editora Cotovia, estão publicadas as peças de Fosse, A Noite Canta os seus Cantos, Inverno, Lilás, Conferência de Imprensa e Outras Aldrabices, e Sou o Vento/Sono/O Homem da Guitarra.
Já este ano, os Artistas Unidos levaram à cena a peça do autor, Foi Assim, que Jorge Silva Melo começara a trabalhar, mas não terminou (morreu em 2022). No texto de apresentação da peça, António Simão, o encenador, descreveu-a como "um exercício individualista ao estilo Fosse, de escrita rarefeita e com muitas repetições, um ruminar de sentidos e de emoções". Jon Fosse é um autor com quem a companhia cedo estabeleceu "uma relação próxima", através da obra escrita, mas também do contacto pessoal, já que Fosse esteve várias vezes em Lisboa: "Uma das frases que mais me marcou", escreve ainda António Simão, "numa das primeiras vezes que falou da sua escrita, foi ter referido que tinha sido cantor de uma banda de punk-rock e que escrevia como um baixista."
Muito antes do Nobel ser sequer uma hipótese, já Fosse assumia a singularidade da sua escrita numa entrevista ao jornal francês Le Monde (em 2003), dizendo: "Não escrevo sobre personagens no sentido tradicional da palavra. Escrevo sobre a humanidade." Para Merve Emre, da The New Yorker "Septologia é a única obra de ficção que me fez acreditar no divino." Para além da sua vasta obra, o Nobel da Literatura 2023 é também pai de seis filhos, a mais nova das quais nascida quando Jon já ultrapassara os 60 anos.
O Nobel da Literatura começou a ser atribuído em 1901 (o primeiro distinguido foi o francês Sully Prudhomme) e, embora em 1909 tenha ido para a sueca Selma Lagerlof, foi sempre dominado pelo desequilíbrio entre géneros: Neste momento, o saldo são 103 homens vencedores e 17 mulheres, cinco das quais na última década (a última, em 2022, foi a francesa Annie Ernaux). Por países, o "campeão" dos laureados é a França (16), logo seguida pelos Estados Unidos (12) e Reino Unido (11). Entre as maiores surpresas de sempre terá estado a atribuição do Prémio, em 1953, a Winston Churchill, pelos seus escritos historiográficos e memorialísticos.
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